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12.22.2010

Contra a ditadura da saúde

Entrevista

Para o psiquiatra Jonathan Metzl e seus colegas, nosso conceito de saúde traz julgamentos morais embutidos e é uma forma de discriminar certos grupos de pessoas

Governo espanhol aprova uso de imagens de advertência sobre os males do tabagismo nas embalagens de cigarro. As fotografias causaram polêmica no país pelo forte apelo visual. Os fabricantes terão um prazo máximo de doze meses para adotá-las. Governo espanhol aprova uso de imagens de advertência sobre os males do tabagismo nas embalagens de cigarro. As fotografias causaram polêmica no país pelo forte apelo visual. Os fabricantes terão um prazo máximo de doze meses para adotá-las.
"Criamos uma ideia de que fumantes são cidadãos de segunda classe. As pessoas olham para eles e dizem: 'Você é uma má pessoa porque fuma'. Tudo isso começou como uma questão de saúde e se desvirtuou para um julgamento moral"
Eles são vistos como "inimigos da saúde", mas é preciso cautela para entender a questão. Eles não têm nada contra a penicilina, pesquisas com células-tronco  ou protetor solar. Trata-se apenas de um grupo de médicos e acadêmicos que se levantou contra o que chama de "ditadura da saúde moderna", sob a qual se esconderiam preconceitos. Os argumentos do grupo estão reunidos no livro Against Health - How Health Became The New Morality (Contra a saúde: como a saúde virou a nova moralidade), recém-lançado pela editora da New York University e ainda sem versão em português. A obra é organizada por um dos "inimigos da saúde", o psiquiatra norte-americano Jonathan Metzl, que escreve para a Harvard Review of Psychiatry, revista de psiquiatria da renomada universidade norte-americana. Na entrevista a seguir, ele comenta as amarras que a "noção distorcida" de saúde impõe às pessoas, impedindo-as por vezes de aproveitar os prazeres da vida.
Divulgação
Jonathan Metzl
Jonathan Metzl é psiquiatra e também autor dos livros The protest psychosis: how schizophrenia became a black disease (2010, Beacon Press); e Prozac on the couch: prescribing gender in the era of wonder drugs (2003, Duke University Press)
Por que ser “contra a saúde”? Espero que fique claro que não somos contra o bem-estar das pessoas. Estamos protestando, sim, contra certo uso da ideia de saúde que embute suposições cegas e julgamentos de valor.
O senhor poderia dar um exemplo disso? Isso é perceptível na maneira como às vezes nos dirigimos aos gordos. Dizemos: “A obesidade é prejudicial à sua saúde”, quando, na verdade, não queremos dizer que essa pessoa tenha alguma doença, mas que é preguiçosa ou desprovida de força de vontade. Nos Estados Unidos, é normal até mesmo associar gordura a um certo senso de sub-humanidade. É uma forma inaceitável de discriminação. Algo semelhante acontece quando vemos uma mãe alimentando um bebê com uma mamadeira e pensamos: “Leite materno é mais saudável para a criança.” Na verdade, estamos supondo que aquela mulher não é uma boa mãe. Nesses e em outros casos, apelar à saúde nos permite fazer um bocado de suposições morais. E a definição de nossa própria saúde também depende de como julgamos a dos outros.
A obesidade traz riscos reais ao organismo. Não devemos alertar as pessoas sobre eles? Sim, há riscos ligados à obesidade. Mas uma parte deles foi grandemente exagerada. Aquilo que chamamos de fat panic (pânico da gordura), que acontece aqui nos Estados Unidos, está muito mais baseado em argumentos estéticos do que em ciência. As teorias sobre a morte precoce dos obesos não estão se sustentando: eles vivem tanto quanto outras pessoas.

livro “Contra a saúde: como a saúde virou a nova moralidade” (NYU Press)
 
E quanto aos fumantes? Como o senhor vê as leis que têm sido aprovadas em todo o mundo, criando áreas restritas para eles? É indiscutível que fumar faz mal para a saúde, e nós concordamos que as pessoas não devem fazê-lo. Porém, criamos uma ideia de que fumantes são cidadãos de segunda classe. São forçados a se isolar, e as pessoas olham para eles e dizem: “Você é uma má pessoa porque fuma”. Esse argumento, que começou como uma questão de saúde, se desvirtuou para um julgamento moral. E é reforçado pela exclusão física dos fumantes. Muitas das leis antifumo são importantes, mas é preciso retomar as origens do argumento, quando ele era realmente de saúde.
O senhor cita em seu livro que, em 1970, o filósofo austríaco Ivan Illich já criticava a preocupação excessiva com a saúde. O que mudou desde então? Houve uma grande crítica à saúde nos anos 60 e 70. Naquela época, as pessoas recriminavam os médicos, dizendo que eles tentavam controlar as pessoas. É engraçado reler esses artigos porque, hoje, os médicos são muito menos poderosos. O que esses filósofos não previram foi o poder de influência das indústrias farmacêuticas e companhias de seguro. Elas ganharam um grande poder de decidir o que é e o que não é saudável. E muitas vezes é mais uma questão de negócios do que de saúde.
Por que o argumento da vida saudável é tão forte atualmente? Talvez as pessoas sintam a necessidade de controlar o próprio corpo porque elas têm medo. Existem tantas coisas imprevisíveis — podemos desenvolver um câncer ou sofrer um acidente de carro — que é muito mais fácil nos iludir do que assumir nossa vulnerabilidade. As pessoas acham que se comermos as coisas certas controlaremos tudo. Ao mesmo tempo, elas também estão mais bem informadas sobre saúde, logo, têm mais com o que se preocupar. Existe uma infinidade de informações facilmente acessíveis sobre o assunto e um excesso de comerciais farmacêuticos, ao menos nos Estados Unidos. Muitos desses comerciais passam a impressão de que todos estamos, de alguma maneira, doentes. As pessoas têm entrado em meu consultório já pedindo determinado remédio, alegando que têm doenças que elas nem sequer sabiam que existiam, mas viram na TV.
Como livrar-se da obsessão por saúde? Não pregamos que as pessoas não devam se cuidar, mas apenas que não devem se esquecer de investigar os valores que associam à sua noção de saúde. Também pedimos aos médicos e ao público em geral que estejam atentos ao papel das indústrias farmacêuticas e que, ao serem divulgados novos produtos, reflitam sobre qual é, na verdade, a doença e qual a necessidade real de um tratamento.
Como o senhor definiria uma pessoa saudável e feliz? Existe uma linha geral de pensamento hoje que parece sugerir que saúde e felicidade caminham juntas. Talvez esse não seja o caso. Pessoas que fumam podem ser felizes, pessoas acima do peso podem ser felizes. Existem várias fontes de felicidade no mundo. Parte disso é definida pela sua condição médica, mas outra grande parte é determinada por sua família, pelas coisas que você gosta de fazer. Nós nos tornamos tão obcecados por saúde que esquecemos o sabor da boa comida e as delícias de diferentes coisas. Nós esquecemos o conceito de prazer.

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