Uma manhã de maio, abensonhada com chuva e palavras. Um escritor, tão grandioso na sua humildade. Um livro para as mulheres que se esqueceram que são gente
Conheci Mia Couto, o famoso autor
moçambicano, numa chuvosa manhã, durante a sua digressão pelo norte do país.
Mia promovia a sua mais recente obra – A
confissão da Leoa – e eu quis ver de perto alguém que me acompanha
ocasionalmente. Não, não sou a sua mais fervorosa fã (cabem tantos autores no
meu coração) e tampouco uma conhecedora profunda da sua obra (terei porventura
lido uns seis títulos?).
Em Mia surpreendeu-me o brilho do
olhar, como o de um menino maravilhado perante um mundo novo que se lhe
apresenta pela primeira vez. Um brilho que era sinónimo de interesse… Interesse
pelo outro. Quão rara é esta disposição para ouvir, realmente escutando.
“O escritor é antes de tudo um
escutador. Mas para escutar é preciso anularmo-nos. Hoje, toda a gente anda
muito cheia de si própria” – foram as suas surpreendentes palavras. Esse
anular-se, dizendo com os gestos “eu não sou importante, mas e você de onde
vem?” tocou-me profundamente.
Nesses curtíssimos minutos em que
conversamos, senti que Mia Couto realmente me olhou, acrescentando à já grande
oferenda atenciosas palavras: “À Ruthia, a ternura de Mia Couto”.
A confissão nasceu de uma experiência
real, da qual o autor fez parte, na pequena e isolada aldeia de Palma
(província de Cabo Delgado, norte de Moçambique). A comunidade vinha sendo
alvo, regular e insistente, de um grupo de leões. Em poucos meses, 26 pessoas
morreram em resultado desses ataques: 25 eram mulheres.
O seu grande amigo Sérgio Veiga (Arcanjo Baleiro, na obra), chamado para “executar” os assassinos, quis contar a caçada. Pode ler esse relato aqui. Mia Couto (o ficcionado Gustavo Rolando) escolheu o outro lado da história – o humano – transformando o leão numa metáfora.
As crenças tradicionais falam de leões-pessoa, os ntumi va vanu, comedores de pessoas que
assumem hábitos e feições das suas presas humanas. Mas a maior ameaça da aldeia
são as feras que moram nas palhotas.
E por feras, o autor quer dizer os homens
que escravizam as suas mulheres e filhas, que espancam e matam. Essas feras a
quem não se pode olhar nos olhos. Essas feras que cosem a vagina à esposa,
quando se ausentam (e quantas morrem de infecção por causa disso). Essas feras
que violam uma rapariga, em matilha, porque inadvertidamente ela atravessou o mvera, o acampamento sagrado de iniciação
dos rapazes.
Um provérbio senegalês retrata crua
mas fielmente aquela condição feminina: O
verdadeiro nome da mulher é «Sim». Alguém manda: «não vais». E ela diz: «eu
fico». Alguém ordena: «não fales». E ela permanecerá calada. Alguém comanda:
«não faças». E ela responde: «eu renuncio».
Mulher de Moçambique, do pintor José Soares. |
Mariamar, a extraordinária narradora da obra (papel
que divide com o caçador), é uma das presas, abusada e maltratada até pensar
que não é gente, ou que está morta, porque a vida se tornou um idioma
estrangeiro. Com a libertação da bela mulata (o pai morre e ela consegue
finalmente sair da aldeia) renasce a esperança de que também outras saberão
fugir dos grilhões que as prendem.
“Foi a vida que lhe roubou humanidade:
tanto a trataram como um bicho, que você se pensou um animal. Mas você é mulher
(…)”. E mulher tem uma capacidade infinita de trabalhar, de consolar, de amar. Esta
é a Confissão da Leoa, um livro difícil
(o parto demorou três anos) mas que permite sonhar com um país, uma sociedade,
um planeta em que a dignidade é uma prerrogativa de todas as mulheres.
Obrigada amigo, pelo carinho e divulgação. Ler também faz bem à saúde, certo?
ResponderExcluirTambém divulguei o seu blog, na página do facebook d'O Berço do Mundo.
Pode conferir no link:https://www.facebook.com/BercoDoMundo?fref=ts.
Um abraço desde Portugal
Ruthia d'O Berço do Mundo
Ruthia minha querida amiga da boa terra, como diz os brasileiros,.
ResponderExcluirO nosso blog "boaspraticasfarmaceuticas" divulga ciências de um modo geral, mas também fala de cidadania, poesia culinária, politica, esporte, cosméticos, beleza, moda, cultura, noticias, religiões, televisão e muito mais. Obrigado pela divulgação na sua pagina do facebook.
Antonio Brandão