Em vez de criar uma nova personagem, a atriz faz a paródia de Sônia Braga
Nacib suspira com o público brasileiro: “Como viver sem o calor de
Gabriela?” A resposta é que é impossível vivermos sem ele. Daí Gabriela
voltar agora no corpo da atriz Juliana Paes na nova novela das 23 horas
da TV Globo, com direção de Mauro Mendonça Filho. Gabriela é uma das
personagens femininas mais completas do romance brasileiro. A mulata de
15 anos, ancas, pernas e peitos exatos em rosto de menina, rescendendo a
fragrâncias tropicais, sensualidade e doçura, mas também fazendo o que
quer, dormindo com homens sem se prender a eles – ou, como escreveu
Jorge Amado no romance Gabriela, Cravo e Canela, um dos maiores
best-sellers do Brasil, publicado em 1958 e com mais de 60 edições só
em português: “Mulher tão de fogo no mundo não havia, com aquele calor,
aquela ternura, aqueles suspiros, aquele langor. Quanto mais dormia com
ela, mais tinha vontade. Parecia feita de canto e dança, de sol e luar,
era de cravo e canela...”
Mas será que a Gabriela que vemos agora na televisão é a mesma descrita
tão intensamente no romance? Antes de mais nada, é preciso entender de
que tipo de reencarnação de Gabriela se trata. Para isso, temos que nos
debruçar no método de criação do autor. É interessante como os grandes
personagens escapam do controle de seus autores, adquirem vida própria e
ganham o mundo, como se passassem a existir de fato. No setor das
fêmeas fatais, são tantos os casos: Madame Bovary, de Gustave Flaubert,
Capitu, de Dom Casmurro, de Machado de Assis, a chilena traiçoeira Lilly, de Travessuras da menina má, de Vargas Llosa.
Gabriela é filha do anseio de liberdade de Jorge Amado. Em meados dos
anos 50, ele rompera informalmente com o Partido Comunista, depois de
assistir à misteriosa desaparição de um punhado de colegas soviéticos e
tchecoslovacos. A publicação de Gabriela marca sua renúncia ao modelo de ficção realista socialista. O que não quer dizer que tenha abdicado do aguilhão crítico. Gabriela, Cravo e Canela não
é apenas uma “crônica de uma cidade do interior”, como informa o
subtítulo do livro, com suas paisagens e galeria de tipos pitorescos. A
narrativa promove uma sátira à contradição entre os padrões arcaicos de
poder dos coronéis oligarcas e a nascente mentalidade progressista em
uma cidade baiana que cresce economicamente com a cultura do cacau os
anos 1920. Gabriela, a cozinheira do turco Nacib, aparece nesse palco
turbulento como a suprema transgressão. Ela é fatal porque exerce o sexo
livre em um ambiente hostil, povoado por solteironas moralistas, padres
inflexíveis, prostitutas carolas, coronéis violentíssimos e machões de
toda espécie. Gabriela quer amar os “moços bonitos” da cidade. Nem mesmo
o amor de Nacib a impede de se aventurar em camas variadas. O machão
Nacib tem diante de si um desafio: como aguentar os chifres, perdoar
Gabriela e voltar a viver em paz com ela?
Ora, esse dilema moral retorna à TV na nova adaptação. Mas isso não
parece ser importante. O que importa é como viver uma Gabriela que faça
frente à adaptação de 1975. A dúvida do público mais velho é se Juliana
conseguiria dar conta do papel que pertenceu a Sônia Braga. Mas é
impossível Juliana ofuscar a interpretação de Sônia Braga.
Entre muitas razões para isso, a principal delas é que Juliana não
interpreta Gabriela, mas sim interpreta Sônia Braga como Gabriela. E o
faz conscientemente, até por não ter a pretensão de ultrapassar a
célebre antecessora. Assim, a nova novela é menos uma leitura nova do
romance de Jorge Amado do que um remake da versão de 1975, com a trilha
original e a composição de muitos personagens. O adaptador Walcyr Carrasco
fez algumas modificações para se demorar em aspectos desprezados na
versão de Walter Avancini dos anos 1970, e Mendonça Filho criou cenários
e figurinos bem mais elaborados que os de Durst. Mas, ainda assim,
trata-se de uma releitura da telenovela, e não do romance que a
inspirou, Gabriela, Cravo e Canela, de 1958. Assim, o ator
Marcelo Serrado revive o Tonico Bastos, filho libidinoso do coronel
Ramiro Bastos, tal como foi criado pelo ator Fulvio Stefanini. Assim
como Serrado não traz muita novidade à composição do personagem, Juliana
Paes parece estar restrita a “citar” o papel construído por Sônia
Braga. Isso aprisiona seu desempenho como atriz. Ela reúne condições e
exuberância para criar uma nova Gabriela. Mas não pode.
Uma falsa questão foi levantada em torno do “physique du rôle”, as
condições viáveis e críveis para uma atriz interpretar determinado
papel, no caso o de Gabriela. Juliana Paes seria, aos 33 anos, muito
velha para viver uma personagem adolescente. Algo que Sônia Braga teria
feito bem na novela de 22 horas de 1975. Mas é preciso lembrar dois
fatos: Sônia então já tinha 24 anos. Por isso, o diretor Walter George
Durst cogitou em chamar uma atriz mais nova, Ana Maria Magalhães, para o
papel. Sônia acabou pegando o papel. E mesmo sem o tal “physique du
rôle”, ela triunfou como Gabriela. Tanto que voltou a defender com
talento a personagem no longa-metragem do diretor Bruno Barreto de 1983.
Curiosamente, Sônia estava com 33 anos, a idade de Juliana.
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Não há, portanto, nada que impeça Juliana de viver intensamente
Gabriela. Fisicamente, ela é um modelo mais exuberante, belo, simpático e
preciso da personagem. Mas aqui entra o dado histórico: Sônia Braga
personificou Gabriela de tal maneira que Jorge Amado sentiu-se
impossibilitado de imaginar Gabriela fora da pele da atriz paranaense.
Ora, dessa honraria Juliana não será merecedora, por mais que possa
fazer jus a ela. Quando um escritor confessa que sua personagem adquiriu
vida por causa de uma atriz, é como se ele passasse uma procuração
vitalícia à atriz. Por isso, a atitude mais prudente será esquecer
qualquer reinterpretação, ou então, como o faz Juliana, referir-se à
atuação “original” – que nada tem de original, uma vez que a primeira
Gabriela “atuou” na imaginação do escritor em meados dos anos 50 – e
apareceu pela primeira vez em papel, no romance. O desempenho original
de Gabriela no cérebro do autor e se perdeu, até porque o próprio Amado
desqualificou sua imaginação diante da verdade exposta por Sônia Braga.
Amado ignorou a versão de Zora Sljan apresentada em 1960, na TV Tupi,
com Janete Vollu no papel-título (e Paulo Autran como Mundinho Falcão).
Alguém lembra ou conhece a performance de Janete? Foi esquecida, como
certamente a de Juliana Paes ficará à sombra de Sônia.
Porque Sônia recriou, ampliou e corporificou a mulher fatal do
romancista. Ela tornou Gabriela doce e cítrica, tímida porém audaciosa. E
o olhar intenso, a vida interior que emprestou a Gabriela se afigura
inimitável. Tanto que Juliana Paes não consegue fazê-lo. Ainda que tente
se referir ao modelo original, Juliana é carioca, e faz Gabriela mais
sapeca, despreocupada e superficial. Sua expressão traz espanto, não
sedução maliciosa. O jeito de Juliana é outro, e estamos impregnados
pela alma sulina insidiosamente migrada para o Nordeste de Sônia Braga.
Há quem afirme que o tempo fará com que o público se acostume com
Juliana. Não acredito nisso. Toda vez que olharmos para Juliana, veremos
nela o espectro de Sônia. Juliana se apresenta como uma espécie de
paródia de Sônia – paródia no sentido literário do termo, de resultado
de uma plagiotropia consciente do paradigma inicial. Isso porque, como
diria um intelectual amigo meu, Sônia representa a clivagem, o ponto de
inflexão essencial na elaboração de uma personagem que nasceu de um
romance de Jorge Amado para conquistar o mundo real. Ela se apossou da
personagem, tomou-a para si e impediu futuras versões do personagem. E,
talvez, seja o único grande papel da longa carreira da atriz de 62 anos.
Não há como escapar da regra: Gabriela se tornou Sônia Braga – e
vice-versa. Por seu turno, Juliana se limita ao ofício utópico de
reinterpretar Sônia. Juliana Paes sofre da angústia da influência de
Sônia Braga. Ela tenta, mas se descobre incapaz de reavivar aquela
ternura, aqueles suspiros, aquele calor primitivo. Observando-a bem na
pele de Gabriela, seu olhar trai o tempo todo a ansiedade impotente de
se esgueirar do fantasma.
(Luís Antônio Giron
Juliana paes e a atriz mas formidável em todas ocasiões e muito especial para todos seus fãs e muito inteligentes com muito talento para passar para todos adversários vá em frente te desejo muitas fe paz amor união e felicidades junto com todas suas famílias muita saúde e prosperidade na sua vida profissional beijos
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