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6.26.2012

"Hoje não existe escassez de alimentos"


José Graziano

Diretor-geral da ONU para a Alimentação e a Agricultura, o brasileiro diz que 900 milhões de pessoas passam fome no mundo por falta de acesso à comida
por Rachel Costa

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“A FAO é como o Titanic, um navio
grande e pesado. Estamos no processo
de girar essa embarcação”
, diz ele
José Graziano, 62 anos, sempre esteve na trincheira do combate à fome. Agrônomo de formação, foi ele o responsável pelo desenho do programa Fome Zero, em 2001, durante a campanha eleitoral presidencial. Eleito Luiz Inácio Lula da Silva, Graziano, em um movimento natural, foi para o governo comandar a implementação e o desenvolvimento do programa, no qual permaneceu até 2006. O sucesso da iniciativa gabaritou o agrônomo para voos maiores e, em 2011, ele disputou e ganhou a eleição para o cargo de diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), sagrando-se como o primeiro brasileiro a ocupar o cargo. Nem só ao combate à fome, porém, se restringem as preocupações atuais de Graziano. Um de seus maiores desafios é criar interlocução entre os problemas de segurança alimentar e questões ambientais – assunto que ele irá tratar neste mês durante a conferência Rio+20.
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"As práticas e os padrões de consumo são
insustentáveis. Hoje, usamos 15 mil litros de
água para produzir um quilo de carne"
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"Bill Gates disse que todo o sistema de governança da
agricultura e da alimentação global é obsoleto e ineficiente.
A afirmação é radical, mas concordo com ele"
Istoé - Não temos tido muitos avanços nas conferências sobre as mudanças climáticas. Devemos esperar mais êxito da Rio+20?

José Graziano -
Vejo a Rio+20 não como um ponto de chegada, mas de partida para um mundo mais sustentável. Será uma oportunidade para fazer convergir as agendas da mudança climática, da sustentabilidade e da segurança alimentar. Essas agendas precisam estar interconectadas porque não vamos chegar a lugar nenhum enquanto 900 milhões de pessoas estiverem sobrevivendo com fome. 
Istoé - Por que é importante discutir a fome no contexto ambiental?
José Graziano -
Mais de 70% da população extremamente pobre vive em áreas rurais e depende do uso de recursos naturais para garantir o pão de cada dia. Você não pode pedir a esses pequenos produtores que não derrubem uma árvore para produzir lenha, deixem de fazer uma queimada para preparar o solo para o plantio ou parem de pescar na época do defeso. Não sem lhes dar uma opção. 
Istoé - As mudanças climáticas são realmente um ponto-chave?
José Graziano -
Sim. O mundo está contra a parede. Não há como negá-las, elas são uma realidade. Basta ver as ilhas do Pacífico, cujo nível do mar sobe perigosamente, ou as ilhas do Caribe e da América Central, onde já está instituída a temporada de furacões. Isso acontece por causa de práticas e padrões de consumo insustentáveis e que precisamos mudar. Por exemplo, hoje, usamos 1,5 mil litros de água para produzir um quilo de cereais e dez vezes mais, 15 mil litros, para produzir um quilo de carne. Não poderemos alimentar nove bilhões de pessoas com esse padrão em 2050.
Istoé - Um dos riscos anunciados causados pelas alterações no clima nas últimas décadas é a escassez de alimentos, com posterior subida de preços. Essa é realmente uma ameaça?
José Graziano -
Não existe ameaça de escassez. Já temos, hoje, comida suficiente para alimentar toda a população do planeta. O problema que ainda afeta 900 milhões de pessoas é o acesso: as pessoas têm fome porque lhes faltam meios para obter os alimentos ou dinheiro para comprá-los. 
Istoé - Se a questão não é a produção, qual é o problema?
José Graziano -
O principal desafio é garantir as condições que permitam o acesso de todos aos alimentos. Naturalmente, porém, há também a pressão pelo aumento da produção. A FAO estima que teremos de crescer a produção agrícola em 60% até 2050, quando a população mundial deverá ultrapassar a marca dos nove bilhões de pessoas. 
Istoé - É possível promover esse aumento de 60% na produção até 2050 de maneira sustentável?
José Graziano -
Sim. Os sistemas de produção que causam menor impacto ao meio ambiente já existem e são acessíveis ao pequeno produtor. Exemplos são o cultivo direto, os sistemas agroflorestais, o controle biológico de pragas e a irrigação por gotas. A questão, porém, não se restringe apenas à produção: é preciso pensar o consumo e reduzir o desperdício. 
Istoé - Qual o impacto do consumo descontrolado e do desperdício sobre a fome?
José Graziano -
Ao mesmo tempo que há 900 milhões de pessoas subnutridas, outras centenas de milhões sofrem de sobrepeso e obesidade. Além disso, entre a produção e o consumo, perde-se anualmente cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos. 
Istoé - O fundador da Microsoft, Bill Gates, defendeu num evento o uso de tecnologia para aliviar a fome no mundo e criticou a FAO por ser um órgão obsoleto. O que o sr. tem a dizer?
José Graziano -
Estive com ele nesse evento, em Roma, e o recebemos aqui na FAO – temos um trabalho conjunto com a Fundação Gates. O que ele disse é que todo o sistema de governança da agricultura e da alimentação global – e isso inclui agências, governos e doadores, não apenas a FAO – é obsoleto e ineficiente. A afirmação é um pouco radical, mas em geral eu concordo com ele e estou trabalhando para mudar a situação. Mas discordo que a solução da fome no mundo seja basicamente um problema tecnológico. 
Istoé - Quais foram os principais desafios desses seis primeiros meses no cargo?
José Graziano -
A FAO é como o Titanic, um navio grande e pesado. Estamos no processo de girar essa embarcação dois graus à esquerda e estamos conseguindo. Mas, além das questões da própria FAO, temos hoje desafios no combate à fome bem diferentes daqueles do passado: já não basta apenas produzir mais, precisamos produzir – e consumir – de maneira mais sustentável; não basta entregar comida às famílias que vivem em áreas afetadas por secas e inundações, é preciso aumentar a sua resistência a choques e melhorar os meios de vida para que elas superem essas condições difíceis. São outras exigências.  
Istoé - O último coordenador da FAO, o senegalês Jacques Diouf, esteve à frente do órgão por mais de uma década. Uma gestão tão longa engessou o órgão?
José Graziano -
Nos últimos 36 anos a FAO teve apenas dois diretores-gerais. Com a reforma dos estatutos, agora só é possível uma reeleição para um total de cinco anos, o que é positivo. Além dessa questão, a FAO tem uma tendência de olhar para o próprio umbigo. É ilusão, porém, achar que, sozinha, a FAO ou qualquer outro organismo ou país vá acabar com a fome. Abrir a FAO a novos parceiros e aprofundar a cooperação com outras agências tem sido uma prioridade desde o primeiro dia do meu mandato.  
Istoé - Como a experiência com o Fome Zero ajuda na coordenação do órgão?
José Graziano -
Quase todos os líderes com os quais eu converso querem conhecer mais o programa e saber como ele pode ser adaptado às suas realidades. O Fome Zero é uma receita que deu certo no Brasil e mostrou que se avança mais rápido no combate à fome quando vontade política, mobilização social e políticas públicas caminham juntas. A FAO pode ser uma plataforma para compartilhar essa experiência com outros países. 
Istoé - A crise nos países ricos compromete as ações da FAO?
José Graziano -
De certa forma, sim. A FAO e muitos outros organismos dependem de contribuições voluntárias para responder a emergências. Por exemplo, em 2012, existe uma brecha de financiamento de US$ 239 milhões para as atividades propostas para a região do Chifre de África, no nordeste do continente, que há décadas tem as piores taxas de fome e pobreza no mundo, e o Sahel, a zona de transição entre o Saara e as savanas sudanesas. Isso tem nos obrigado a buscar alternativas: novos doadores, mecanismos inovadores de financiamento, a cooperação Sul-Sul.  
Istoé - O que pode ser feito de novo nessas regiões africanas para diminuir o problema? 
José Graziano -
O Chifre de África e o Sahel são áreas com secas recorrentes e não podemos evitá-las. Há, porém, como impedir que elas se transformem em famine, quando há escassez drástica de produtos alimentares. O problema é que, hoje, muitas vezes, a comunidade internacional só reage quando as situações críticas já se tornaram emergências. Precisamos parar com isso, parar de pular de crise em crise tentando apagar o fogo.  
Istoé - O que fazer então?
José Graziano -
As secas vão continuar, o que temos de fazer é mudar o modo de reagir a elas. Temos de colocar em prática estratégias de longo prazo que diminuam a vulnerabilidade das famílias rurais à estiagem. A FAO, junto do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), do Unicef e de outros parceiros, tem investido em mutirões de trabalho e programas de cupons de alimentos no Chifre da África. Dentro dessa lógica, a comunidade local ajuda a reconstruir a infraestrutura rural, construindo cisternas e canais de água, ao mesmo tempo que se cria a oportunidade para as famílias comprarem localmente a comida da qual precisam, o que estimula a produção local, dina­mizando a economia.  
Istoé - O continente africano pode ser autossustentável na produção de alimentos?
José Graziano -
Sim. O continente tem um enorme potencial produtivo agrícola e todas as condições para produzir comida em quantidade suficiente para alimentar toda a sua população. 
Istoé - Modificar vegetais geneticamente pode ser uma forma válida e de pouco custo para se erradicar a fome?
José Graziano -
Organismos geneticamente modificados não são uma bala de prata para acabar com a fome, mas também não devem ser descartados. Há um custo social, ambiental e econômico embutido em sua produção, que precisa ser estudado. Não podemos jogar fora o bebê junto com a água suja. 

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