O DIA, assim como ‘O Globo’,
‘JB’, ‘Estado de S. Paulo’ e ‘Folha de S. Paulo’, também apoiou o golpe
de 1964 que depôs o presidente João Goulart. Historiador da PUC-SP
afirma que os jornais da época endossaram a ideia de setores
minoritários, mas poderosos, que influenciavam a sociedade brasileira
Francisco Alves Filho
Rio - Os cariocas que foram às bancas na manhã
de 31 de março de 1964 se depararam com o título em letras garrafais na
primeira página do DIA
, ao estilo das manchetes policiais: “Exército e Marinha unidos no mesmo
objetivo: disciplina!” O jornal mostrava assim o seu apoio ao golpe
militar, que poucas horas depois expulsaria da presidência João Goulart
para iniciar um período negro de 21 anos na História do Brasil. Como
O DIA
, a ampla maioria da imprensa brasileira apoiou a quartelada. “Desde
ontem se instalou no País a verdadeira legalidade”, defendeu o editorial
do ‘Jornal do Brasil’, em 1º de abril. Já o editorialista do ‘Globo’,
no dia 2, declarou o Brasil salvo da “comunização” e sugeria aos
brasileiros “agradecer aos bravos militares que os protegeram dos
inimigos”. No Rio, apenas a ‘Ultima Hora’ defendeu Jango. Passados 50 anos do golpe, o tom dos jornais ao
tratar do tema é justamente o oposto. Desfiam uma série de críticas e
denúncias contra a supressão dos direitos civis, a tortura e os
assassinatos praticados pelo governo militar. Tudo como se a imprensa
nunca tivesse ficado ao lado do regime que se instaurou. Analisar
mudança tão radical pode ajudar a desmistificar o papel dos meios de
comunicação na cobertura política brasileira. “A grande imprensa
construiu uma memória para si que não corresponde à realidade”, define a
historiadora Beatriz Kushnir, autora do livro “Cães de Guarda”, sobre o
papel do jornalismo na ditadura. “As redações aderiram maciçamente ao
golpe, pedindo a saída de Jango. Tempos depois, passaram a conviver com a
censura, mas muitas empresas jornalísticas continuaram a ter ligação
com o governo militar.”
Para justificar a parceria com os
golpistas e a oposição às anunciadas Reformas de Base, a argumentação
era de que os jornais traziam impressos em suas páginas os clamores de
grande parte da sociedade. “A Nação não mais suporta a permanência do
Sr. João Goulart à frente do Governo”, bradava o editorial de 1° de
abril, do extinto ‘Correio da Manhã’, sob o título “Fora!”. E
continuava, como se fosse o porta-voz de todos os brasileiros: “Só há
uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: saia.” Na capital paulista, a
imprensa seguia o mesmo padrão. “Magalhães: hierarquia e disciplina
estão em perigo”, estampou, na véspera do golpe, a Folha de S. Paulo,
nas páginas 2 e 3, referindo-se ao discurso do governador mineiro, um
dos principais opositores de Jango.
Os textos do DIA
não chegavam ao nível de histeria de ‘O Globo’, ‘Correio’, ‘Folha’,
‘Estado de S. Paulo’ e ‘JB’, mas gradativamente o jornal foi abrindo
espaço para matérias a favor dos que pretendiam derrubar João Goulart.
Apesar disso, ainda manteve corajosamente na capa de 1º de abril um
recado do presidente que seria deposto: “É uma insensatez pretender
reprimir pela força as aspirações populares”. A partir daí, passou a
endossar a ideia da guerra contra a ‘comunização.’ Enquanto se passava por intérprete da
insatisfação nacional, a imprensa tinha informação para saber que a
população não estava contra Jango. Eram duas pesquisas do Ibope. Uma
delas, sem contratante identificado, foi realizada entre 9 e 26 de março
de 1964, em oito capitais. Uma das questões era sobre a necessidade da
reforma agrária defendida pelo presidente: em todas as cidades, a
maioria dos entrevistados aprovou a medida. A maior se deu no Rio, com
índice de 82%. Em resposta a outra pergunta, pessoas ouvidas em cinco
das oito capitais disseram que elegeriam Jango caso ele tentasse a
presidência em 65. Essa pesquisa não chegou a ser publicada nos
jornais daquele ano. Foi resgatada do esquecimento há pouco por Luiz
Antonio Dias, professor de História da PUC-SP, prestes a lançar o
livro “O Jornalismo e o Golpe de 1964: 50 Anos Depois”. “Os jornais, na
verdade, endossavam as ideias de setores minoritários da sociedade,
mas poderosos”, analisa Dias. Outro levantamento, feito em São Paulo
entre 20 e 30 de março, a pedido da Fecomércio, revelava que 72% dos
pesquisados achavam o governo Jango de razoável a ótimo. Entre os mais
pobres o índice subia para 86%. (Igualzinho o governo Dilma agora) O professor acredita, porém, que os integrantes
de vários desses veículos de comunicação certamente não imaginavam que
João Goulart seria sucedido por um regime tão truculento. “Com a censura
e a escalada de arbitrariedades, muitos jornalistas passaram a
enfrentar o governo militar e sofreram consequências trágicas, como foi
o caso de Vladimir Herzog (profissional paulista assassinado em 1975,
por enforcamento, numa prisão do DOI-CODI, em São Paulo).” A longa
temporada de atuação dos censores deixou marcas profundas. “Aprendemos a
ter ódio e nojo da censura e das ideologias pervertidas que tentam
enfraquecer a liberdade de expressão”, acredita Aziz Filho, atual
diretor de redação do DIA. Do apoio ao repúdio à ditadura, a análise da
atuação dos jornais nesse período pode render boas lições para quem vê a
política através da imprensa. “O que está publicado não é a verdade dos
fatos, mas apenas uma determinada visão dos fatos”, explica Beatriz
Kushnir. Vinda do passado, a lição que fica para o presente e para o
futuro é a de ter leitura crítica sobre tudo o que os jornais publicam –
inclusive essa reportagem que você acaba de ler agora. Censura bem antes do AI-5 Um erro comum é marcar o início da censura à
imprensa apenas em 1968, depois do anúncio do Ato Institucional número
5, que restringiu ainda mais as liberdades no Brasil. Alguns anos antes,
vários jornais que se opuseram ao governo militar foram invadidos e
tiveram suas instalações destruídas. Isso aconteceu com periódicos de
médio porte, mas também com grandes veículos de imprensa, como os
extintos jornais ‘Ultima Hora’ e ‘Correio da Manhã’, ambos do Rio de
Janeiro. Depois de 68, a censura tornou-se sistemática e
em muitas redações os representantes do governo acompanhavam o
fechamento dos jornais para determinar o que podia ou não ser publicado.
“Lembro de dois coronéis fardados que ficavam na redação no papel de
censores”, lembra o jornalista Luarlindo Ernesto, do
DIA
, que na época trabalhava no jornal ‘O Globo’. “Várias vezes chegavam
com uma relação de assuntos que não poderiam ser publicados.” O teor dos temas proibidos ia desde
manifestações de insatisfação política a delitos de vários tipos
praticados por membros das Forças Armadas – incluindo crimes
passionais. Alguns jornalistas que desobedeciam à censura foram detidos e
levados para a prisão da Ilha das Flores. Depois de algum tempo, a
ditadura adotou o método de enviar às redações ordens escritas, com
detalhes sobre o conteúdo recomendado. Eram os chamados “bilhetinhos.” À
frente do Jornal do Brasil, Alberto Dines, por exemplo, contou ter
recebido 288 ordens desse tipo, de setembro de 1972 a dezembro de 1974. Em muitas ocasiões, os meios de comunicação
tentaram driblar as limitações impostas pela censura. Ao noticiar a
publicação do AI-5, por exemplo, o JB aproveitou a coincidência de uma
data comemorativa para estampar na primeira página: “Ontem foi o Dia dos
Cegos.” Em outro espaço, usou a previsão da meteorologia para destilar
mais ironia: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O país está sendo
varrido por fortes ventos. Mínima – 5 graus, no Palácio Laranjeiras.
Máxima – 37, em Brasília.” Na chamada imprensa alternativa, O Pasquim
foi o campeão de desobediência. Ficou famosa a entrevista com Leila
Diniz em que os palavrões foram substituídos por asteriscos e cifrões. Apesar desse tipo de estratégia, a historiadora
Beatriz Kushnir avalia que as empresas jornalísticas não foram tão
firmes como deveriam ter sido no repúdio à censura. “Se essa resistência
tivesse sido tão grande, os 220 censores que tinham a missão de
controlar toda a imprensa brasileira não conseguiriam dar conta das
suas tarefas”. ‘Correio’ é exemplo da guinada Um caso extremo nessa trajetória da imprensa,
que passou da defesa do governo militar à oposição ao regime, é o que
aconteceu com o extinto jornal carioca ‘Correio da Manhã’, cuja
primeira página é reproduzida nesta edição. Dois de seus editoriais
contra o governo Jango são lembrados até hoje como os principais
exemplos de apoio ao golpe. “Não é tolerável esta situação calamitosa
provocada artificialmente pelo Governo, que estabeleceu a desordem
generalizada (..)”, esbravejava o veículo em 31 de março, no texto
intitulado ‘Basta!’. No dia 1° de abril, o editorial ‘Fora!’ traçava
para Jango o perfil de um inconsequente. “É o maior responsável pela
guerra fratricida que se esboça no território nacional”. O golpe foi
comemorado nas páginas do ‘Correio’. Quando, gradativamente, os direitos civis
foram sendo retirados, o jornal passou a se opor à ditadura. Por causa
disso, foi perseguido, teve a sede atacada a bomba, invadida e
interditada. Uma das edições foi confiscada e a proprietária, Niomar
Moniz Sodré Bittencourt, ficou presa por mais de dois meses. Diante da
asfixia política e financeira, o jornal por onde passaram Lima Barreto,
Antonio Callado e Carlos Drummond de Andrade foi arrendado a um grupo
de empreiteiros simpáticos aos militares e tornou-se alinhado com o
governo. Acabou fechando seis anos depois.
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