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9.14.2010

VOCE CONFIA NOS MÉDICOS

Diversos indicadores apontam queda na credibilidade desses profissionais.
Mas governo e sociedade começam a se movimentar para acabar com a desconfiança dos pacientes

VÍNCULOS
A confiança nos médicos está abalada. Pesquisas começam a refletir essa queda no prestígio dos doutores. No Espírito Santo, onde o Instituto de pesquisa Futura faz um levantamento anual da credibilidade das profissões, a tendência é observada desde 2005. Naquele ano, 80% dos entrevistados declaravam-se confiantes nos médicos. Mas a taxa foi caindo até chegar aos 47,3%, registrados em 2009. Outro indicador, o recém-criado Índice de Valorização Humana (IVH), apontou que mais de um terço dos dois mil participantes do estudo reclamaram que há pouco interesse dos médicos durante o atendimento. O IVH foi criado pela equipe brasileira do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e está em fase experimental.

A desconfiança sobre o relacionamento dos médicos com a indústria de remédios, próteses e equipamentos hospitalares ajuda a corroer a imagem dos especialistas. “Muitos pacientes duvidam da isenção dos médicos na hora de receitar medicamentos ou indicar procedimentos”, diz o psiquiatra Cláudio Cohen, presidente da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas de São Paulo. As conclusões de um estudo feito a pedido do Conselho de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) com 600 médicos apresentaram informações importantes a respeito do problema. Em 12 meses, 93% dos médicos receberam brindes e benefícios das empresas farmacêuticas e de equipamentos, sendo que 37% aceitaram agrados com valor acima de R$ 500. O estudo revelou ainda que 48% dos médicos paulistas visitados por representantes da indústria passaram a prescrever remédios influenciados pelas recomendações feitas durante esses encontros. E 22% dos entrevistados admitiram saber de outros médicos que indicam procedimentos, medicamentos e próteses sem necessidade em troca de comissões ou vantagens.

A relação difícil com planos prejudica atendimento

As reclamações aos organismos de defesa e os processos expressam os dissabores dos usuários. No Cremesp, houve uma discreta elevação no número de processos iniciados. Em 2008, foram abertos 2.815 processos contra médicos. Em 2009, houve 3.009 processos.
O problema é que a ação desses conselhos não ameniza a desconfiança dp público. Um dos motivos é o arquivamento das queixas. Apenas 20% das denúncias recebidas pelo Cremesp são acolhidas – elas só são aceitas se houver infração ao Código de Ética da categoria. No ano passado, de 600 médicos julgados, 300 foram condenados. Isso reforça a ideia da prevalência do corporativismo. Segundo o Cremesp, porém, a condenação é ainda menor na Justiça comum, beirando os 30%.

"Alguns pacientes chegam muito defensivos à consulta"
David Uip, infectologista

As consequências da crise de confiabilidade são visíveis. Inseguros, os pacientes peregrinam por consultórios em busca da confirmação do diagnóstico. O caso de Felipe, 15 anos, filho do engenheiro Hélio Batista, 41, resume bem a situação. O jovem tem um problema ósseo no joelho direito e recebeu indicação de cirurgia. “Depois da terceira opinião, descobri que a operação seria desnecessária”, diz o pai. Existem também médicos que se opõem ao direito de o paciente buscar outras opiniões. Os mais radicais avisam que deixarão o caso se a pessoa quiser outra avaliação. E quem sofre, mais uma vez, é o paciente. “Há risco de agravamento da doença”, diz o médico Antônio Carlos Lopes, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Os especialistas sentem a mudança de comportamento. “Alguns pacientes chegam muito defensivos à consulta”, diz David Uip, diretor do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo. A percepção é que a imagem do profissional da medicina mudou de forma definitiva. “As pessoas descobriram que o médico não é infalível. Acabou a confiança incondicional”, diz Fernando Lefèvre, da Universidade de São Paulo. E muitos médicos começam a se questionar. “Do jeito que está, a profissão deveria mudar de nome para ‘técnico em saúde’, já que raramente há o verdadeiro cuidado com o paciente”, diz Fábio Miranda, presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira.

Uma crise com esta profundidade é fruto do acúmulo de problemas. “Os médicos estão em um contexto que leva a uma avaliação negativa do seu desempenho”, diz Roberto D’Ávila, presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM). Uma das razões é a relação dos médicos com os planos de saúde. Entidades da categoria calculam que eles ganham em média R$ 6 por paciente, depois de descontar as despesas do consultório. “Isso leva a duas consequências: ou o profissional deixa o convênio ou é obrigado a atender muita gente, o que dá pouco tempo a cada um”, diz o médico José Luiz Gomes do Amaral, presidente da Associação Médica Brasileira.

Outro motivo importantíssimo é a formação, que muitas vezes deixa a desejar. Primeiro por causa da própria evolução da medicina. “Ela muda rapidamente por causa da incorporação da tecnologia, o que dificulta o aprendizado e o tipo de médico a ser formado”, diagnostica o ex-ministro Adib Jatene. Depois, pela qualidade questionável de várias faculdades. Hoje no País há 180 escolas de medicina, muitas sem hospital ou docentes contratados. Dentre elas, 98 foram abertas depois de 1996, entre os governos de Fernando Henrique e Lula. Uma das justificativas para esse “boom” é que haveria falta de médicos no Brasil. Não é verdade: dados do CFM mostram que no período 2000–2009 a quantidade de médicos cresceu 27%, enquanto a população aumentou 12% (IBGE).


O resultado da proliferação indiscriminada é conhecido. Provas realizadas pelo Cremesp e por entidades médicas do Rio Grande do Sul evidenciam o péssimo nível de formação. Em regiões em que o ensino é considerado menos ruim, cerca de 60% dos estudantes do sexto ano não têm conhecimento suficiente e foram reprovados neste exame.

Porém, começam a surgir iniciativas para enfrentar cenários tão complicados. O governo federal, por exemplo, assegura que resolveu conter a expansão de escolas. “Invertemos essa tendência desde 2007”, diz Maria Paula Dallari Bucci, do Ministério da Educação. Agora, só têm chance de abrir as escolas que estiverem conveniadas a um hospital. E, desde 2008, a Comissão de Avaliação das Escolas Médicas, criada pelo ministério e presidida por Jatene, fiscaliza as escolas. Quinze faculdades de medicina estão sob supervisão e sofreram uma redução global de 730 vagas. Quatro tiveram seus vestibulares suspensos e podem fechar.
Na academia, há um esforço para adequar a formação do médico às necessidades atuais. A USP, por exemplo, incorporou à sua grade curricular disciplinas de bioética e a obrigatoriedade de participar de atividades nas Unidades Básicas de Saúde, da rede pública, desde o início do curso. Isso foi há oito anos. A diferença aparece na maneira como os médicos que estão se formando lidam com o doente. “Procuro descobrir o que o paciente conhece sobre a doença que tem e levar em consideração os seus direitos. Um deles é tirar suas dúvidas”, diz o quintoanista Arthur Danila, 22 anos, que estará formado em 2011. O Cremesp quer que o exame que formula, e hoje é prestado voluntariamente pelos estudantes no final do curso, se torne obrigatório. Já o CFM defende a aplicação de provas que avaliam se o aluno conseguiu apreender os novos conceitos relativos a um período. O teste é aplicado na Universidade Estadual de Campinas, na Universidade Estadual Paulista e na USP.

Mudanças também são esperadas na residência médica, a etapa seguinte à graduação, cumprida com o objetivo de obter uma especialização. Na USP, foi introduzida uma prova prática. “O aluno atende um ator para que possamos avaliar seus conhecimentos e o jeito de lidar com o paciente”, diz o médico Luís Yu, coordenador da residência da universidade. Quanto à atualiação profissional, os médicos formados depois de 2006 precisam revalidar, a cada cinco anos, o diploma de especialistas. Quem se formou antes o revalida se quiser.

Em termos individuais, há quem busque segurança à moda antiga. A empresária Helô Pinheiro resgatou a figura do médico de família depois que o filho Fernando, hoje com 30 anos, sofreu uma lesão cerebral aos três meses de idade por erro médico. Após o problema, ela recorreu ao pediatra Roberto Brunini, que passou a cuidar da saúde de toda a família. “Desde então, só procuro especialistas indicados por ele”, conta. E também há os que procuram apoio nas comunidades de pacientes na internet. São espaços de troca de informações. “Elas representam um meio de o indivíduo recuperar o conhecimento sobre a sua saúde”, diz Fernando Lefèvre, da USP.

Francisco Alves Filho e Mônica Tarantino
Isto é

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