Portadora de doença autoimune que afeta músculos e articulações, oftalmologista de Cuiabá já foi internada 34 vezes na UTI; plano de viajar para clínica de morte assistida na Suíça foi suspenso após e-mail de especialista.
29 mar 2018
Logo que atende a chamada telefônica por vídeo, Letícia Franco, de 36
anos, se desculpa por estar desarrumada. Ajeita-se rapidamente na cama,
vestida de camiseta e calça legging, e aponta o pescoço para a repórter.
"Tá vendo aqui essa cicatriz feia? É do respirador que eu usei ano
passado", diz à BBC Brasil sobre a traqueostomia pela qual passou. O
procedimento consiste em fazer um orifício na traqueia para colocar um
tubo que ajuda o ar a chegar aos pulmões.
A médica de Cuiabá retornava de mais uma de várias internações em
hospitais que acumula desde 2010 - só na UTI (Unidade de Terapia
Intensiva) foram 34 vezes. O grande sofrimento causado por uma doença
crônica degenerativa fez com que ela postasse, dias antes da conversa
com a BBC Brasil, uma espécie de despedida nas redes sociais: "Em 16
dias estarei longe, na Suíça, fazendo o que me deixará livre da dor e do
medo. Acho que amanhã ou depois desligo esse facebook [...] (sic) Toda
minha família deixo meu mais sincero amor", postou no dia 1º de março.
A viagem à Suíça citada na mensagem apontava para o plano de suicídio
assistido em uma conhecida clínica que oferece esse serviço para
pacientes terminais que desejam por um fim a sua vida, prática que é
legal naquele país, ao contrário do que acontece no Brasil.
O recado no Facebook comoveu várias pessoas e chegou ao portal cuiabano
O Livre. Sua posterior repercussão a fez apagar a mensagem logo depois.
A decisão de colocar fim à vida, segundo a oftalmologista, foi
extremamente difícil e envolveu questões religiosas. No momento, Franco
afirma ter suspendido o plano - a possibilidade de poder ter seu caso
estudado e ajudar outras pessoas que tenham a mesma doença a motivou a
postergar o fim.
Há oito anos, Letícia foi primeiramente diagnosticada como portadora de
uma doença autoimune chamada dermatopolimiosite. Doenças autoimunes são
aquelas em que o organismo passa a atacar células saudáveis do próprio
corpo. No caso da dermatopoliomiosite, o principal efeito é sobre os
músculos e a pele. Mas pela complexidade de seu quadro, recebeu, mais
tarde, outro diagnóstico: de ter uma rara síndrome ligada ao uso de
próteses de silicone.
Em sua primeira internação, quando seus membros ficaram paralisados e
ela mal conseguia abrir os olhos, conta ter passado três meses no
hospital. "Nunca tinha ouvido falar nessa doença, não lembro de ter
estudado isso na faculdade. Ali eu soube que meus músculos estavam
morrendo. Eu corria, participava de competições, malhava muito. Tenho
1,73 m e cheguei no hospital pesando 78 kg, a maior parte de músculo.
Quando eu tive alta estava pesando 43 kg."
O primeiro diagnóstico veio quando ela estava de casamento marcado. A
perspectiva de ter crises ainda piores, fez com que seu então noivo
terminasse o relacionamento, segundo ela. "Eu estava horrorosa, ele não
quis mais saber. Como ele era médico também, sabia que ia ser difícil e
falou pra eu ficar sendo cuidada pelos meus pais."
Franco passou a ter crises da doença a cada quatro meses - e manifestou
sintomas de outras enfermidades, como lúpus e esclerodermia. Em
decorrência da alta carga de cortisona tomada, relata ter desenvolvido
osteoporose e passado a sofrer fraturas a cada vez que caía ou batia em
algum lugar - quebrou braço, perna e até o queixo.
Hoje, Franco se locomove em cadeira de rodas e afirma que a dor que
sente é tanta que precisa tomar morfina de quatro em quatro horas -
algumas vezes em que a BBC Brasil tentou contato com a médica, ouviu de
sua enfermeira que ela estava dormindo após ter ingerido essa medicação.
Síndrome Asia
Há três anos, o quadro de Franco piorou. Além das dores nas
articulações e músculos, e as constantes paralisias, começou a ter
paradas respiratórias e outros sintomas inesperados para a doença que
supunha ter.
Foi então que um médico do Hospital das Clínicas de São Paulo a
diagnosticou como portadora de uma nova síndrome, chamada Asia (sigla em
inglês para síndrome autoimune/autoinflamatória induzida por
adjuvantes), que ainda está sendo estudada e sequer foi definitivamente
reconhecida no mundo científico.
Os adjuvantes, que detonam a reação, são elementos externos que
basicamente estimulam os anticorpos de quem é geneticamente propenso a
ter doenças autoimunes a atacar o próprio organismo. Até agora, entre as
substâncias estranhas ao corpo humano identificadas como tendo efeito
adjuvante estão implantes de silicone e alguns tipos de vacina.
Franco relatou que ela e o reumatologista que a atendeu no Hospital das
Clínicas, em São Paulo, acreditam que a prótese de silicone colocada
pela primeira vez aos 18 anos, e que se rompeu anos depois, teria sido a
responsável para que ela desenvolvesse a doença. Contatado pela
reportagem, o médico não quis dar entrevista.
Os sintomas da síndrome, segundo os estudos, se assemelham muito aos de
algumas doenças autoimunes, como a dermatopolimiosite, com a qual
Franco foi inicialmente diagnosticada. Os mais comuns relatados são
dores e inflamações dos músculos e nas articulações, fadiga crônica,
comprometimento cognitivo, perda de memória e manifestações neurológicas
associadas à desmielinização (quando há algum tipo de perda ou
danificação da bainha de mielina dos nervos, como na esclerose
múltipla).
"O médico então me disse que essa doença também não tinha cura [como a
dermatopolimiosite], que eu ia continuar tendo crises e podia tentar
tratamentos paliativos", lembra Franco. "Aí eu falei: doutor, e agora? O
que vai ser de mim? Eu sabia que ia piorar mais...E eu não queria
isso."
Quero partir
Foi no ano passado, quando foi internada e fez a traqueostomia para
poder respirar, que começou a pensar no suicídio assistido. Como médica,
ela sempre defendeu que pacientes de doenças incuráveis ou com morte
cerebral pudessem ter essa opção.
"Eu não quero morrer cheia de tubos, ter uma morte sofrida, horrível
como eu sei que é. Se fosse só eu que sofresse, tudo bem. Mas é a
família inteira que sofre. A coisa mais difícil é olhar para o olho da
mãe e do pai e ver a tristeza enorme que eles têm por você estar com
dor, ver eles sem esperança de que você vá melhorar, esperando por um
milagre", diz ela, cujos pais também são médicos.
"Quantas vezes minha mãe pegou na mão e disse 'Descansa, que vai ficar
tudo bem.' E eu via aquele olhar cheio de lágrimas. Isso pra mim dói
mais que a doença, eu tô matando meus pais com tudo isso. Por isso
pensei: se eu não posso voltar atrás e não ter essa doença, o que posso
tentar é um final melhor, com dignidade."
Católica praticante, a oftalmologista conta que a decisão pela
eutanásia a fez perder algumas noites de sono. "Tinha medo de Deus não
me perdoar. Dizem que quem comete suicídio vai para o inferno", fala.
Ao receber um e-mail com instruções da clínica de morte assistida
Dignitas, na Suíça, Franco comunicou a decisão aos pais. Em um primeiro
momento, eles aceitaram levá-la até o local. Mas depois desistiram da
ideia. "Minha mãe me disse 'Como eu posso te levar pra morrer? Eu pedi
tanto para ter uma filha, como vou fazer isso?'."
Se fosse a situação oposta, ela assegura que levaria os pais doentes em direção ao fim escolhido.
Desesperada com a negativa da família, a médica conta que tentou tirar a
própria vida com um bisturi dias após o post de "despedida" no
Facebook. Foi salva pelos pais e ficou internada mais alguns dias.
Nesse período no hospital, Franco consultou três padres. "Falei pra
eles do sofrimento meu e da minha família e perguntei se Deus ia me
perdoar, se estava vendo a cruz que eu carrego", diz. "Um me perguntou o
que eu faria se fosse o contrário, se eu levaria minha mãe [para
morrer]. E eu disse que sim, eu levaria. E todos me falaram que não
iriam interferir na minha decisão, que só Deus conhecia meu coração."
Cobaia
Logo depois, recebeu um e-mail que a fez suspender o plano do suicídio
assistido. Ela havia escrito para o médico israelense Yehuda Shoenfeld,
um dos principais pesquisadores da síndrome Asia no mundo, relatando seu
caso e oferecendo-se para servir de cobaia para suas pesquisas sobre a
doença.
Na mensagem, à qual a BBC teve acesso, o cientista, que é professor da
Universidade de Tel Aviv, sugere que Franco tentasse se submeter a um
dos tratamentos recomendados por ele para tentar evitar crises, mas não
se compromete a recebê-la para estudar seu caso.
Mesmo assim, Franco diz que pretende ir a Israel conhecer Shoenfeld.
"Eu sou médica, minha vida toda foi doação, então pensei que é um final
justo eu poder ajudar os outros."
Ajudar os outros
Em entrevista à BBC Brasil, Shoenfeld afirma que a síndrome Asia não é
terminal. "Tem gente que vive 94 anos e tem gente que pode viver quatro
meses, assim como acontece com quem tem outras doenças autoimunes. Não
significa que alguém vá morrer", diz.
O especialista diz ter identificado cerca de 300 casos no mundo e alega
que a síndrome só não é mais conhecida no meio científico "por pressão
da indústria de vacinas e de próteses de silicone".
A Sociedade Brasileira de Reumatologia, por meio da médica Gecilmara
Pileggi, membro da comissão de doenças endêmicas e infecciosas da
entidade, afirma que a síndrome Asia não foi reconhecida como doença e
que é preciso muita cautela antes de dizer que ela é causada por alguma
vacina.
A mesma posição tem a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. "O
silicone pode causar reações em casos raríssimos quando a prótese se
rompe e algumas moléculas entram em contato com a corrente sanguínea.
Mas essa síndrome é raríssima e ainda necessita ser estudada", diz o
cirurgião Paulo Godoy, responsável pela área de biomateriais e próteses
da entidade.
Franco está convencida que é portadora da síndrome. Diz ter ciência de
que não deve viver muito, o que a fez alterar sua perspectiva sobre as
coisas. "Nesse tempo todo eu aprendi a dar valor e a gostar das pequenas
coisas, a ver a vida de outro jeito. Hoje me dá alegria ficar com a
família, ver uma série na TV ou cuidar de algum gatinho da rua."
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