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4.13.2009

Doenças Negligenciadas e a Industria Farmacêutica

As doenças negligenciadas são aquelas que “afetam quase que exclusivamente as pessoas pobres e impotentes que vivem nas áreas rurais de países de baixa renda”.36 O Relator Especial da ONU sobre o direito à saúde assumiu um trabalho pioneiro sobre os direitos humanos e doenças negligenciadas.
Ele afirma que as doenças negligenciadas são o resultado de diversos problemas, que incluem: a falta de acesso a medicamentos por parte daqueles pertencentes a classes sociais desavantajadas em países em desenvolvimento (devido ao alto custo dos medicamentos); a escassez de recursos; a inacessibilidade geográfica, particularmente em áreas rurais; e a inadequação do sistema de saúde.
Outro motivo para a negligência é o “assim chamado intervalo 10/90, que se refere ao fenômeno pelo qual apenas 10% dos recursos de pesquisa em saúde estão concentrados em 90% do conjunto de doenças globais”.
Doenças que ocorrem principalmente entre as comunidades pobres que vivem em países em desenvolvimento atraem particularmente pouca pesquisa e desenvolvimento.
O mecanismo do mercado, que determina a pesquisa e o desenvolvimento, deixa de atender às chamadas “doenças negligenciadas” já que elas não prometem bom retorno sobre os investimentos.
Grande parte da pesquisa e do desenvolvimento concentra-se em medicamentos que tratam condições crônicas contínuas, como doenças de coração ou colesterol alto, em detrimento de curas e vacinas que não têm o mesmo potencial contínuo de mercado.

A essência do regime de propriedade intelectual é garantir ao inventor uma recompensa pela invenção, assim como a oportunidade de recuperar o investimento na pesquisa que o levou à invenção. A proteção de propriedade intelectual pode, entretanto, afetar o usufruto do direito à saúde e respectivos direitos humanos de diversas formas.
A proteção de propriedade intelectual pode afetar intensamente a pesquisa médica e isso pode recair sobre o acesso a medicamentos. Por exemplo, a proteção de patente pode promover a pesquisa médica, ajudando a indústria farmacêutica a financiar os custos de teste, desenvolvimento e aprovação de medicamentos.
Contudo, a motivação comercial dos direitos de propriedade intelectual incentiva a pesquisa, primeiro e principalmente, na direção de doenças “lucrativas”, enquanto as doenças que predominantemente afetam pessoas em países pobres – tais como oncocercose, conhecida como “cegueira dos rios” – permanecem pouco pesquisadas.

A possibilidade de recuperação dos custos de pesquisa e desenvolvimento, pela exclusão da concorrência de mercado por meio do uso dos direitos de propriedade intelectual, presume em primeiro lugar que haja mercado para novos medicamentos. O fato de que as doenças negligenciadas são sofridas na imensa maioria por pessoas pobres em países pobres destaca que há pouco ou nenhum potencial de mercado para medicamentos que combatam essas doenças, simplesmente porque os respectivos pacientes são incapazes de pagar.
A proteção de propriedade intelectual não prevê um incentivo para investir em pesquisa e desenvolvimento em relação a doenças negligenciadas. Considerando-se que a adoção do Acordo TRIPS trouxe incentivos para pesquisas médicas ligadas à agenda comercial, a efetivação do direito à saúde de pessoas que sofrem de doenças negligenciadas também se tornou uma questão comercial.
É importante salientar que, embora as empresas farmacêuticas se qualifiquem como sociedades multinacionais, chegou a hora de começar a tratá-las de forma diferente das outras classes de empresas transnacionais.
Isto porque além dos princípios gerais de direitos humanos, que afetam as operações dessas empresas, os direitos específicos envolvidos, assim como as manifestações de suas violações, são obviamente diferentes. Uma sociedade envolvida na indústria extrativa enfrentará questões como a degradação ambiental, a repressão de comunidades locais por meio de empresas de segurança privada e questões trabalhistas. Estas não envolvem de nenhuma forma a propriedade intelectual, que está no centro dos deveres das empresas farmacêuticas em relação ao acesso a medicamentos.

É importante considerar com detalhes os pontos-de-vista das próprias empresas farmacêuticas. Daniel Vasela, presidente e diretor executivo da Novartis, argumenta que há três dimensões de responsabilidade com diferentes níveis de compromisso. A primeira é o cumprimento da responsabilidade no contexto de atividades comerciais normais, denominadas por ele de essenciais. A segunda diz respeito a normas de cidadania corporativa ambiciosas e a última diz respeito às responsabilidades adicionais desejáveis que não se espera que a empresa assuma, mas nas quais ela pode se envolver.

As responsabilidades das empresas farmacêuticas referentes aos direitos humanos são, portanto, respeitar os direitos humanos em suas operações. Para isso, elas devem observar as normas internacionais de direitos humanos como um dos órgãos da sociedade mencionados no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948.
Para uma empresa, o dever de respeitar o direito à saúde pode exigir que a empresa se abstenha de operações que podem causar problemas ambientais e que sejam prejudiciais à saúde de funcionários e das pessoas que residam no local onde a empresa opera.
Além disso, onde as empresas sabidamente comercializarem produtos insalubres, ocorrerá uma violação da obrigação de respeitar o direito à saúde. Um exemplo desse último é o agressivo marketing de leite em pó feito pelas multinacionais em países em desenvolvimento.
Para as sociedades farmacêuticas, há também o dever de não realizar experimentação médica em seres humanos sem obter seu consentimento prévio e informado, conforme exigido por vários instrumentos de direitos humanos.
As empresas farmacêuticas também devem ter uma obrigação de tornar os medicamentos acessíveis, especialmente no contexto de epidemias como a AIDS. Isto exige que elas coloquem seus medicamentos à disposição e a preços acessíveis, através de definição de preços baixos para medicamentos e concessão de licenças voluntárias a outras empresas farmacêuticas para produzir para o consumo especialmente nos países em desenvolvimento.
Elas também são obrigadas a não insistir na execução de regimes de propriedade intelectual que inibam os Estados de cumprir suas obrigações previstas nos instrumentos de direitos humanos internacionais. Uma abordagem de direitos humanos requer que o Estado proteja seus cidadãos dos efeitos negativos da propriedade intelectual.
Para isso, os governos precisam realizar uma análise muito rigorosa e desagregada do provável impacto de inovações específicas, assim como uma avaliação das mudanças propostas nos paradigmas de propriedade intelectual, e utilizar esses dados para garantir a não-discriminação no resultado final.
Ao fazer escolhas e tomar decisões, é necessária uma sensibilidade específica para os efeitos sobre esses grupos cujo bem-estar tende a estar ausente dos cálculos de tomada de decisão sobre propriedade intelectual: os pobres, os desafortunados, as minorias raciais, étnicas e lingüísticas, mulheres e residentes rurais.

O dever de proteger o direito à saúde entrará em cena especialmente em relação aos determinantes subjacentes ao direito à saúde, tais como comida e nutrição, moradia, segurança e acesso à água potável e saneamento adequados, condições de trabalho seguras e saudáveis e um ambiente saudável. O dever de proteger pode exigir que uma sociedade adote diretrizes para garantir que suas atividades e as atividades de seus parceiros comerciais não levem a violações do direito à saúde de outros indivíduos.56

Para esta finalidade, recomenda-se que a Organização Mundial da Saúde, que é a agência da ONU encarregada da promoção da saúde, desempenhe um papel de liderança. Embora a mesma tenha se envolvido em iniciativas com parcerias privadas, precisa ser estabelecido um mecanismo abrangente e completo em todo o setor. Este mecanismo deve ser modelado de acordo com as linhas dos “princípios do equador” e traçado a partir de sua experiência. Os princípios incorporam os compromissos adotados pela International Finance Corporation e instituições financeiras líderes como uma estrutura para gerenciar questões ambientais e sociais no financiamento de projetos.
A velocidade em que as instituições financeiras estão aderindo aos princípios mostra que a indústria passou a aceitá-los como muito desejáveis. Pelo preâmbulo, os bancos se comprometem a “não fornecer empréstimos diretamente a projetos em que a mutuária não cumpra ou seja incapaz de cumprir suas normas e procedimentos ambientais e sociais”.

Em conformidade com este acordo, pode-se tratar da questão do acesso a medicamentos e doenças negligenciados. O estabelecimento de um fundo de pesquisa para doenças negligenciadas, com o qual as empresas farmacêuticas serão obrigadas a contribuir por meio de uma porcentagem pactuada de seus lucros, garantirá a pesquisa mesmo quando não houver lucro envolvido.
Além disso, o estabelecimento de uma porcentagem específica dos lucros, como contribuição, garantirá ativos à medida que cada empresa venha a contribuir de acordo com o seu tamanho e seus recursos. O desenvolvimento desse mecanismo deve ser gradual, e a participação de todos os acionistas, especialmente empresas farmacêuticas, é indispensável.

A idéia de que as empresas possuem obrigações correspondentes aos direitos humanos é relativamente nova, ainda polêmica, e envolve a revisão do pensamento que é manifestado nos instrumentos centrais da lei de direitos humanos internacional.59 As empresas devem respeitar os direitos humanos, evitar a cumplicidade com os abusos dos direitos humanos e, dentro de sua esfera de influência, fazer o que puderem para promover os princípios dos direitos humanos. Sobre este assunto há amplo consenso. A questão que permanece é como isto pode ser executado.

As tentativas de desenvolver códigos de conduta que dependam exclusivamente do voluntariado não foram totalmente bem sucedidas na garantia da responsabilidade de empresas multinacionais. Se o auto-regulamento e as forças de mercado fossem os melhores meios para garantir o respeito aos direitos humanos, poder-se-ia esperar, já que este tem sido o paradigma dominante, que o número de abusos atribuíveis a empresas tivesse diminuído.
No entanto, ainda não é este o caso. Conseqüentemente, há a necessidade de se estabelecer um mecanismo obrigatório dentro do sistema internacional de direitos humanos. Já está na hora de termos uma estrutura internacional mais forte para a responsabilidade corporativa; as Normas de Direitos Humanos da ONU para Empresas são uma significativa contribuição nesse sentido.
Ao reunirem em um único instrumento todos os principais direitos humanos internacionais, direitos trabalhistas, leis e normas ambientais referentes a empresas globais, e pesquisando os principais instrumentos internacionais e as melhores práticas, as Normas da ONU provêem uma orientação útil e oportunidades de liderança para empresas que desejam cumprir suas responsabilidades jurídicas e éticas. Mais cedo ou mais tarde, espera-se que a transição de execução voluntária para obrigatória das responsabilidades de direitos humanos das sociedades seja atingida.

Revista Conectas

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