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8.14.2013

Justiça que se confunde com intenções políticas.

Ação Penal 470 e a surpreendente atualidade de Hanna Arendt

Um filme adequado para os tempos atuais é "Hanna Arendt", de Margareth von Trotta.


Se você tiver paciência de ler estes parágrafos até o final, entenderá que Hanna Arendt, uma das primeiras pensadoras capaz de reconhecer a democracia como um valor realmente universal, válida para todos os países e todas as classes sociais, tem fôlego para chegar a vários momentos decisivos da história de diversos países, inclusive o Brasil que reabre o julgamento da ação penal 470.
Mas vamos voltar ao filme. A primeira observação é que o cinema quase nunca se deu bem com a vida de intelectuais de relevo, o que transforma o trabalho de Margareth Von Trotta numa exceção gloriosa.
Quem conhece a obra de Arendt irá reconhecer, nos diálogos e nos debates exibidos pelo roteiro, uma reconstrução fiel dos conceitos e valores que ela firmou em seus principais livros, artigos e conferências. Sem perder-se em abstrações e frases de efeito, sem investir no mito romântico do indivíduo genial, o roteiro mostra a obra intelectual de Hanna Arendt como produto de seu trabalho e seu esforço para ampliar o conhecimento.

Uma das principais estudiosas da formação de ditaduras do século XX, em particular o nazismo e o stalinismo, Arendt foi uma das primeiras a fazer uma constatação essencial sobre as sociedades modernas. Mostrou que elas deram nascimento a um novo tipo de sujeito histórico, um cidadão desenraizado, destituído de sua capacidade pessoal de julgamento, que era capaz de abrir mão de seus valores próprios para executar tarefas – inclusive de caráter de criminoso -- como se fossem parte de uma simples rotina burocrática, que não provoca pesadelos morais nem dores de consciência.

Hanna Arendt deu a este processo o nome de “banalização do mal” e o filme se debruça sobre esta fase de seu pensamento. A história se passa no início dos anos 1960, quando ela viajou a Jerusalém para assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais hierarcas do programa de eliminação de milhões de judeus pelo nazismo, levado a um tribunal do Estado de Israel depois de ter sido sequestrado por agentes do serviço secreto daquele país.

Num dado pioneiro em relação a Justiça, o julgamento foi transmitido por rádio e TV para o mundo inteiro. Eichmann foi colocado atrás de um vidro a prova de balas e de som, enquanto vítimas do Holocausto testemunhavam contra ele. No fim, acusado de 15 crimes, foi condenado por todos eles. Num país que nunca usara a pena de morte, abriu-se uma exceção e ele foi enforcado numa madrugada de 1962.

A força de Hanna Arendt reside em seu compromisso absoluto com a democracia. Ela jamais questionou as responsabilidades de Eichmann sobre o massacre de judeus. Admite no filme que, do ponto de vista pessoal, ficou até feliz que ele tivesse sido enforcado. Mas, como intelectual, colocou em causa um debate político mais essencial. Não teve receio de fazer as perguntas corajosas. Por exemplo:

Apesar de todas as atrocidades do regime nazista, será que mesmo um de seus piores carrascos não teria direito a um julgamento justo?

Seria razoável usar uma pessoa para julgar um regime, por pior que ela tenha sido?

Na época, a Arendt era uma pensadora consagrada. Já havia publicado “As Origens do Totalitarismo,” no qual debate as condições sociais que levam determinada sociedade – mesmo tão avançada e culta, como a alemã, e não apenas atrasada e desigual, como a russa – a submergir em regimes que não respeitam as liberdades elementares nem direitos e conquistas que a humanidade acumulou ao longo da história.

Ela volta ao assunto em “Eichmann em Jerusalém,” um de seus principais livros, publicado inicialmente na forma de cinco artigos pela revista New Yorker.

A lição maior da obra consiste em perceber que não era apenas Eichmann que estava no banco dos réus, naquele momento. Eram valores em nome dos quais ele estava sendo acusado que também precisavam ser atendidos no processo.

Hoje leitura obrigatória em boas universidades, não apenas em cursos de Ciência Política mas também de Direito, “Eichmann em Jerusalém” provocou um escândalo em sua época. Ao questionar o casamento entre Justiça e Política, que atendia a tantas conveniências daquele momento, inclusive a política de expansão do Estado de Israel sobre territórios palestinos, Hanna Arendt transformou-se em alvo de atos de repúdio e infâmia.

Corretamente indignadas com o horror monstruoso dos campos de concentração, as pessoas não conseguiam imaginar que fosse possível dar um tratamento humanitário para quem tivera um papel tão importante no Holocausto.

O filme mostra cenas lamentáveis que enfrentou. Professores se retiravam do restaurante da universidade em que lecionava quando sentava-se para fazer uma refeição. Um vizinho de prédio lhe mandou um bilhete onde a chamava de “vadia nazista.” Amigos da adolescência romperam para nunca mais se reaproximar. Professores se infiltravam em suas aulas para fazer perguntas provocadoras.

A ironia da história é clara.

Depois de denunciar um sistema que impedia grande parte dos cidadãos de raciocinar por conta própria, de acordo com seus valores morais, tornando-se disponíveis para a manipulação de ditaduras -- como Hitler, como Stalin -- Hanna Arendt tornou-se vítima de um fenômeno que havia estudado e conhecia muito bem.

Sua grandeza foi a capacidade de ser coerente com o próprio pensamento. Hanna Arendt nasceu numa família de judeus alemães, presa e conduzida para um campo de concentração, na França, antes de conseguir um visto para morar nos Estados Unidos. Nunca renegou suas origens, nem suas amizadas nem deixou de criticar intelectuais judeus – mesmo de esquerda -- que escondiam seus antepassados para evitar problemas com o nazismo.

Mas, naquele momento, quando cobraram uma lealdade especial com seu povo, respondeu que não gostava povos, mas de amigos. Era uma forma de lembrar que era preciso busca a condição humana – sem peculiaridades sociais nem preferências nacionais. Capaz de denunciar o Holocausto como poucos pensadores o fizeram, antes ou depois, também mostrou igual indignação diante do massacre dos povos africanos vitimas de genocídio do imperialismo europeu – e também lembrou a tragédia da nação armênia nas mãos do Estado turco.

É impossível sair do cinema sem pensar no julgamento da ação penal 470, que será retomada pelo Supremo. Não vamos ignorar as imensas diferenças de personagens e de situação.

Mas o debate sobre o banalidade do mal nas sociedades contemporâneas coloca uma questão que Hanna Arendt ajuda a pensar e responder.

Mais uma vez, coloca-se a pergunta sobre a Justiça que se confunde com intenções políticas. Sobre indivíduos que são julgados por aquilo que representam – ou que muitas pessoas dizem que representam – sem que se considere aquilo que se fizeram e que se pode provar que fizeram.

Hanna Arendt tornou-se uma pensadora única, indispensável, ao lembrar corajosamente que até um carrasco nazista tem direito a um julgamento justo.

É uma visão que ressurge toda vez que se denuncia o desrespeito aos direitos de cada indivíduo, e cada cidadão.

E essa é a pergunta que se deve fazer nesta fase final do julgamento da Ação Penal 470.

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