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1.11.2014

Amor à primeira voz

Filme em que homem se apaixona pelo som do computador traz novas nuances sobre impacto da tecnologia nas relações

Flávia Milhorance 


Theodore (Joaquin Phoenix) no drama romântico “Ela” se apaixona pela voz do programa de computador
Foto: Warner Bros. Pictures

Theodore (Joaquin Phoenix) no drama romântico “Ela” se apaixona pela voz do programa de computador Warner Bros. Pictures
RIO - A voz de Samantha é doce, sensual e ao mesmo tempo cheia de ousadia. Parece pertencer a uma mulher inteligente, jovem e bela ou a quem nossa idealização conseguir personificar. Acontece que a voz é fabricada por um sistema operacional para smartphone ou computador, o que, independente disto, leva o escritor Theodore a apaixonar-se. Esses personagens, vividos por Scarlett Johansson e Joaquin Phoenix, estão no filme “Ela”, de Spike Jonze, ainda não lançado no Brasil e que pode levar hoje o Globo de Ouro, além de estar cotado para o Oscar. Badaladíssima nos Estados Unidos, a produção, dizem críticos e especialistas, abre portas para a discussão sobre como as relações vêm sendo impactadas de formas cada vez mais profundas pela tecnologia.
Theodore é um rapaz solitário, recém saído de um divórcio, que se apaixona por uma mulher feita, literalmente, sob medida para ele. Imagine alguém que, além de desenvolver conversas provocativas (num nível impossível para os programas existentes, diga-se passagem), ainda analisa seus e-mails e seleciona o que é importante, limpa a sua bagunça e acha graça disso. E que pode, na sua fantasia, parecer com a atriz mais charmosa do momento, digamos, a própria Scarlett, que sequer aparece em cena. Apenas imagine, porque de fato ela não é real, e este é um dos pontos centrais da verossimilhança da trama, na opinião da psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo:
- Existem três fases no relacionamento. A primeira delas é a paixão, depois vem o envolvimento e o vínculo. Na paixão, eu vejo a pessoa como gostaria que ela fosse, projeto nela o que desejo. A paixão pode se tornar amor quando aceito as características positivas ou negativas do outro. Ou pode acabar, se descubro que idealizei tudo aquilo. É uma defesa do personagem não ver a dona da voz. Ele continua idealizando e projetando o que ele quiser. E, sendo um sistema baseado em seus próprios dados, ele não se frustra com características desagradáveis.
Carmita lembra que os estímulos iniciais de um relacionamento vêm dos sentidos, seja a visão, o olfato, o tato, ou neste caso, a audição. O cérebro, ela explica, capta esses estímulos, que provocam reações de neurotransmissores, capazes de convertê-los em emoções e ações. Ouvir uma voz atraente, intrigante, provocante pode ser o gatilho deste processo. Claro que ela pode ter efeitos num indivíduo, mas não em outros. É a carga genética e a influência do ambiente que o farão se sentir atraído, ou, pelo contrário, reagir com repulsa ou indiferença. Em geral, vozes ligeiramente roucas são mais atraentes do que as com tons mais agudos.
- Isto vai acontecer ou não dependendo ainda do momento em que o indivíduo está: se está suprido com alguém muito interessante, a voz pode não chamar a atenção. Mas se está só, rejeitado, vivendo situações de abandono, de repente alguém fala com ele, e magicamente, a voz ganha uma importância que num outro momento talvez não tivesse — diz Carmita.
Ausência física impressiona críticos
Como num livro em que fantasiamos os personagens, o filme obriga o espectador ao mesmo e não dá o gostinho de exibir Scarlett em momento algum. A ausência de um corpo como um avatar ou ao menos de um personagem real do outro lado da linha tem sido apontada por críticos como o diferencial desta entre outras produções sobre relações virtuais. Para especialistas, esta é uma situação totalmente possível:
- A paixão vem do grego phatos, que significa doença, porque é excessiva, faz o indivíduo perder-se de si. Mas isto não ocorre apenas entre indivíduos. Pode ser por um gato, um time de futebol, um objeto inanimado. A voz pode não ser real, mas isto não importa na medida em que te dá a sensação de presença. Está ali, passível de provocar esta reação. Esta paixão não seria absurda - comenta a filósofa, psicóloga e psicanalista Viviane Mosé.
Por outro lado, há céticos neste tipo de envolvimento. O professor do Departamento de Informática da Universidade da Califórnia Bonnie Nardi comentou, no site “The Verge”, que dificilmente as pessoas acreditariam ser possível uma relação semelhante. Mas ele concorda que as pessoas “gostariam que o amor fosse mais simples”, além de “tão programável, tão possível”. No site “Psychology Today”, o psiquiatra Ravi Chandra considerou o caso o de uma “cyberesquizofrenia”. “Já estamos de fato estabelecendo um relacionamento com a tecnologia”, diagnostica. Enquanto isso, outros não estão tão preocupados com esses rumos.
- Há uma tendência em rotular o que é fora do padrão como patologia. Isto é uma maneira de vender remédio e revista - critica Viviane.
Carmita é outra que gasta pouco tempo nesta questão: “Existem pessoas que não precisam deste contato físico”. E acrescenta:
- O filme vai na contramão dos alarmistas de plantão que dizem que o virtual está acabando com os sentimentos e com a necessidade de vínculo, de emoção. É um alerta de que o virtual está trazendo outras conotações.
O psicólogo social Matthew Lieberman, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, diz que o cérebro naturalmente busca interação social: “A evolução leva a crer que a melhor coisa para o cérebro em qualquer momento é estar pronto para o que vem em termos de interação social”, afirmou ao “The Atlantic”. Por isso o engajamento com tanto afinco em redes sociais, explica. Outros, como Ali Mattu, da Associação Americana de Psicologia, ousam interpretar Samantha como uma metáfora dessas redes.
O próprio diretor Spike Jonze defendeu a Humanidade numa entrevista à “National Public Radio”, dos EUA: “Este filme, para mim, é muito emocional”, afirmou. “É sobre nossa vontade de nos conectarmos, nossa necessidade de intimidade e as coisas que estão dentro de nós e impedem esta conexão. Este tipo de tensão sempre existiu”.

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