Sempre
que se fala dos desejos humanos, inevitavelmente se trafega por áreas
perigosas. Esse movediço terreno conta, entre outras coisas, com os
tabus sociais, sobretudo no que diz respeito à realização sexual e a
busca de prazeres fora dos “convencionais”. E
quando tais vontades extrapolam a convivência monogâmica de um casal, o
debate ganha estratosféricas proporções. Nesse sentido, para aqueles
que são impulsionados a encontrar sua “alma gêmea”, nada é mais
imperdoável do que a traição. Trair significa quebrar com o estabelecido
pelo santo sacro matrimônio religioso. É romper a tênue linha da
fidelidade. É desonrar o compromisso firmado desde o primeiro encontro,
do primeiro beijo, da primeira noite de amor. De fato, quando se
encontra alguém de que se gosta é importante manter um vínculo de
lealdade, mas entre ser leal e fiel há uma quilométrica barreira, da
qual poucos enxergam.
Na
verdade, há algumas possíveis explicações para que isso ocorra. A
primeira delas reside na idealização do amor romântico propagado em
filmes, novelas e seriados de televisão. A construção midiática do casal
apaixonado, que enfrenta tudo e todos para manter seu amor, quase que
irreal, afronta a vista dos telespectadores, enchendo-os de esperanças.
Em todas as cenas, casais enamorados trocam juras de amor eterno, se
entregam loucamente a paixão e, principalmente, não traem. Isto porque, a
traição colocaria a perder a estabilidade da relação conjugal e
reconfiguraria o modelo padronizado de conduta esperado pela sociedade.
Por essa razão, os personagens que desejam se infiltrar na impenetrável
monogamia são tachados de vilões, ou seja, trair ainda é visto com
antagonismo nestes contextos. Do outro lado, muitas vezes passivo, o
expectador é levado a acreditar cegamente que a traição nesses moldes é
algo nefasto e que o ato de realizá-la o enquadraria ao patamar de
vilão.
Infelizmente,
tal postura resulta de outra negativa: a de que o ser humano ignora, ou
tenta manter no limbo, o seu lado mais animal. O mesmo extinto voraz de
matar a fome e a sede, de defender sua cria, de marcar e demarcar
território, de se sobrepor a outros grupos, de copular com mais de um
membro da mesma espécie, não está limitado ao ambiente dos animais
irracionais. Todos os humanos diariamente manifestam similares
características quando desejam saciar suas vontades e com o sexo não é
diferente. É por isso que, mesmo acompanhados, não deixamos de olhar
para aquela garota de corpo escultural que passa ao nosso lado. Nem tão
pouco aquele rapaz, com pinta de galã, não passa despercebido por
algumas mulheres. Em ambos os casos, não há a concretização, a priori,
da traição, mas a manifestação dela em pensamento que será ou não
realizada. Então, porque desejamos o outro mesmo estando comprometidos?
Simplesmente porque estamos vivos e, como outros seres vivos,
necessitamos manter contatos mais íntimos com o outrem antes de firmar
algo mais sólido.
Famintos,
ou no mínimo curiosos, nos sentimos atraídos por outros quase que
inconscientemente, mas somos impelidos de manifestar nossas fantasias,
pois aprendemos que trair é pecado. Essa áurea pecaminosa é fruto de uma
cultura religiosa a qual perpetuou o casamento monogâmico como via de
regra, que deverá ser firmado na presença divina, com direito a juras
eternas e, se possível com pares de aliança, vestido branco e uma
inesquecível lua de mel. Se isso tudo fosse suficiente, muitos casais
que se casam nesses moldes não traíram. E porque traem? Por que faltou
amor? Por que o amor não era verdadeiro? Não. Se a relação não deu certo
e desembocou numa possível traição, entre outras razões, foi porque o
lado animalesco de uma das partes não se prendeu as simbologias pregadas
pela sociedade. Nestes casos, houve a manifestação do real animal que
existe dentre de nós, mas que adormecemos para fazer parte de
determinadas culturas. Padrões estes que são relativizados em vários
pontos do globo, pois enquanto em alguns países orientais homens podem
manter relações com várias mulheres, desde que possam cuidar de todas.
No ocidente, em especial no Brasil, ainda há essa discussão rasa sobre
os relacionamentos conjugais.
Devido
a isso, cabe pontuar também a cultura do pertencimento. Aprendemos
desde cedo que a vida nos proporcionará uma alma gêmea, a outra metade
da laranja, o príncipe ou princesa que sempre esperávamos. Por causa
desses devaneios, ao iniciarmos uma relação, dizemos abertamente frases
do tipo: “você é só meu”, “Você nasceu pra mim”, “eu não consigo viver
sem você” e outras pérolas do gênero. Sem perceber, ao dizer isso,
estamos criando uma teia de interdependência, a qual o desejo de possuir
o outro como um objeto sobrepõe-se ao amor e outros sentimentos
benfazejos que deveriam fazer parte dos verdadeiros romances. Isso
acontece porque casamentos ou simples namoros são construídos na ideia
egoísta de que o outro nos pertence e, por isso, deve seguir regras
preestabelecidas por nós para manter a salvo a relação. Como o ser
humano, entre outros animais, não nasceu para viver enjaulado, logo
trata de buscar na clandestinidade da vida a liberdade necessária para
viver intensamente. É, então, que surge a traição, pois ela, neste
momento, representa o autêntico humano que existe dentro de nós que, por
diversas razões é enclausurado.
Nessa
desconstrução dos contos de fadas, no mundo real, há uma gritante
diferença entre ser leal e ser fiel. A primeira palavra denota
franqueza, honestidade, compromisso. Diferente da segunda, a qual
significa decente, casto, justo, verdadeiro e outras designações do
gênero. Só nessa breve conceituação dá para perceber a distância entre
ambas. Porém, para clarificar a questão, dentro do contexto em voga,
vale uma explicação mais acurada. Quando se firma uma relação com alguém
se cria um compromisso com o outro, este que requer horários para
encontros pré-determinados, andar de mãos dadas, sair para jantar, e
outras formalidades do gênero. Logo, a deslealdade se dá quando uma das
partes não cumpre com esse compromisso oficializado desde o momento em
que ambos decidiram manter uma relação em comum. Entretanto,
infidelidade se refere ao ato de não ser verdadeiro com o outro nem
consigo mesmo. É enganar o companheiro (a) com falsas promessas de amor e
companheirismo que na verdade não poderão ser cumpridas. Nesse sentido,
numa relação muitas vezes confundimos tais palavras e trocamos
fidelidade por lealdade e virse-versa.
Por
tudo isso, se a sociedade e, porque não a humanidade, continuar com
esse byronismo em busca de um romance do qual a traição leva ao divórcio
e ao ultimato dos relacionamentos, então é melhor rever a forma com o
encaramos esses dilemas o quanto antes. Infelizmente, querendo ou não,
concreto ou não, flagrando ou não, todos inevitavelmente traem seus
companheiros (as) e são traídos por estes. Seja num singelo olhar para
aquele indivíduo que se mostrou mais interessante. Seja na idealização
de um parceiro (a) mais atraente, inteligente..., mesmo que o indivíduo
já possua um alguém em sua vida. Seja também em pensamento, porque mesmo
enamorados, ou com longos anos de casamento, podemos até fingir para o
outro do nosso lado que ele é a única pessoa de nossas vidas, mas ao
cair da noite o desejo de estar em outros braços atormenta nossos
corpos. E na hora do sexo também há traição, quando estamos ali apenas
cumprindo um papel, mas com a mente vagando em outros planos. E tudo
isso é possível com a presença do amor, sim, basta que se entenda a
diferença entre ser leal e fiel e, ao mesmo tempo, que se compreenda a
traição não apenas como algo pecaminoso, similar ao beijo de Judas em
Jesus Cristo. Trair, nesta atmosfera, quer dizer estar vivo, pulsante e
pronto para renovar nossas escolhas. Claro que há exceções. Porém, não
podemos deixar escapar a chance de ser feliz apenas porque dizem que
isso e aquilo é bom ou ruim. Viver é um exercício de libertação.
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