Paulo Moreira Leite
Não se deve confundir o principal e o acessório na prisão de um condenado pela AP 47
No momento em que
se assiste a uma pequena festa cívica por causa da prisão de Henrique
Pizzolato na Itália, convém conhecer melhor alguns dados da ação penal
470.
É importante, nessa hora, não confundir o assessório com a substância.
Pizzolato foi condenado por
peculato, corrupção passiva, lavagem de dinheiro. Mas é bom reconhecer o
caráter precário dessas afirmações.
Nem vou falar aqui do inquérito
2474, com 78 volumes de provas e testemunhos – inclusive um caudaloso
relatório da Polícia Federal – que sequer foram examinados pelos
ministros. Foram mantidos em segredo, do próprio STF, em decisão tomada
em 2011, com o argumento de que era preciso dar “celeridade” ao
processo. Tá bom: celeridade no destino dos outros não arde, nós
sabemos.
Vamos em frente e examinar alguns pontos.
Por exemplo. Em novembro de
2007, o STF aceitou a denuncia contra Pizzolato (e outros 39 réus). Mas
os ministros votaram no escuro, sem conhecer todas cartas que deveriam
estar à mesa. Só depois de votar eles puderam ler o inquérito 2828.
Embora este documento, do Instituto Nacional de Criminalística,
estivesse pronto desde dezembro de 2006, só foi distribuído aos
ministros um mês depois da aceitação da denúncia, quando os acusados já
haviam sido transformados em réus, naquela decisão em que se votou
“com faca no pescoço,” como disse Ricardo Lewandovski. Antes disso, o
2828 foi mantido em sigilo por Joaquim Barbosa.
Entre outras coisas, lê-se no inquérito 2828 uma questão básica para se entender o papel de Pizzolato na AP 470.
O relator Joaquim Barbosa pergunta a quem “competia fazer o gerenciamento dos recursos” do Fundo Visanet repassados a DNA?
Em bom português, o relator
queria saber quem fazia os pagamentos – sem o quê, obviamente, não dá
para desviar dinheiro para comprar um picolé na praia.
O Banco do Brasil responde:
quatro diretores eram responsáveis pela gestão do fundo de incentivo
entre 2001 e 2005. O texto faz até um gráfico pequeno, com nomes e
datas, para ninguém ficar em dúvida. Não vou escrever o nome deles aqui
porque este não é meu papel. O importante é saber que Henrique Pizzolato
não se encontra entre eles. Nenhum dos responsáveis, autorizados a
liberar o dinheiro, foi indiciado nem julgado. Pizzolato foi condenado
como “único responsável” pelos pagamentos. Não era único nem era o
responsável.
Outro exemplo. Em
novembro de 2005, seis meses depois da célebre entrevista de Roberto
Jefferson, os parlamentares da CPMI dos Correios receberam um documento
“para uso interno – confidencial” da Visanet. É muito ilustrativo e
chocante, quando se vê o que ocorreu depois,
Numa denúncia baseada em desvio de dinheiro público, os parlamentares perguntaram:
A Visanet é uma empresa pública?
Resposta. “Não. É uma empresa de capital privado.”
Qual era a relação do senhor Henrique Pizzolato com a Visanet?
“Nenhuma. “
Outro exemplo. Pizzolato
foi acusado de prorrogar o contrato da DNA com o Banco do Brasil para
beneficiar o esquema. Não custa lembrar que as prorrogações de contrato
são autorizadas por lei, e podem ocorrer três prorrogações de um novo
contrato antes de se fazer uma nova licitação. Em 11 de fevereiro de
2003, logo depois da posse de Lula, o Banco do Brasil fez a terceira
prorrogação do contrato com a DNA, por seis meses. As duas anteriores
haviam sido assinadas em 2001, e 2002, quando o PSDB estava no governo. A
prorrogação foi assinada por três diretores. Pizzolato não é um deles
nem poderia. Só tomou posse no banco uma semana depois. Ou seja: quando o
contrato já fora prorrogado.
Outro exemplo. Conforme a denuncia, o
pagamento indevido de bônus de volume às agências teria sido uma forma
de desviar dinheiro do Banco do Brasil. Até executivos da Globo
prestaram depoimento, mostrando que essa visão era distorcida, pois
ignorava o funcionamento real do mercado publicitário. Em julho de
2009, Joaquim Barbosa enviou um conjunto de perguntas a direção do Banco
do Brasil. Entre outras questões, queria saber se o Banco estava
cobrando “a devolução ou o ressarcimento de valores pagos a título de
bônus de volume.”
Lembrando que os recursos da Visanet
não eram de sua propriedade, a resposta do Banco é enfática: “conforme
referido no relatório de auditoria, a origem, propriedade e gestão dos
recursos do Fundo Visanet pertenciam a Visanet. (...) Quem se
apresentava como titular desses recursos no plano material era a
Visanet, posição exteriorizada no regulamento instituidor do Fundo.” O
documento conclui: “desse modo, o Banco do Brasil não tem legitimidade
ativa para propor eventual ação de ressarcimento. “
É isso que está escrito. A direção
jurídica do BB, a qual Pizzolato deve obediência na matéria, diz que a
pergunta do relator envolvia uma cobrança que não tinha
“legitimidade.”
Não vou prosseguir aqui para não cansar demais. Só lembro estes fatos para mostrar o seguinte.
Nós sabemos por que Pizzolato foi condenado e imagino que muita gente está pensando nisso agora.
Teria aparecido, teoricamente, um ato
de ofício capaz de estabelecer a ligação entre suas decisões como
diretor de marketing e o recebimento de R$ 326 000 em sua casa. A
acusação sustenta que ele ganhou esse dinheiro como pagamento pelos
serviços prestados ao esquema. Ele diz que eram recursos para o PT e
ninguém é obrigado a acreditar em qualquer versão.
Todo mundo tem o direito de pensar o
que quiser. Mas eu acho, humildemente, que os fatos acima, que descrevem
o papel de Pizzolato, mostram o seguinte. Mesmo que quisesse prestar
serviços ilícitos ao esquema, não tinha autoridade nem poderes para
tanto. Não podia fazer o que dizem ter feito – muito menos sozinho. Não
era o diretor que fazia o pagamento de recursos. Não decidiu a
prorrogação dos contratos. Sua relação com a Visanet era “nenhuma”. A
cobrança de Joaquim Barbosa, pelo ressarcimento do Bonus de Volume,
simplesmente não tinha “legitimidade,” diz o jurídico do banco.
Dá para entender? Dá. É só aceitar a
ideia -- dolorosa, difícil, mas real -- de que o STF fez um julgamento
de exceção, aplicando regras que nunca foram aplicadas antes e
dificilmente irão se repetir.
Como demonstrou o professor Dalmo
Dallari, o STF sequer tinha autoridade constitucional para julgar, em
primeira instância, réus que não tinham direito ao foro privilegiado, o
que demonstra o caráter questionável de suas decisões. Não custa lembrar
– é cansativo mas educativo – que o mensalão PSDB-MG e o mensalão
DEM-DF não serão julgados da mesma maneira. Numa atitude que equivale a
admitir o erro mais uma vez – só falta agora saber quem vai pagar a
conta da AP 470 – até o propinoduto tucano será julgado, se isso
acontecer, pelo sistema de desmembramento. Precisa de mais?
Acho que não.
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