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3.30.2014

Desculpem a nossa falha

O DIA, assim como ‘O Globo’, ‘JB’, ‘Estado de S. Paulo’ e ‘Folha de S. Paulo’, também apoiou o golpe de 1964 que depôs o presidente João Goulart. Historiador da PUC-SP afirma que os jornais da época endossaram a ideia de setores minoritários, mas poderosos, que influenciavam a sociedade brasileira

Francisco Alves Filho
Rio - Os cariocas que foram às bancas na manhã de 31 de março de 1964 se depararam com o título em letras garrafais na primeira página do DIA , ao estilo das manchetes policiais: “Exército e Marinha unidos no mesmo objetivo: disciplina!” O jornal mostrava assim o seu apoio ao golpe militar, que poucas horas depois expulsaria da presidência João Goulart para iniciar um período negro de 21 anos na História do Brasil. Como O DIA , a ampla maioria da imprensa brasileira apoiou a quartelada. “Desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade”, defendeu o editorial do ‘Jornal do Brasil’, em 1º de abril. Já o editorialista do ‘Globo’, no dia 2, declarou o Brasil salvo da “comunização” e sugeria aos brasileiros “agradecer aos bravos militares que os protegeram dos inimigos”. No Rio, apenas a ‘Ultima Hora’ defendeu Jango.
Passados 50 anos do golpe, o tom dos jornais ao tratar do tema é justamente o oposto. Desfiam uma série de críticas e denúncias contra a supressão dos direitos civis, a tortura e os assassinatos praticados pelo governo militar. Tudo como se a imprensa nunca tivesse ficado ao lado do regime que se instaurou. Analisar mu­dança tão radical pode ajudar a desmistificar o papel dos meios de comunicação na cobertura política brasileira. “A grande imprensa construiu uma memória para si que não corresponde à realida­de”, define a historiadora Beatriz Kushnir, autora do livro “Cães de Guarda”, sobre o papel do jorna­lismo na ditadura. “As redações aderiram maciçamente ao golpe, pedindo a saída de Jango. Tempos depois, passaram a conviver com a censura, mas muitas empresas jornalísticas continuaram a ter ligação com o governo militar.”
Foto:  info golpe
Para justificar a parceria com os golpistas e a oposição às anun­ciadas Reformas de Base, a argu­mentação era de que os jornais traziam impressos em suas pági­nas os clamores de grande parte da sociedade. “A Nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do Governo”, bra­dava o editorial de 1° de abril, do extinto ‘Correio da Manhã’, sob o título “Fora!”. E continuava, como se fosse o porta-voz de todos os brasileiros: “Só há uma coisa a di­zer ao Sr. João Goulart: saia.” Na capital paulista, a imprensa seguia o mesmo padrão. “Magalhães: hie­rarquia e disciplina estão em peri­go”, estampou, na véspera do gol­pe, a Folha de S. Paulo, nas páginas 2 e 3, referindo-se ao discurso do governador mineiro, um dos prin­cipais opositores de Jango.
Os textos do DIA não chega­vam ao nível de histeria de ‘O Globo’, ‘Correio’, ‘Folha’, ‘Estado de S. Paulo’ e ‘JB’, mas gradativa­mente o jornal foi abrindo espaço para matérias a favor dos que pre­tendiam derrubar João Goulart. Apesar disso, ainda manteve co­rajosamente na capa de 1º de abril um recado do presidente que se­ria deposto: “É uma insensatez pretender reprimir pela força as aspirações populares”. A partir daí, passou a endossar a ideia da guerra contra a ‘comunização.’
Enquanto se passava por in­térprete da insatisfação nacional, a imprensa tinha informação para saber que a população não estava contra Jango. Eram duas pesquisas do Ibope. Uma delas, sem contratante identificado, foi realizada entre 9 e 26 de março de 1964, em oito capitais. Uma das questões era sobre a necessida­de da reforma agrária defendida pelo presidente: em todas as cida­des, a maioria dos entrevistados aprovou a medida. A maior se deu no Rio, com índice de 82%. Em resposta a outra pergunta, pes­soas ouvidas em cinco das oito capitais disseram que elegeriam Jango caso ele tentasse a presi­dência em 65.
Essa pesquisa não chegou a ser publicada nos jornais daquele ano. Foi resgatada do esquecimento há pouco por Luiz Antonio Dias, pro­fessor de História da PUC-SP, pres­tes a lançar o livro “O Jornalismo e o Golpe de 1964: 50 Anos Depois”. “Os jornais, na verdade, endossa­vam as ideias de setores minoritá­rios da sociedade, mas poderosos”, analisa Dias. Outro levantamento, feito em São Paulo entre 20 e 30 de março, a pedido da Fecomércio, revelava que 72% dos pesquisados achavam o governo Jango de razo­ável a ótimo. Entre os mais pobres o índice subia para 86%. (Igualzinho o governo Dilma agora)
O professor acredita, porém, que os integrantes de vários desses veículos de comunicação certamente não imaginavam que João Goulart seria sucedido por um regime tão truculento. “Com a censura e a escalada de arbi­trariedades, muitos jornalistas passaram a enfrentar o governo militar e sofreram consequên­cias trágicas, como foi o caso de Vladimir Herzog (profissional paulista assassinado em 1975, por enforcamento, numa prisão do DOI-CODI, em São Paulo).” A longa temporada de atuação dos censores deixou marcas profun­das. “Aprendemos a ter ódio e nojo da censura e das ideologias pervertidas que tentam enfra­quecer a liberdade de expressão”, acredita Aziz Filho, atual diretor de redação do DIA.
Do apoio ao repúdio à ditadura, a análise da atuação dos jornais nesse período pode render boas lições para quem vê a política através da imprensa. “O que está publicado não é a verdade dos fa­tos, mas apenas uma determina­da visão dos fatos”, explica Beatriz Kushnir. Vinda do passado, a lição que fica para o presente e para o futuro é a de ter leitura crítica so­bre tudo o que os jornais publicam – inclusive essa reportagem que você acaba de ler agora.
Censura bem antes do AI-5
Um erro comum é marcar o início da censura à imprensa apenas em 1968, depois do anúncio do Ato Ins­titucional número 5, que restringiu ainda mais as liberdades no Brasil. Alguns anos antes, vários jornais que se opuseram ao governo militar foram invadidos e tiveram suas ins­talações destruídas. Isso aconteceu com periódicos de médio porte, mas também com grandes veículos de imprensa, como os extintos jornais ‘Ultima Hora’ e ‘Correio da Manhã’, ambos do Rio de Janeiro.
Depois de 68, a censura tornou-se sistemática e em muitas redações os representantes do governo acompanhavam o fechamento dos jornais para determinar o que podia ou não ser publicado. “Lembro de dois co­ronéis fardados que ficavam na reda­ção no papel de censores”, lembra o jornalista Luarlindo Ernesto, do DIA , que na época trabalhava no jornal ‘O Globo’. “Várias vezes chegavam com uma relação de assuntos que não po­deriam ser publicados.”
O teor dos temas proibidos ia desde manifestações de insatisfação política a delitos de vários tipos pra­ticados por membros das Forças Ar­madas – incluindo crimes passionais. Alguns jornalistas que desobedeciam à censura foram detidos e levados para a prisão da Ilha das Flores. De­pois de algum tempo, a ditadura ado­tou o método de enviar às redações ordens escritas, com detalhes sobre o conteúdo recomendado. Eram os chamados “bilhetinhos.” À frente do Jornal do Brasil, Alberto Dines, por exemplo, contou ter recebido 288 ordens desse tipo, de setembro de 1972 a dezembro de 1974.
Em muitas ocasiões, os meios de comunicação tentaram driblar as limitações impostas pela censura. Ao noticiar a publicação do AI-5, por exemplo, o JB aproveitou a coinci­dência de uma data comemorativa para estampar na primeira página: “Ontem foi o Dia dos Cegos.” Em outro espaço, usou a previsão da meteorologia para destilar mais iro­nia: “Tempo negro. Temperatura su­focante. O país está sendo varrido por fortes ventos. Mínima – 5 graus, no Palácio Laranjeiras. Máxima – 37, em Brasília.” Na chamada imprensa alternativa, O Pasquim foi o campeão de desobediência. Ficou famosa a entrevista com Leila Diniz em que os palavrões foram substituídos por as­teriscos e cifrões.
Apesar desse tipo de estratégia, a historiadora Beatriz Kushnir avalia que as empresas jornalísticas não foram tão firmes como deveriam ter sido no repúdio à censura. “Se essa resistência tivesse sido tão gran­de, os 220 censores que tinham a missão de controlar toda a impren­sa brasileira não conseguiriam dar conta das suas tarefas”.
‘Correio’ é exemplo da guinada
Um caso extremo nessa trajetória da imprensa, que passou da defesa do governo militar à oposição ao regime, é o que aconteceu com o extinto jor­nal carioca ‘Correio da Manhã’, cuja primeira página é reproduzida nesta edição. Dois de seus editoriais contra o governo Jango são lembrados até hoje como os principais exemplos de apoio ao golpe.
“Não é tolerável esta situação calamitosa provocada artificialmen­te pelo Governo, que estabeleceu a desordem generalizada (..)”, esbra­vejava o veículo em 31 de março, no texto intitulado ‘Basta!’. No dia 1° de abril, o editorial ‘Fora!’ traçava para Jango o perfil de um inconsequente. “É o maior responsável pela guerra fratricida que se esboça no território nacional”. O golpe foi comemorado nas páginas do ‘Correio’.
Quando, gradativamente, os direitos civis fo­ram sendo retirados, o jornal passou a se opor à ditadura. Por causa disso, foi perseguido, teve a sede atacada a bomba, invadida e interditada. Uma das edições foi confiscada e a proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, ficou presa por mais de dois meses. Diante da asfixia política e financeira, o jornal por onde passa­ram Lima Barreto, Antonio Callado e Carlos Drummond de Andrade foi ar­rendado a um grupo de empreiteiros simpáticos aos militares e tornou-se alinhado com o governo. Acabou fechando seis anos depois.

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