Porta de saída do principal programa
social brasileiro já é uma realidade. Em dez anos, 1,7 milhão de
famílias abriram mão do benefício para caminhar com as próprias pernas
Josie Jeronimo
Mais importante programa social do Estado
brasileiro, o Bolsa Família completa dez anos de existência como uma
iniciativa louvada não só pelo governo, como também pela oposição.
Considerado imprescindível por todos os candidatos a ocupar a
Presidência da República no próximo ano, o programa tem se revelado uma
política pública de sucesso político, econômico e também cultural.
Ajudou brasileiros a se reconciliarem com uma dívida social acumulada ao
longo de séculos de uma história de exclusão, permitiu a ampliação do
mercado interno e, principalmente, conseguiu sepultar de uma vez por
todas a alegação de seus principais críticos de que o programa de
transferência de renda estimularia os beneficiados a não procurar
emprego e melhores condições de vida. Nos últimos anos, segundo dados do
Ministério do Desenvolvimento Social, milhares de famílias procuraram
repartições municipais para entregar seu cartão verde-amarelo, símbolo
do programa, e assinar uma declaração de próprio punho na qual afirmam
que não têm “mais necessidade de receber o beneficio”. Em uma década,
1,7 milhão de chefes de família – em sua maioria mulheres – abriram mão
de um benefício mensal médio da ordem de R$ 250 para caminhar com suas
próprias pernas, sem ajuda do Estado.
![Credito: RAFAEL MOTTA / NITRO IEpag58a63_BolsaFamilia__ok-2.jpg](http://content-portal.istoe.com.br/istoeimagens/imagens/mi_13775818229194250.jpg)
ISTOÉ conversou com quatro antigos beneficiários do programa que
puderam se emancipar do auxílio do Estado. Ouviu relatos de famílias que
conquistaram aumento de renda e qualidade de vida. As histórias de vida
de bolsistas do Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste mostram que a
porta de saída do programa não é um milagre, mas uma arquitetura
realista quando famílias que enfrentam a pobreza em seus múltiplos
aspectos – econômico, educacional, médico, social – recebem amparo e
orientação para transformar vocações profissionais em fonte de renda.
“Há quatro anos, fiz um curso oferecido pelo Sebrae e pelo governo do
Estado e abri um ateliê em casa para artesanato. O negócio cresceu e
hoje temos uma loja de joias, na avenida principal da cidade. Nós fomos
os primeiros a entregar o cartão, aqui na região. O gestor ficou
admirado”, conta Osmarina Uchoa, ex-beneficiária do Bolsa Família,
moradora de Pedro II, município a 200 quilômetros de Teresina, no Piauí.
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Outro ex-bolsista, Samuel Rosa Rodrigues, trilhou um caminho parecido
com o de Osmarina. Era flanelinha e, com a ajuda do Bolsa Família,
conseguiu montar um lava-jato. “Fiquei muito orgulhoso quando pude
devolver o cartão do Bolsa Família. Eu quero que lá na frente o meu
filho saiba dessa história e diga: meu pai é um lutador”, afirmou.
A exemplo de Osmarina e Samuel, a maioria do 1,7 milhão que devolveu o
cartão do programa se tornou microempreendedor individual. Atualmente,
290 mil ex-bolsistas sustentam suas famílias trabalhando no setor de
serviços. Outros 760 mil receberam orientação e ajuda para conseguir
microcrédito e abrir pequenos negócios. De tanto oferecer cursos aos
chefes de família e permanecer com vagas abertas, o governo percebeu que
focar as ações do programa nas mulheres multiplicava os resultados.
Hoje, 93% dos titulares são do sexo feminino e o mercado privado começa a
oferecer cursos às beneficiárias.
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Entre tantos passos intermediários na consolidação do programa,
tem-se como certo que em 2006, quando teve início a formação do Cadastro
Único, para verificar a situação social das famílias de todo o País,
foi possível atravessar uma fronteira capaz de separar o
assistencialismo convencional daquilo que se considera uma política
social atualizada e efetiva, cuja base é um esforço pela autonomia dos
cidadãos e não pela preservação de sua dependência. O
coordenador-executivo da ONG Articulação pelo Semiárido (ASA), Naidson
Baptista Quintella, cita o exemplo das cisternas para lembrar como a
articulação do Ministério do Desenvolvimento Social e Integração
Nacional consegue mudar a vida de famílias que vivem em áreas de seca
severa. Com os recursos do Bolsa Família, que variam de R$ 70 a R$ 306, a
família sai de uma situação de mendicância e de mazelas – às vezes
incuráveis – que afeta a vida de cada um de seus membros. O acesso à
água faz o beneficiário começar a sonhar em cultivar ou criar algo em
suas terras para sustento da família ou gerar renda. “Antes, nos
períodos de estiagem, nós sempre nos deparávamos com filas de pedintes e
saques em armazéns,” lembra Naidson Quintella. Outro elemento notável é
de natureza política. Impessoal, acessível a toda família que preenche
um conjunto de requisitos idênticos, sem distinção de qualquer tipo, o
programa também contribuiu para a derrocada dos coronéis que sempre
dominaram a política das regiões mais atrasadas do País – quase sempre,
as mais miseráveis – por meio da distribuição de favores de
sobrevivência em troca de votos e de submissão política. Embora tenha se
transformado numa alavanca poderosa para a popularidade de Luiz Inácio
Lula da Silva, no plano local o benefício não tem nome nem rosto. “É um
crédito em conta, que não se vincula a ninguém,” afirma Naidson
Quintella.
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Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado
este ano aponta que R$ 1 de aplicação no Bolsa Família gera crescimento
de R$ 1,78 no Produto Interno Bruto (PIB). Não é de surpreender, assim,
que nos anos de 2007 e 2008, quando a economia brasileira registrou
grande expansão, com aumento de capital circulante, o número de
beneficiários do programa sofreu redução. Um dos pioneiros na criação do
Bolsa Família, o economista Ricardo Henriques, coordenador do grupo que
criou o benefício, afirma que o movimento é circulante. “É mão dupla. O
programa impacta a economia e a economia impacta o programa. A economia
aquecida pode gerar o impacto do aumento de renda.”
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Nas regras de concessão do Bolsa Família, não existe tempo-limite
para o recebimento do benefício. As famílias podem ficar o tempo que
necessitarem. Mesmo assim, o governo segue oferecendo cursos de
capacitação para tentar abrir portas a quem teve poucas oportunidades.
Até agora, só 5% dos beneficiários terminaram algum tipo de qualificação
profissional proporcionado pelo governo. Na pasta de Educação, o
Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego (Pronatec)
oferece cursos especialmente direcionados aos bolsistas. Das 918 mil
vagas abertas a beneficiários do Bolsa Família, 753 mil foram
preenchidas. As letras e os números ainda assustam num universo em que
25 mil dos beneficiários se declaram analfabetos. Henriques conta que,
durante a criação do programa, o objetivo de longo prazo era dar
educação aos filhos de famílias comandadas por pais que não tiveram
nenhuma educação formal. “O programa tem três dimensões: o impacto
imediato da garantia alimentar, a transferência de renda para famílias e
territórios e o impacto de longo prazo, que é a mudança da trajetória
educacional de crianças filhas de pais analfabetos.” Sempre que ouve a
observação de que muitas pessoas demoram para encontrar a porta de
saída, o sociólogo Quintella rebate: “As pessoas vão caminhando em seu
próprio tempo, não no tempo ditado pelos gabinetes. É uma tarefa para
uma geração”.
![Credito: Adriano Machado 06.jpg](http://content-portal.istoe.com.br/istoeimagens/imagens/mi_13777089441977759.jpg)
Foi caminhando no seu próprio ritmo que Iolanda Silva, moradora da
periferia de São Paulo, conseguiu mudar de vida. Depois de perder a
guarda dos filhos, por falta de condições para sustentá-los,
cadastrou-se no Bolsa Família e usou o dinheiro para reconstruir sua
vida. “Consegui ter os meus cinco filhos de volta. O benefício do Bolsa
Família ajudou muito. Todos os meus filhos estão estudando e o meu
sonho, agora, é fazer um curso de enfermagem e melhorar minha renda”,
disse.
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A socióloga Amélia Cohn lembra que o Bolsa Família não faz parte do
texto constitucional, por isso, as reservas orçamentárias do programa
dependem exclusivamente da vontade do presidente em exercício, o que
muitas pessoas consideram preocupante. A necessidade de garantir o Bolsa
Família na Constituição voltou à agenda política depois que, em julho
deste ano, rumores sobre o cancelamento do programa produziram uma
corrida aos terminais eletrônicos da Caixa Econômica Federal. Em um fim
de semana, R$ 152 milhões foram sacados. A Polícia Federal e a Caixa
Econômica – banco que faz a gestão financeira do programa – foram
acionadas para rastrear a origem do boato e possíveis falhas que
permitiram os saques antecipados de benefícios, mas até hoje não
conseguiram explicar exatamente o que motivou o desespero de mais de 900
mil pessoas.
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