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5.16.2012

As alegrias do corpo

Felicidade física não se obtém apenas transando, comendo ou dormindo

Intelectuais e sedentários adoram ironizar as pessoas que fazem exercícios. Parece que quem corre, nada ou joga tênis é menos inteligente ou menos interessado em sexo do que as pessoas que não fazem nada. Ouvindo um deles falar, é possível imaginar que enquanto eu faço ioga e você caminha, ele está arfando na cama com três modelos – ou debruçado, de testa franzida, sobre um tratado de filosofia alemã.
Não é nada disso, claro. Há intelectuais que gostam de se exercitar exaustivamente e gente que transa intensamente e salta da cama às 6 da manhã para malhar. Da mesma forma como há sedentários que nadam em sexo e idiotas assexuados que só fazem exercícios. Na vida real há de tudo e tudo se mistura. Estereótipos não se aplicam.
Tenho a impressão que as pessoas que criticam os exercícios ainda não descobriram as outras alegrias do corpo. Felicidade física não se obtém apenas transando, comendo ou dormindo. Há um enorme prazer em transpirar, aprender movimentos complexos ou educar braços e pernas a resistir e avançar. Tira-se enorme satisfação pessoal da disciplina e da dedicação física. Aprende-se com ela, muda-se com ela, melhora-se com ela. E dela se extrai alegria.
Claro, os críticos gostam de apontar a vaidade exagerada de quem vai à academia ou ao estúdio de pilates. Falam como se eles mesmos não tivessem vaidade alguma, mas vivessem cercados por legiões de narcisos suarentos. Pura bobagem. Quem pratica alguma forma de exercício com dedicação sabe que isso não é um meio, é um fim. O cara levanta cedo para correr porque gosta. A garota que vai todo dia fazer ioga num bairro distante sente que isso muda a vida dela. Essas pessoas dormem melhor, comem melhor e trabalham melhor. Sentem-se bem fazendo o que fazem. Mudam por dentro. Ficar mais forte, mais magro e mais rápido é consequência, não essência. Tanto é assim que quando o corpo começa a enfeiar por causa do exercício exagerado, as pessoas não param. O barato principal não é estético.
Tendo presenciado o nascimento da onda do corpo nos anos 70, eu estou em paz com ela. Não me incomoda viver cercado por diferentes gerações de pessoas que acham o corpo importante e gostam de falar sobre o que fazem com ele. Há uma cumplicidade nisso que vai além da frivolidade. É o reconhecimento de que o corpo contém uma dimensão importante da nossa existência. Viver bem com ele, cuidar dele, envelhecer em paz com ele é parte essencial da experiência de estar vivo. No passado, as pessoas se destruíam ou se largavam da maneira mais triste, por ignorância ou modismo. Isso não acabou, mas diminuiu.

Como toda coisa boa, a valorização do corpo tem efeitos negativos. Há o culto exagerado à perfeição física, que banaliza a vida das pessoas (sobretudo as mulheres) e as torna dramaticamente infelizes. Há o preconceito contra as pessoas que não cabem no padrão e são discriminadas ou ignoradas. Há, sobretudo, uma forma de privação sexual e afetiva que me parece das mais perversas – e exige um pouco mais de discussão.
Acho que quando as pessoas se tornam excessivamente preocupadas com o corpo perdem parte importante e espontânea da sexualidade. Começam a condicionar o seu desejo a certo tipo de corpo da parceira ou do parceiro. Se for gordinha ou magrinha demais, não serve. Se for muito baixo ou tiver pernas curtas, não rola. Se faltar peito, bunda ou barriga durinha, não dá. Pior ainda, as pessoas voltam essas exigências contra elas mesmas. Se estiverem flácidas ou acima do peso, não transam e nem tiram a roupa na frente dos outros. Nem saem na rua, na verdade.
Esse tipo de restrição física vai contra a essência do próprio sexo. Ele não depende de beleza ou rigidez. Claro que gente bonita é mais atraente, mas há 600 mil maneiras de ser atraente que não passam pela padronização da beleza. O desejo é anárquico, a libido circula por canais invisíveis aos olhos. Os corpos podem provocar e extrair prazer mesmo fora de forma, mesmo fora de padrão, mesmo fora de moda. O gozo é fisicamente democrático. O tesão profundo envolve a personalidade do outro. É um tremendo equívoco, um enorme empobrecimento restringir os parceiros com base em estereótipos de boa forma. Quando se faz isso, muito prazer fica de fora. Talvez a maior parte dele.
Tenho um amigo uruguaio, mais velho, que gosta de repetir, em tom de comentário social, um velho bordão da sua juventude: o corpo é a alegria dos pobres. Isso é de um tempo em que os pobres não tinham direito a prazer algum, a diversão alguma que não fosse o sexo. Esse cenário de miséria está lentamente acabando entre nós. Mas eu gosto da frase. Acho que ela pode ser adaptada para esses novos tempos. Podemos dizer, quase utopicamente, que o corpo é a alegria de todos. O corpo que faz exercícios. O corpo que faz sexo. O corpo que trabalha, pensa, estuda. Um corpo inteiro na vida, em todas as suas dimensões.Um corpo capaz de ser feliz, em todos os sentidos.

O estranho ao lado

O mistério das pessoas que amamos precisa ser respeitado

Na noite passada, como em todas as noites, tive sonhos estranhos e tumultuados, que nada têm a ver com as pessoas que vivem ou convivem comigo. Minha impressão, diante dessa experiência repetida, é que esses sonhos são construídos, meticulosamente, para excluir a realidade. São feitos com um material que segrega o mundo prático e reflete, quase exclusivamente, a nossa subjetividade. Eles são uma reafirmação feroz da nossa individualidade, uma rejeição visceral, biológica, das tentativas humanas de vincular, unir e dissolver. Sugerem que, lá dentro, estamos sozinhos, ainda que amemos e sejamos amados aqui fora.
Mesmo que seja um bocadinho melancólica, essa constatação ajuda e entender algo fundamental na vida dos casais: a impossibilidade de juntar tudo e dividir tudo, a insanidade absoluta de tentar viver como se dois fossem um.
Assim como na Física há uma lei segundo a qual dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo, deve haver outra lei, no universo subjetivo, que impede duas individualidades de viverem a mesmíssima vida. Tenho a impressão que a insistência em contrariar esse princípio está por trás de muitos e graves desencontros por aí.
Desde a adolescência, e provavelmente ainda antes, somos alimentados com a ilusão de que um dia encontraremos alguém com quem iremos nos fundir. A tal pessoa, aquele, a mulher da nossa vida, o príncipe encantado – todos esses são agentes do destino que teriam a função, na nossa história pessoal, de rasgar a couraça da individualidade, penetrar nosso casulo e nos salvar, de forma permanente, da horrível solidão de ser um indivíduo. A partir desse momento redentor, a nossa dor fundamental seria superada e seríamos, então, felizes para sempre. No outro.
Algumas vezes, mesmo na vida real, chegamos perto desse estado idílico de aniquilação. É quando estamos apaixonados. Nesse momento mágico – e, segundo o Freud, patológico - nossos sentimentos em relação ao outro são tão violentos que parecem romper o isolamento essencial. Em tal estado de comoção de ser parte do outro. Se ele se afasta, sentimos dor. Se ele está perto, sentimos prazer. Parece ser impossível viver sem ele, porque se tornou parte de nós.
No filme “O morro dos ventos uivantes”, com Laurence Olivier, a jovem apaixonada diz ao rapaz “Eu te amo”, e ele responde “Eu sou você”. Não existe na literatura ou no cinema uma declaração de amor mais radical do que essa. 
Há outro momento em que também nos sentimos perto desse sentimento. É no sexo. Em meio ao prazer, aquilo que nós somos desaparece temporariamente em direção ao outro. Mergulhamos numa torrente tão intensa que, por alguns minutos, não somos mais que o conjunto daquelas sensações. Há uma pequena morte aí, um breve suicídio prazeroso no qual mergulhamos felizes, levado pelo corpo e pela personalidade do outro.
Mas esses momentos são terrivelmente efêmeros, não? Mesmo a mais intensa paixão é passageira. Cedo ou tarde, ainda que contra a nossa vontade, somos arrastados de volta à normalidade de sermos apenas um. Logo chega o momento em que é preciso negociar com a personalidade do outro, com a percepção do outro, com o desejo do outro. Com isso se desfaz a ilusão de pertencer. Deparamos, de novo, com a nossa assustadora e iniludível solidão interior. Sabemos disso, vivemos isso desde crianças, mas uma parte de nós continua sonhando com uma paixão tão arrebatadora, tão dominante, que nos livre para sempre de nós mesmos. Crescer, eu acho, é deixar também essa fantasia para trás.
Alguns recusam isso terminantemente. Insistem em esperar pelo sonho ou – muito pior - tentam transformar a vida real a dois num exercício de destruição das personalidades. Fazemos tudo juntos, pensamos o mesmo, gostamos das mesmas coisas, compartilhamos as mesmas experiências, dizem. Na boa ou na marra, vão arrastando o outro a uma vivência que é uma réplica da sua. Até o ponto em que, de tão parecidos, não tenham mais nada a contar um ao outro. Então se separam.
Estou exagerando? Claro que sim. Mas, mesmo entre pessoas que não vivem na caricatura, o impulso comum de controlar o outro faz parte do movimento de negação da individualidade. Ele se recusa a reconhecer o outro com as suas necessidades próprias, sua existência fora de nós. O desejo de aprisionar é o impulso de se proteger do outro, que, insistindo em ter vontade própria, pode fazer algo que nos machuque.
Enfim, acho que é disso que os sonhos falam. Da nossa vontade de ser forte como indivíduos e do nosso medo oceânico de nos desligarmos dos outros. Da contradição entre a vontade de crescer e o impulso de permanecer um bebê chorão, ligado ao outro por um cordão umbilical. Os sonhos contam que o amor, lindo que é, essencial como possa ser, não nos salva de sermos nós mesmos. Mesmo quem respira suavemente ao nosso lado, adormecida, tem sonhos separados dos nossos. É uma pessoa estranha que amamos, mas sobre a qual nunca saberemos o suficiente. É preciso respeitar esse mistério.
Ivan Martins -Época

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