"O possesso revolvia-se aos seus pés, a
voz dentro dele pronunciara o até hoje impronunciado e calara-se, e
nesse instante, Jesus, como quem acabasse de reconhecer-se noutro,
sentiu-se, também ele, como que possesso, possesso de uns poderes que o
levariam não sabia aonde ou a quê, mas sem dúvida, no fim de tudo, ao
túmulo e aos túmulos. Perguntou ao espírito, Qual é o teu nome, e o
espírito respondeu, Legião, porque somos muitos. Disse Jesus,
imperiosamente, Sai desse homem, espírito imundo. Mal o dissera,
ergueu-se o coro das vozes diabólicas, umas finas e agudas, outras
grossas e roucas, umas suaves como de mulher, outras que pareciam serras
a serrar pedra, umas em tom de sarcasmo provocante, outras com
humildades falsas de mendigo, umas soberbas, outras de lamúria, umas
como de criancinha que aprende a falar, outras que eram só grito de
fantasma e gemido de dor, mas todas suplicavam a Jesus que os deixasse
ficar ali, nestes sítios que já conheciam, que bastaria dar-lhes ele a
ordem de expulsão e sairiam do corpo do homem, mas que, por favor, os
não expulsasse da região. Perguntou Jesus, E para onde querem vocês ir.
Ora, ali próximo do monte andava a pastar uma grande vara de porcos, e
os espíritos impuros imploraram a Jesus, Manda-nos para os porcos e
entraremos neles. Jesus pensou e pareceu-lhe que era uma boa solução,
considerando que aqueles animais deviam ser pertença de gentios, uma vez
que a carne do porco é impura para os judeus. A ideia de que, comendo
os seus porcos, poderiam os gentios ingerir também os demónios que
dentro deles estavam e ficar possessos, não ocorreu a Jesus, como também
não lhe ocorreu o que depois desgraçadamente aconteceu, mas a verdade é
que nem mesmo um filho de Deus, aliás ainda não
habituado a tão alto parentesco, poderia prever, como no xadrez, todas
as consequências dum simples lance, duma decisão simples. Os espíritos
impuros, excitadíssimos, esperavam a resposta de Jesus, faziam apostas, e
quando ela veio, Sim, podem passar para os porcos, deram em uníssono um
grito descarado de alegria e, violentamente, entraram nos animais.
Fosse pelo inesperado do choque, fosse por não estarem os porcos
habituados a andar com demónios dentro, o resultado foi enlouquecerem
todos num repente e lançarem-se do precipício abaixo, os dois mil que
eram, indo cair ao mar, onde morreram afogados todos. Não se descreve a
raiva dos donos dos inocentes animais que ainda um minuto antes andavam
no seu sossego, fossando nas terras brandas, se as encontravam, à
procura de raízes e vermes, rapando a erva escassa e dura das
superfícies ressequidas, e agora, vistos cá de cima, os porquinhos
faziam pena, uns já sem vida, boiando, outros, quase desfalecidos,
faziam ainda um esforço titânico para manter as orelhas fora de água,
pois é sabido que os porcos não podem fechar os condutos auditivos,
entra-lhes por ali a água em caudal e, em menos que um ámen, ficam
inundados por dentro. Os porqueiros, furiosos, atiravam de longe pedras a
Jesus e a quem estava com ele, e já vinham a correr aí com o propósito,
justíssimo, de exigir responsabilidades ao causador do prejuízo, um x
por cabeça, a multiplicar por dois mil, as contas são fáceis de fazer.
Mas não de pagar. Pescador é gente de pouco dinheiro, vive de espinhas, e
Jesus nem pescador era. Ainda quis o nazareno esperar pelos
reclamantes, explicar-lhes que o pior de tudo no mundo é o diabo, que ao
lado dele dois mil porcos não tiram nem acrescentam, e que todos nós
estamos condenados a sofrer perdas na vida, as materiais e as outras,
Tenham paciência, irmãos, diria Jesus quando chegassem à fala. Mas Tiago
e João não estiveram de acordo que se deixassem ficar à espera de um
recontro, que, pela amostra, não seria pacífico, de nada servindo a boa
educação e as boníssimas intenções de um lado contra a brutalidade e a
razão do outro lado. Jesus não queria, mas teve de render-se a
argumentos que ganhavam mais poder persuasivo a cada pedra que caía
perto. Desceram a correr a encosta para o mar, num salto estavam dentro
da barca, e, à força de remos, em pouco tempo se acharam a salvo, os do
outro lado não pareciam ser gente dada à vida da pesca, pois se barcos
tinham não estavam à vista. Perderam-se uns porcos, salvou-se uma alma, o
ganho é de Deus, disse Tiago. Jesus olhou-o como se pensasse noutra
coisa, uma coisa que os dois irmãos, olhando-o a ele, queriam conhecer e
de que estavam ansiosos por falar, a insólita revelação, feita pelos
demónios, de que Jesus era filho de Deus, mas Jesus virara os olhos para
a margem donde tinham fugido, via o mar, os porcos flutuando e
baloiçando-se na ondulação, dois mil animais sem culpa, uma inquietação
germinava dentro de si, buscava por onde romper, e de súbito, Os
demónios, onde estão os demónios, gritou, e depois soltou uma gargalhada
para o céu, Escuta-me, ó Senhor, ou tu escolheste mal o filho que
disseram que eu sou e há-de cumprir os teus desígnios, ou entre os teus
mil poderes falta o duma inteligência capaz de vencer a do diabo, Que
queres dizer, perguntou João, aterrado pelo atrevimento da interpelação,
Quero dizer que os demónios que moravam no possesso estão agora
livres, porque os demónios já nós sabíamos que não morrem, meus amigos,
nem sequer Deus os pode matar, o que eu ali fiz valeu tanto como cortar o
mar com uma espada. Do outro lado descia para a margem muita gente,
alguns atiravam-se à água para recuperar os porcos que boiavam mais
perto, outros saltavam para os barcos e iam à caça. Nessa noite, na casa
de Simão e André, que era ao lado da sinagoga, reuniram-se os cinco
amigos em segredo para debaterem a tremendíssima questão de ser Jesus,
segundo a revelação dos demónios, filho de Deus..."
("O Evangelho Segundo Jesus Cristo" - José Saramago)
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