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6.08.2010

Globalização, Inovação Tecnológica e Inclusão Social: Acesso aos Medicamentos

Globalização, Inovação Tecnológica e Inclusão Social: Acesso aos Medicamentos

Na era da globalização, a inclusão social é preocupação premente nas sociedades
democráticas, por estar diretamente vinculada à dignidade da pessoa humana, sendo que o acessoaos medicamentos representa uma possibilidade inclusiva, num contexto em que a saúde pública é assunto em pauta de todos os povos, na medida em que é indissociavelmente atrelada ao desenvolvimento sustentável das nações.
No contexto globalizado, toma relevância a questão da inclusão social,
sob os mais diversos prismas. Acerca do avanço tecnológico é imprescindível refletir
sobre os benefícios desse progresso e a possibilidade de acesso das vantagens.
Tal preocupação é ainda mais pertinente no tocante à questão dos medicamentos.
Tem-se observado que os países emergentes são menos beneficiados quando a
questão são medicamentos ou melhoria na saúde pública, questões estas que
englobam globalização, propriedade intelectual e acesso aos medicamentos, mais
especificamente, no tocante ao patenteamento de medicamentos, de sorte que se
busca um ponto de equilíbrio entre a proteção da invenção e a transferência das
benesses.
Todas as forças produtivas básicas, como o capital, a tecnologia e a divisão transnacional do trabalho deixam de respeitar fronteiras geográficas, históricas e culturais, multiplicando suas formas de articulação e contradição. Vivenciando a sociedade global, a época da eletrônica conta com os recursos da informática que a tornam, ao mesmo tempo, visível e incógnita, presente e presumível, indiscutível e fugaz, real e imaginária, uma vez que articulada por emissões, ondas, mensagens e símbolos, redes e alianças, que “tecem os lugares e as atividades, os campos e as cidades, as diferenças e as identidades, as nações e as nacionalidades”.
Na globalização, o signo das transformações extrapola todas as fronteiras,
amplia-se e envolve os diversos aspectos da vida moderna, do individual ao coletivo,
do social ao político, do nacional ao supranacional.
Para Klaes, ela se apresenta como “um fenômeno de porte único, que há muito tempo transcendeu os limites da economia mundial, marco de sua gênese, tornando-se presente e determinante em todas as áreas em que o conhecimento e o desenvolvimento humano se processam”.
Isentando a globalização de seus significados menos nobres, assinala
Franco que não se pode “esvaziá-la de suas outras dimensões – tão relevantes
quanto à econômica; nem desprezar ou minimizar as transformações por ela
provocadas em todas as áreas do conhecimento humano; nem, sobretudo, omitir o
seu caráter de irreversibilidade”. Aduz, porém, não haver possibilidade de repor os
termos tempo e espaço na “mesma escala do passado, nem reconstruir a soberania
do Estado-nação nos moldes de tempos anteriores. A equação tempo-espaço, mercê
da revolução tecnológica no campo da informação e da comunicação, foi cumprimida
de tal forma que não importa onde, nem quando, um fato ocorra para que adquira,
de pronto, visibilidade mundial”.
O lado perverso da globalização, contudo, tem sido, até por sua notória
evidência, o mais analisado e censurado por juristas, sociólogos e estudiosos em
geral. Lamenta Santos que com ela novas enfermidades se instalam, enquanto velhas
doenças, tidas como extirpadas, retornam de forma triunfal: “A mortalidade infantil
permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A educação de
qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e se aprofundam males espirituais
e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção”.
Os novos recursos técnicos devem ser direcionados para beneficiar o
ser humano: idealizar uma sociedade voltada para o futuro, colocando perspectivas
como critérios de observação: é necessário antecipar para diminuir a possibilidade
de frustração.
Se não se pode mudar o processo de globalização, ainda que dele não se
goste, dada a sua irreversibilidade, cabe a todos e a cada um criar mecanismos e
formas de agir que conduzam à minimização de seus perversos efeitos e a um
necessário equilíbrio, em benefício da pessoa e da sociedade.
Dessas breves reflexões, insere-se que a globalização se constitui no
fenômeno, complexo e abrangente, norteador da sociedade internacional
contemporânea. Trata-se, ademais, de processo com caráter irreversível – no sentido
de que segue um curso natural, de difícil alteração –, atingindo direta ou
indiretamente todas as pessoas em todos os quadrantes do planeta. Embora
presente, de forma mitigada, em alguns momentos da História, consolidou-se e
assumiu proporções inimagináveis nas últimas décadas. Ele teve início, a exemplo
da maioria dos movimentos e construções humanas, a partir do viés econômico,
mas logo se ampliou a outros setores, como o comercial, o político, o social e o
cultural. A globalização, presentes seus benefícios, necessita ser vista como um
desafio a ser superado. Não se duvida, outrossim, que o ser humano, cujo potencial
de superação de obstáculos costuma se agigantar quando maiores são os desafios,
encontrará dentro do próprio processo global meios para reencetar seu justo destino.
E pilares para esse viés benfazejo e promissor foram trazidos pela própria
globalização, nele avultando a inovação tecnológica, como possibilidade de inclusão
social.

Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual
A Propriedade Intelectual diz respeito à apropriação do intelecto, do
imaterial, ou até mesmo das idéias. É a proteção do investimento, sendo que a
expressão propriedade intelectual, internacionalmente aceita a partir da Conferência
de Estocolmo, em 1967, engloba basicamente a tutela das obras advindas do esforço
intelectual humano com duas grandes divisões: de um lado, os Direitos Autorais,
atinentes às obras de natureza estética ou artística, e de outro, o Direito da
Propriedade Industrial, tendo o Direito do Inventor como base (criações de natureza
técnica ou industrial). A esses grandes ramos, acrescentam-se as cultivares, a
proteção de dados e o sigilo e a topografia de circuitos integrados.
Um sistema de propriedade intelectual permite incentivar a geração de
novas tecnologias, produtos, processo e oportunidades comerciais, promove um
ambiente legal que aumenta a segurança e a confiança das empresas, incentivando
as transações comerciais. Dessa forma, “um regime eficiente de propriedade
intelectual é um fator primordial para atrair tecnologia, levando ao crescimento
econômico nacional” e também representa uma fonte de informações sobe o
estágio da técnica, além de servir como instrumento de planejamento e estratégia
da indústria e do comércio.
Assim, depreende-se que a proteção à Propriedade Intelectual é um meio
de promover inovação, transferência e disseminação de tecnologia, sendo
fundamental no processo de desenvolvimento de um país, “no sentido de promover
a disseminação de informações, o estímulo e a diversificação da produção e o
surgimento de novas tecnologias, (...) gera riquezas e garante empregos, favorecendo
a criação de novos bens e serviços, que contribuem para melhorar as condições de
vida dos povos”1. Por isso, não pode ser considerada um fim, mas um meio para
obtenção de benefícios.
Em nível internacional, a Propriedade Intelectual está regulada pela
OrganizaçãoMundial da Propriedade Intelectual (OMPI), órgão vinculado às Nações
Unidas, que se originou como gestor da Convenção da União de Paris para a
Proteção da Propriedade Industrial e de Berna para Proteção das Obras Literárias e
Artísticas. Embora o papel desempenhado pela OMPI, os países industrializados
passam a exigir revisão dos tratados, com o fim de dotá-los de mecanismos para
impor deveres e sanções aos países membros, assim como criar mecanismos para a
resolução de controvérsias. Após muitas negociações e discussões, mesmo não
tendo ocorrido um real consenso entra as partes, no Acordo GATT da Rodada
Uruguai foi criado o TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights
- Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comércio), juntamente com a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Esses órgãos são responsáveis mundialmente pelas regras de Propriedade
Intelectual e Comércio Internacional entre os países, sendo que o conteúdo da
Rodada Uruguai foi ratificado pelo Parlamento Brasileiro pelo Decreto n.º 1.355 de
30/12/1994, o qual vigorou desde 1º de janeiro de 1995, e desde então as regras
sobre Propriedade Intelectual e as do comércio mundial sofreram vertiginosas
mudanças.
E hoje, mais do que nunca, vivemos numa era em que se atribui
importância ao capital do conhecimento, trazendo a necessidade da conscientização
de que “na sociedade da inteligência, a plena satisfação das faculdades de cada
um é o objetivo de todos”, na qual a produção é posta a serviço do
desenvolvimento humano, e não o contrário, de forma que o desenvolvimento das
nações passa pelo conjunto de conhecimentos agregados pela propriedade
intelectual.
O valor de um conhecimento é inteiramente ligado à capacidade de
monopolizar o direito de se servir dele, pois o valor das mercadorias ditas de
conteúdo imaterial tem sua fonte no monopólio do conhecimento, na exclusividade
das qualidades que esse conhecimento confere às mercadorias que o incorporam14.
Mas os benefícios auferidos com as inovações tecnológicas no contexto
da propriedade intelectual precisam ser constantemente pensados e repensados
dentro de uma perspectiva globalizada, no sentido de que a população precisa ter
o mínimo de conhecimento sobre o assunto para que possa participar
significativamente do debate e efetivamente exigir o acesso aos seus benefícios.
No entender de Souza Santos, “importa que os grupos cujos interesses
são afetados por qualquer atividade científica estejam bem representados nos
processos de tomadas de decisão, em níveis local, nacional e global”15, o que
significa, em outras palavras, a luta contra a exclusão e a concentração,
caracterizadoras da desigualdade.
Trata-se, portanto, de uma realidade nascida dos novos conhecimentos
da ciência, da inovação tecnológica e da globalização, com implicações no campo
das políticas públicas. É nesse cenário que a problemática do acesso aos
medicamentos é pungente e merece maior atenção por parte dos estudiosos do
Direito, assim como da sociedade como um todo, na medida em que se trata de uma
das facetas do direito humano à saúde e à cidadania.

Propriedade intelectual de medicamentos
Inicialmente, os medicamentos de qualquer espécie sofriam restrições
quanto à concessão do privilégio das patentes, considerando os fins salutares e
humanitários a que visavam. Os argumentos contra o patenteamento fixavam-se na
proteção da saúde pública, no controle do consumo de substâncias nocivas e, ao
mesmo tempo, na divulgação de remédios úteis ao alívio das moléstias.
Considerava-se que a proteção pelo sistema de patentes provocava,
temporariamente, a retenção de informação, ficando o inventor/empresa com domínio
sobre a área, podendo impor preços aos produtos e cobrar royalties.
A Rodada do Uruguai foi um marco no tratamento da questão da
propriedade intelectual, voltada para a questão das patentes de medicamentos. Nesse
encontro, procurou-se estabelecer o comprometimento dos governos nacionais em
garantir a observância da legislação na área da propriedade intelectual. Passa-se, a
partir daí, a observar regras mínimas, em nível mundial, previstas peloAcordo TRIPs.
Infelizmente, os propósitos desse Acordo não contemplaram as aspirações dos
países em desenvolvimento como o Brasil.
É notório que não há como se desprezar os investimentos para a criação
de novos medicamentos, e que o poder público não tem condições de suportar,
sozinho, as expressivas somas que demandam as pesquisas. Em vista disso, grande
parte desses recursos tem origem na iniciativa privada, representada pela
participação de grandes empresas multinacionais. Essas constituem oligopólio em
nível internacional, uma vez que atuam em escala mundial, por meio da instalação
de suas matrizes e, ainda, compram de pequenas empresas de capital nacional,
restringindo a sua presença no mercado. Nesse sentido, o ramo farmacêutico
reconhece como instrumento central de sua estratégia, o sistema de patentes. Mais
que em outros setores, “as grandes empresas têm despendido do regime de
monopólios que elas conquistam para estabelecer e preservar posições de
mercado”18. Os limites que tradicionalmente existiam entre as indústrias
farmacêuticas, agroquímicas e biotecnológicas estão desaparecendo rapidamente,
à medida que as grandes empresas se fundem e formam conglomerados gigantescos.
Vale salientar, em vista do disposto no artigo 5º, parágrafo 2º, do texto constitucional brasileiro,
que a legislação interna deverá adaptar-se aos acordos que o país seja signatário.

“Assim, a Ciba-Geigy fundiu-se com a Sandoz e tornou-se a Novartis; a Hoechst e a Rhone
Poulenc tornaram-se a Aventis;(e a Monsanto agora é a proprietária ou acionista majoritária de
grandes empresas produtoras de sementes.(...) O que todas essas “empresas de ciências da vida”
têm em comum é uma visão estreita da vida, baseada na crença equivocada de que a natureza pode
ser submetida ao controle humano. Essa visão estrita ignora a dinâmica autogeradora e autoorganizadora
que é a própria essência da vida e redefine os organismos vivos, ao contrário, como
máquinas que podem ser controladas de fora, patenteadas e vendidas como recursos industriais.
A própria vida tornou-se a suprema mercadoria”.
A indústria multinacional farmacêutica gasta quase 40 bilhões de dólares
por ano para desenvolver novos medicamentos. Para isso, mobiliza uma crescente
parcela dos cientistas mais experientes do mundo e a mais sofisticada tecnologia
médica. Com tal investimento maciço, poderia se esperar um aumento do número
de medicamentos de impacto dirigidos para os flagelados da humanidade.
Os Estados Unidos são o maior mercado de remédios do mundo. Desde
2000, a indústria farmacêutica cresceu 15% por ano, triplicando o lançamento de
drogas experimentais entre 1970 e 1990. Isso se deve, em grande parte, a mudanças
nos regulamentos dos EUA sobre remédios.
Em 1984, a agência norte-americana de medicamentos e alimentação (Food
and Drug Administration, FDA) estendeu as patentes dos fabricantes para novas
drogas; em 1992, começou a aceitar pagamentos de fabricantes em troca do exame
e liberação mais rápida de suas drogas novas e, em 1997, suprimiu as regras que
baniam anúncios de televisão para os remédios novos. Essa mudança bastou para
trazer uma grande transformação na indústria. Pela primeira vez, permitiu-se aos
fabricantes de remédios dirigirem as propagandas mais atraentes dos remédios
novos diretamente a um grande número de consumidores, sem a mediação cética
de um médico.
No Brasil, houve um enorme retrocesso na legislação pátria no século
XX. Em 1945, aboliu-se o direito de patentes para substâncias farmacêuticas e em
1969, foram excluídos da proteção por patentes também os processos de fabricação
desses produtos.
Logo quando o mundo passava por importantes transformações, saindo
do pós-guerra e entrando em uma nova era industrial de grande desenvolvimento,
décadas de sessenta e setenta, o Brasil adotou políticas que provaram não ser o
setor farmacêutico prioridade. Resultado disso foi a desnacionalização da indústria
de medicamentos no país. Não houve modernização nas empresas por que na visão
das indústrias não teria sentido investir em pesquisa e desenvolvimento se não
seria possível patentear a invenção. Era um risco que não valia a pena correr.
Somente a partir dos anos noventa, quando foi sancionada a Lei n.º 9279/
96, regulando a Propriedade Intelectual no Brasil, é que se admitiu o pedido de
patentes para medicamentos, influenciado pelo Acordo GATT da Rodada Uruguai,
que deu origem ao TRIPS. Porém, o Brasil estava quase meio século atrasado no
assunto, ainda mais se comparado aos americanos e europeus, que tinham avançado
desmesuradamente em suas pesquisas relacionadas às novas tecnologias
farmacológicas. Devido a esse atraso na política brasileira em ralação aos produtos
farmacêuticos é que hodiernamente o país ainda é dependente, precisando dos
produtos e processos dos países desenvolvidos.

Acesso aos medicamentos no Brasil: o licenciamento compulsório como uma
forma de inclusão social
Primeiramente, é importante registrar que a patente confere ao seu titular
o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à
venda, vender ou importar com esses propósitos o produto objeto de patente e o
processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado, nos termos do
artigo 42 da Lei 9279/96, que regula a propriedade intelectual no Brasil.
A questão do licenciamento compulsório está relacionada com os
interesses do bem-estar público. Isso porque “a questão do direito de patentes é
saber se se deve promover o desenvolvimento em determinada área pela concessão
de direitos exclusivos”. Por isso, é preciso primeiro verificar se é salutar à saúde
pública para que haja o licenciamento compulsório de uma patente, promovendo,
com isso, a inclusão social, pois “a licença compulsória é um dos mais importantes
mecanismos para combater o abuso da propriedade intelectual em setores
biotecnológicos, como cultivares, microorganismos e fármacos. Existem casos
extremos de fome e doença que as inovações, nos seus respectivos setores, são a
única alternativa para o restabelecimento da saúde pública”.
Nesse sentido, “as medidas compulsórias se constituem como um
eficiente instrumento para limitar o poder econômico de grandes corporações, que
se utilizam dos direitos de proteção da propriedade intelectual para auferir cada vez
mais lucros”. E, com certeza, a ‘quebra’ de patente para flexibilizar as regras de
propriedade intelectual com a finalidade de tratar doenças como a Aids é um fator
que autoriza o equilíbrio entre a proteção da propriedade intelectual das empresas
farmacêuticas e o atendimento à necessidade dos países de obter medicamentos
mais baratos.
Em nível internacional, o TRIPs, em seu artigo 27.1, prevê relativamente
às matérias patenteáveis, que as patentes devem poder ser utilizadas para qualquer
invenção, seja de produtos ou de processos, em todas as áreas da tecnologia, desde
que sejam novos, envolvam passos inventivos e sejam suscetíveis de aplicação
industrial. Dispõe sobre a licença compulsória, quando então se permite que outras
empresas fabriquem um produto ou usem um processo patenteado sem o
consentimento dos detentores das patentes, como uma forma de repartir os
benefícios para facilitar o regime de acesso aos medicamentos por meio da
distribuição de ganhos.
O artigo 31 do TRIPs diz que a produção sob licença compulsória
deve ser dirigida predominantemente para o mercado interno, o que inviabilizou a
importação de genéricos mais baratos fabricados sob licença compulsória para os
países que não tinham capacidade de produzi-los. Em razão disso, a 30 de agosto
de 2003, em Genebra, os países membros da Organização Mundial do Comércio
fecharam um acordo possibilitando a dispensa da obrigação constante no referido
artigo 31 do TRIPs, reconhecendo-se a gravidade dos problemas de saúde pública,
como AIDS, tuberculose, malária e outras epidemias. Concordaram também em
estender as isenções de proteção das patentes farmacêuticas para os países menos
desenvolvidos até 2.01624.
A preocupação de salvar vidas humanas tem sido um argumento a favor
da licença compulsória no que toca à quebra de patente de medicamentos, de forma
que a saúde não poderia depender de nenhum privilégio ou monopólio25, pois os
lucros não podem se sobrepujar à sobrevivência de milhões de pessoas, cujas vidas
dependem do acesso a medicamentos mais baratos. Afinal, as patentes não podem
servir de fonte de lucros ilimitados para as multinacionais, sendo que “a produção
de medicamentos a preços acessíveis para o tratamento da AIDS, representam novos
sentidos para a política dos direitos de propriedade intelectual”.
Nesse contexto de utilização das inovações tecnológicas no
desenvolvimento e produção de novos medicamentos, é preciso pensar a questão
do interesse público no que tange aos medicamentos cujo acesso diz respeito ao
direito à vida, sendo, portanto, um direito ligado à cidadania, um direito
fundamental27. Assim, resta inegável a importância do acesso aos medicamentos
tanto na promoção da igualdade quanto na redução da desigualdade, pois “os
interessados, ou os desiguais, não são objeto da política social, mas sujeito
principal”28. Em razão disso, o caso brasileiro significou uma grande conquista em
termos de cidadania e inclusão social, mas para que possa ser bem compreendido,
exige uma breve retrospectiva e um breve esclarecimento em termos de
desdobramentos do caso e dispositivos legais.
Dentro dessas diretrizes, recentemente o Brasil, a partir da declaração de
interesse público, conseguiu o licenciamento compulsório do anti-retroviral
efavirenz, medicamento produzido pelo laboratórioMerck e utilizado no tratamento
da AIDS no Brasil. O país, que é um dos seus maiores compradores mundiais, obteve
o licenciamento compulsório em razão da não aceitação do Merck de equiparar o
preço pago pelo Brasil em 2006, de 1,59 dólar, ao preço pago pela Tailândia, de 0,65
centavos de dólar por comprimido. Com isso, garantiu-se a manutenção do Programa
Nacional DST/AIDS, considerado o melhor programa anti-AIDS do mundo, que
atende no Brasil cerca de 200 mil soropositivos, dos quais 75 mil utilizam o efavirenz.
Assim, o remédio é usado por 75 mil pacientes da AIDS atendidos pela
rede pública brasileira, sendo que a Tailândia, que atende a 17 mil pessoas, paga
US$ 0,65 por comprimido. Ou seja, o Brasil pagava ao laboratório Merck 136% a
mais do que é cobrado pelo laboratório em outros países, como no exemplo da
Tailândia. O laboratório havia proposto a redução de 30% do valor, o que foi
considerado insatisfatório pelo governo brasileiro, em razão da possibilidade de
importar medicamento similar da Índia por US$ 0,45.
O licenciamento compulsório do referido medicamento irá trazer ao Brasil
uma economia de US$ 30 milhões até o ano de 2012, e também uma remuneração ao
laboratório Merck, a título de royalties, de 1,5%, porcentagem esta sobre o gasto
com a importação do similar indiano, tudo de acordo com o parecer favorável da
Organização Mundial do Comércio. Mas isso não impede de se reconhecer que o
Brasil deixou de comprar o medicamento dos Estados Unidos para comprar da Índia,
e não para produzir aqui, o que revela que o país ainda não tem uma indústria
desenvolvida e muito menos auto-suficiente.
Portanto, o licenciamento compulsório do anti-retroviral efavirenz se deu
em consonância com o artigo 31 do TRIPs, o qual prevê a licença compulsória da
patente, bem como de acordo com a Lei n.º 9.279/96, já referida, que prevê o uso
dessa medida no caso de interesse público, para uso não comercial e de forma
temporária, remunerando-se o detentor da patente, no caso, o laboratório Merck.
Assim, após o licenciamento compulsório, pôde ser comprada a versão genérica do
medicamento, produzida por outro laboratório.
Com isso, consagrou-se a dignidade da pessoa humana como valor-guia
da ordem jurídica, indispensável à inclusão social por ser qualidade intrínseca e
indissociável de todo e qualquer ser humano, constituindo-se em meta permanente
da humanidade, do Estado e do Direito. Além disso, não só a Constituição Federal
do Brasil declara a inviolabilidade do direito à vida, como também os acordos
internacionais sobre Direitos Humanos que o Brasil assinou. Da mesma forma, a
saúde é um direito social, conforme entende o art. 6º da Constituição brasileira, e
sendo direito fundamental do cidadão, não encerra somente uma promessa de
atuação do Estado, mas tem aplicação imediata.
Em atenção a tudo isso, ficou estabelecida a obrigação de que cabe aos
Estados não apenas o discurso programático ao desenvolvimento, mas a realização
efetiva em termos de acesso a medicamentos e de capacitação industrial voltada
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para a produção de medicamentos genéricos, encarando-se, também, como fator de
desenvolvimento econômico e inclusão social.
Isso porque o fato de o Brasil pela primeira vez licenciar compulsoriamente
um medicamento anti-AIDS vem ao encontro da Resolução nº 3313, proposta pelo
Brasil, denominada Acesso a Medicamentos no Contexto de Pandemias como AIDS
e que foi aprovada em abril de 2001 pela Comissão de Direitos Humanos da ONU,
reconhecendo o acesso a medicamentos como um dos direitos humanos.
Toda essa problemática dos medicamentos também traz à tona a relevante
preocupação acerca dos interesses hegemônicos que se ocultam por traz do conceito
de progresso, em razão da sua apropriação por elites econômicas integrantes de
um sistema capitalista hegemônico, bem como a reflexão se o progresso
biotecnológico tem realmente trazido benefícios a todas as pessoas. 29
Como se vê, é preciso reconhecer que o acesso a medicamentos é
elemento fundamental para a plena realização do direito de todos aos melhores
padrões de saúde física e mental. Portanto, a licença compulsória tem um papel
fundamental no tocante à disponibilização de medicamentos vitais à subsistência,
proporcionando-se o acesso da população aos mesmos, bem como a todos os
demais frutos das inovações tecnológicas.

Considerações finais
No avançado estágio tecnológico em que a sociedade atual se encontra
a problemática do acesso aos medicamentos está indissociavelmente atrelada ao
desenvolvimento da ciência, desafio esse que se vislumbra principalmente no tocante
às inovações tecnológicas. Hodiernamente, em razão das pesquisas, do
desenvolvimento e da utilização das tecnologias em nível mundial; com repercussão
em todos os povos, é preciso elucubrar a respeito.
A patente é um meio de proteção à Propriedade Intelectual, sendo que,
por meio dos lucros angariados pela exploração e/ou licença de um produto
patenteado, seu detentor pode investir em novas pesquisas e no desenvolvimento
de outros produtos inéditos. Mas a grande defasagem tecnológica dos países
pobres em comparação aos países desenvolvidos, somado ao seu baixo poder
aquisitivo, levam justificar a licença compulsória de medicamentos, em benefício da
população. Assim, a saúde pública pode, caso seja necessário, prevalecer sobre
aspectos econômicos, privilegiando-se o acesso aos medicamentos.
Faz-se mister que os interesses econômicos não impeçam as camadas
menos favorecidas da população de ter acesso aos medicamentos e a tudo o que
foi auferido com o desenvolvimento da tecnologia, ou seja, que não fiquem à sua
margem. A cadeia de implicações decorrentes disso na sociedade globalizada e
multicultural, marcada por mudanças de paradigmas, é imensurável nos dias atuais.
Por isso, o debate do tema é imprescindível.
A inovação tecnológica só terá sentido para a humanidade se gerar
benefícios às pessoas. Por isso, é preciso que todas as questões inerentes ao acesso
aos medicamentos sejam abordadas de modo a vislumbrar a importância universal
do tema como uma das facetas da vertiginosa inovação tecnológica nas sociedades
globalizadas, na medida em que as implicações políticas e econômicas não devem
se sobrepujar à inclusão social, entendida, também, como fator de desenvolvimento
sustentável das nações.
E, dessa forma, com o incentivo, a proteção e a gestão do conhecimento
assegurados pela propriedade intelectual, torna-se possível criar possibilidades de
transferência desses resultados à sociedade, estimulando, a partir disso, a inovação
tecnológica. O papel dos governos, na elaboração e na opção por políticas públicas
inclusivas terá que se pautar no incentivo ao desenvolvimento de pesquisas
nacionais visando ampliar a participação do país no contexto das descobertas e
inovações farmacológicas. Pois, apesar da repercussão positiva imediata da licença
compulsória, a dependência tecnológica continua em outras tantas áreas.
Portanto é preciso reconhecer que o licenciamento compulsório é uma
dentre outras possibilidades inclusivas que de longe pode ser encarada como única
solução. Ao se lançar um olhar sobre o futuro, é preciso começar a construir no
presente alternativas, buscando minimizar as limitações. Por isso, é necessário pensar
alternativas que superem a questão da dependência tecnológica, por exemplo,
facilmente verificada nos países que precisam se valer de recursos como o
licenciamento compulsório para garantir o acesso a medicamentos essenciais,
quando poderiam buscar desenvolver a inovação tecnológica no país.
No contexto atual, o licenciamento compulsório tem se revelado um
instrumento de eficácia em prol da saúde pública, que também teve por condão
revelar a necessidade de investimento maciço em pesquisas farmacológicas. Essas
devem ser ordenadas e planejadas a médio e longo prazo para que se possa colher
os frutos, como o do acesso inclusivo aos medicamentos, por meio de outras
possibilidades que permitam superar a dependência tecnológica de países como o
Brasil em relação a países mais desenvolvidos. Esse patamar pode ser alcançado se
houver um empenho político em termos de construção de políticas inclusivas, cuja
importância é inegável no espaço público construído pelas sociedades democráticas
modernas, permeado pela globalização.
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