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10.07.2013

AA: há 66 anos, anônimos no Brasil contam como foram salvos do alcoolismo para salvar outros


O anonimato é uma proteção contra a vaidade, uma característica típica dos alcoólatras e que pode fazê-los voltar a beber
O anonimato é uma proteção contra a vaidade, uma característica típica dos alcoólatras e que pode fazê-los voltar a beber Foto: Marcelo Martins / EXTRA
Flávia Junqueira

Já se vão mais de 30 anos da noite em que Célio levou uma paquera a um restaurante de Copacabana. Irritado com a demora do garçom em servi-los, reclamou. O funcionário retrucou: “você não se lembra do que fez na semana passada, quando esteve aqui?”. Célio fez que não. O garçom emendou: “você brigou com a moça que o acompanhava, ela saiu, e você correu atrás dela com uma faca. Você trouxe a faca de volta?” A paquera foi embora, e o chão se abriu sob os pés de Célio. Realmente, não se lembrava. Já Fernando não esquece o dia em que foi levado a uma clínica de reabilitação amarrado numa camisa de forças. Foi o ápice de anos de sofrimento para ele e a família. Uma dor bem conhecida por Célia, que se divorciou, perdeu o emprego, as economias, foi retirada das ferragens de seu carro depois de ter bebido todas e viu o filho prometer abandoná-la.O alcoolismo os levou ao fundo do poço. Viram a morte de perto e flertaram com a loucura. Na fase mais crítica, se foram a saúde, a razão e a dignidade. Ainda assim, não foi fácil decidir pelo caminho da sobriedade. Mas que espécie de doença é essa que deixa o indivíduo tão obstinado a autodestruição? Para adeptos do Alcoólicos Anônimos (AA), que completa 66 anos no Brasil, trata-se de uma doença da alma.
- O alcoólatra bebe porque tem uma doença. Motivos para beber, achamos uma porção. Ficamos no anonimato não porque temos vergonha do passado. É uma proteção espiritual. Isso nos protege do que nos levaria a beber, ou seja, a busca do sucesso, da fama, a prepotência. Essa é uma característica do alcoólico - diz Fernando, de 84 anos, e 28 de sobriedade.
A medalha especial, dada pelo padrinho, por anos de sobriedade
A medalha especial, dada pelo padrinho, por anos de sobriedade Foto: Marcelo Martins / Extra
Para Célia, que já deu aulas na Universidade de Sorbonne, na França, o álcool acentua os defeitos de caráter.
- Você se transforma em outra pessoa. Fica agressiva, dona da verdade. Desempregada, eu acordava e ia para a praia beber uma cerveja. Não parava mais. Um dia, bêbada, perdi o controle do carro. Os bombeiros me tiraram das ferragens e não acreditaram quando saí sem um osso quebrado. O poder superior me salvou. Naquele dia, meu filho não foi à aula. Ficou me esperando chegar do hospital - relembra ela, sem conter as lágrimas.
O acidente não fez com que Célia parasse de beber. E a situação se agravou ainda mais quando ela desenvolveu uma alergia ao álcool.
- Tomava antialérgicos. Na sexta-feira, bebia todas e me transformava num monstro, inchada e deformada. Um dia, minha glote fechou e fiquei com medo de morrer sozinha, em casa. Chorando, meu filho disse que não aguentava mais e iria morar com o pai nos Estados Unidos. O medo de perdê-lo me fez procurar o AA - conta Célia.
Às 20h do dia 26 de junho de 2002, após 12 anos de abuso de álcool, aos 54 anos, Célia ouviu três depoimentos que salvariam sua vida:
- Uma mulher disse que saiu do Méditerranée para o ‘subterranée’. Eu me sentia assim. Ouvi relatos sofridos. E o sucesso de manter-se em vigilância, sóbrio, nos serve como espelho. Aquilo entra nos seus poros. Se eu der o primeiro gole, vai acontecer comigo.
Conquistas: a cada três meses sem beber, ganha-se uma ficha de cor diferente. No início do AA, eram distribuídas fichas telefônicas para uma ligação de urgência em casos de iminente recaída
Conquistas: a cada três meses sem beber, ganha-se uma ficha de cor diferente. No início do AA, eram distribuídas fichas telefônicas para uma ligação de urgência em casos de iminente recaída Foto: Marcelo Martins / Extra
O segredo do sucesso da metodologia
Os Doze Passos criados por dois amigos americanos que sofriam com o alcoolismo, em 1939, são a base da metodologia consagrada em mais de 150 países e que não mudou nesses anos todos. Há ainda as Doze Tradições, criadas nos primeiros anos do grupo.
- Os passos são para a pessoa aprender a viver sem o álcool e se tornar uma pessoa melhor. As tradições norteiam a nossa convivência no grupo, nos ensinam o altruísmo - explica Fernando, que deu os primeiros goles aos 15 anos para vencer a timidez e bebeu por “30 e poucos anos”.
Ele destaca a figura do padrinho como fundamental na eterna vigilância contra o fantasma do alcoolismo:
- É como um anjo da guarda, 24 horas. Somos uma irmandade, sempre com a mão estendida a quem precisar.
Não é à toa que as reuniões acontecem diariamente, inclusive aos fins de semana. Nos feriados, principalmente os de fim de ano, há plantões.
- Quando cheguei ao AA, se me dissessem que eu ficaria sem beber o resto da vida, não estaria aqui hoje. Nunca mais é muito tempo. Mas, por 24 horas, eu consigo ficar sem beber. E se o dia for muito longo, digo que vou ficar sóbrio neste momento, por um minuto, por cinco minutos. Só por hoje é mais fácil de assimilar - garante Fernando.
Esse pode ser o segredo do sucesso de AA. Mas não é só. Ali, fala-se a linguagem do coração, como gosta de dizer Célia. E essa é universal e atemporal. É só por hoje.
Saiba mais sobre o AA
Seguindo as Doze Tradições, o AA não cobra taxas. Os grupos são autossuficientes e rejeitam doações de fora. Aceitam colaborações de seus membros.
O AA não está ligado a seita ou religião. Acredita na espiritualidade. Para entrar no grupo, basta querer parar de beber.
Para saber onde há um grupo de AA perto de você, pode-se usar a Linha de Ajuda (21 2253-3377).
A Associação de Parentes e Amigos de Alcoólicos Anônimos (Al-Anom) oferece apoio às famílias. Há grupos para jovens, a partir de 10 anos. Informações: 21 2220-5065.

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