Lipovetsky e Serroy abordam os sintomas da desorientação da sociedade, vinculada à falência de valores fundamentais e à mudança radical de referências básicas | ||||||
por Maria Consuêlo Passos | ||||||
Os autores são conhecidos por seu olhar crítico sobre as questões sociais. Filósofo e pesquisador, Lipovetsky tornou-se conhecido no Brasil por livros como A era do vazio e A felicidade paradoxal. Jean Serroy – assim como o seu parceiro nesta obra, professor da Universidade de Grenoble – dedicou-se ao estudo da literatura e do cinema e suas repercussões na cultura. Os dois estabelecem uma parceria bem-sucedida que nos oferece um conjunto afinado de reflexões e prognósticos, num ritmo que torna a leitura ágil e instigante. Em muitos momentos o leitor pode ser impelido a participar ativamente do debate proposto. A fluidez das ideias suscita indagações, embora as colocações não pareçam ter a pretensão de convencer ninguém mas, ao contrário, potencializar novas ideias e indagações. Esse espírito começa com a nomeação do livro que, se por um lado marca a amplitude da proposta de pensar a sociedade interconectada não só em termos de lugares mas também de performances globais, por outro mostra como essa vastidão do mundo globalizado precisa ser compreendida também em suas expressões locais. Lipovetsky e Serroy propõem um modo de ver questões sociais pela óptica da cultura – uma via capaz de produzir e regular relações. Essa proposta nos leva a considerar vários sintomas daquilo que os autores chamam de desorientação da sociedade, algo que não se deve apenas a uma falência dos valores fundamentais do humano, tampouco a um empobrecimento dos fundamentos que organizam as leis, o poder e o saber. Para eles, tal desorientação se deve a uma espécie de mudança radical nas referências básicas, que surge com a nova ordem mundial. Quatro elementos, responsáveis pelo perfil dos tempos atuais, regem esse fenômeno: o hipercapitalismo (como força que sustenta a globalização financeira); a hipertecnicização (que embasa a difusão da técnica); o hiperindividualismo (que promove a ideia de superioridade do indivíduo sobre o coletivo) e o hiperconsumo (como fonte da busca incessante pelo prazer de comprar, possuir). Assim, segundo os autores, “esses princípios organizadores dominantes fizeram nascer uma cultura-mundo sem precedents na história, geradora de um novo mal-estar na civilização, de uma nova relação cultural”. Eles reconhecem a existência de “uma cultura-mundo que não reflete o mundo, mas o constitui, o engendra, o modela, o faz evoluir, e isso de maneira planetária”. Os sofrimentos psíquicos visíveis no cotidiano revelam malefícios que esses princípios têm provocado. A fragilidade e a vulnerabilidade dos indivíduos causam aumento descontrolado do uso de drogas, depsicotrópicos e de cartões de crédito. Vivemos em um estado de “miséria subjetiva”, sem nos dar conta de que o consumo apenas apazigua temporariamente nossas verdadeiras faltas de afeto e reconhecimento de nossa própria presença no mundo. Embora as precárias condições de subjetivação sejam hoje patentes deflagradoras de degradação da dignidade pessoal, não se pode deixar de evidenciar o potencial humano para resistir e transformar adversidades. E é justamente para esse paradoxo que os autores chamam a atenção do leitor, assinalando que, embora a cultura-mundo expresse a universalização das experiências humanas, também há nela lugar para as singularidades culturais e suas potencialidades para as recriações das relações e expressões de afeto. Neste sentido, eles afirmam: “A lógica do hiperconsumo decerto é dominante, mas não onipotente. Evidentemente, esse processo não chega ao seu próprio fundo: criar, fazer melhor, progredir, tudo isso não foi de modo algum eliminado. Em primeiro lugar, por razões antropológicas: o homem não pode ser analisado independentemente dessa vontade de superação de si que Friedrich Nietzsche chamava de 'vontade de poder'”. Essa parece ser uma inflexão importante que pode reverter certa tendência que aponta o caos como destino inevitável para o futuro da humanidade. Na leitura feita por Lipovetsky e Serroy, é possível pensar em outra face dos fenômenos contemporaneous considerados nefastos. Contrapondo-se à noção de uma humanidade passiva, que autofagicamente consome aquilo que a destrói, os autores mostram que, embora a cultura do hedonismo prevaleça hoje, temos condições de barrá-la. E alertam: é preciso criar os contrapesos que nos permitam empreender a “cultura do futuro”. Para isso, é fundamental levar em conta que, para além da globalização, há a subjetividade capaz de expressar contradições, ambivalências e paradoxos. Diante disso, não é possível escamotear tensões e sofrimentos psíquicos – apenas o enfrentamento nos permitirá buscar nova ordem para o mundo. Assim, da desorientação que nos aflige pode brotar um conjunto de movimentos capazes de viabilizar outra orientação. Uma sugestão deixada pelos autores é abrir se para diferentes frentes que tenham como diretrizes gerais a valorização das potencialidades dos indivíduos, a flexibilização e disponibilidade para o outro. Enfim, o cultivo de valores e referências que sustentem a reinvenção da vida, por meio do diálogo e da descoberta de si mesmo. Aí está nosso desafio... | ||||||
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