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3.15.2014

O Supremo fraudou a lei

Política

Reflexão saudável sobre a possibilidade de impeachment de Joaquim Barbosa, inspirado nas lições de Nilo Batista

por Mauricio Dias publicado 15/03/2014 09:13


ABr

Barroso
O presidente do STF, Joaquim Barbosa 
A reflexão em torno de um impeachment do ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), não é mera picardia de petistas ou mesmo de advogados dos réus da Ação Penal 470, “o mensalão”, um julgamento no qual valeu tudo para alcançar a condenação dos acusados. É do interesse da própria Justiça.
O que deveria ter sido um processo sério, a Ação Penal 470, em torno de ilícitos flagrantes de alguns dos envolvidos e da ausência de provas contra outros, transformou-se num espetáculo de luta livre, no qual valia de dedo no olho a pontapé no baixo- ventre.
Na última etapa do julgamento, a apreciação dos embargos infringentes em torno do crime de formação de quadrilha, o presidente do Supremo se expôs de forma complicada. No debate que provocou com o ministro Luís Roberto Barroso, quando este apresentava o voto, Barbosa confirmou o que os advogados de defesa, e mesmo alguns leigos, já suspeitavam.
“Da cadeira do mais alto posto do Poder Judiciário brasileiro, o ministro Joaquim Barbosa confessou que fraudara a lei”, afirma o criminalista Rafael Borges.
Segundo Borges, a fixação de penas, por vezes exorbitantes e desalinhadas com a jurisprudência da própria Corte, não se orientou pelos critérios legais estabelecidos, mas “pelo desejo ilegítimo e indecoroso” de evitar a prescrição e, com isso, a extinção da punibilidade de alguns réus condenados (íntegra no site Carta Capital.com.br).
Esse triste momento para o STF foi praticamente descartado das informações em torno daquela sessão. O criminalista, no entanto, inquietou-se com o silêncio conivente. O ponto máximo do episódio está exatamente aos 3:03 minutos do vídeo disponível no endereço eletrônico http://m.terra.com.br/video/7336925.
Em síntese, conforme explica o criminalista Rafael Borges, o ministro Barroso reiterava que não fazia sentido o aumento das penas do delito de corrupção ativa, passiva, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta, à razão de 15% a 21%, em contraposição ao aumento de 63% a 75% no delito de formação de quadrilha ou bando, embora “as circunstâncias judiciais fossem rigorosamente as mesmas”.
Com a polidez e a sutileza habituais, escalavrou um ponto obscuro e delicado ao dizer não ser do seu interesse debater “se essa exacerbação tinha sido feita para evitar a prescrição ou para mudar o regime de semiaberto para fechado”.
Perseguido por incômodo e doloroso problema de coluna, o ministro Barbosa tem conduzido as sessões do tribunal alternando sua posição. Ora sentado, ora de pé. Estava recostado no espaldar da cadeira no momento em que interferiu de forma truculenta na fala de Barroso: “Foi feito para isso, sim”.
Borges define a ação intempestiva do presidente do STF como “confissão indecorosa”. Ele a aproxima do delito de prevaricação e cita um argumento do penalista Nilo Batista, várias vezes citado no julgamento: “Um pena cuja aplicação ingresse (...) o componente de evitar a prescrição é nula na medida em que se vale de um critério que extrapola da lei”.
Para Rafael Borges, até o momento da confissão transmitida pela TV Justiça, a inobservância das normas relativas à fixação das penas não parecia fruto “de uma consciente fraude à lei”.
Ignorado esse problema, como vem ocorrendo, resta lamentar o péssimo exemplo dado pela mais alta Corte da Justiça brasileira. 

A desnecessária e reveladora resposta de Joaquim Barbosa foi chocante. Acenderam-se os refletores sobre a acrobacia jurídica. Que péssimo exemplo
por Rafael Borges — publicado 15/03/2014 09:14 Andou bem o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro quando afirmou que “se um juiz admite que elevou as penas para dar exemplo, fugir da prescrição e mudar o regime, é motivo para impeachment” (coluna Painel, Folha de 2.mar.14). Referia-se ao debate havido entre os Ministros Joaquim Barbosa e Roberto Barroso durante a sessão de julgamento dos Embargos Infringentes na Ação Penal nº 470 e à possibilidade de aplicação imediata dos artigos 52, inciso II, da Constituição da República de 88[1] e 39, 5, da Lei nº 1.079/50[2], que “define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento”. Após interromper o Ministro Roberto Barroso na leitura de seu voto e discutir com o Ministro Dias Toffoli, que saiu em defesa da liberdade de expressão do colega, o Ministro Joaquim Barbosa confirmou aquilo que todos já suspeitavam: a fixação de penas – por vezes exorbitantes e desalinhadas com a jurisprudência da própria Corte – no julgamento da ação penal nº 470 não se orientou pelos critérios legais estabelecidos (artigo 59 e seguintes do Código Penal e outros presentes na legislação esparsa), mas pelo desejo ilegítimo e indecoroso de evitar a prescrição e, com isso, a extinção da punibilidade de alguns réus condenados. Da cadeira do mais alto posto do Poder Judiciário brasileiro, o Ministro Joaquim Barbosa confessou que fraudara a lei.

O flagrante está aos 3:03 minutos do vídeo disponível neste endereço eletrônico (http://m.terra.com.br/video/7336925). Com o auxílio da matemática e a partir de observações rigorosamente técnicas, o Ministro Roberto Barroso estava demonstrando aos seus pares as discrepâncias que observou na fixação das penas relativas ao delito de quadrilha (art. 288 CP). Destacava que não fazia sentido que o Supremo Tribunal Federal houvesse aumentado as penas dos delitos de corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta à razão de 15% a 21% e, quanto ao delito de formação de quadrilha ou bando, esse aumento tivesse alcançado de 63% a 75%, muito embora – e este é o dado essencial – as “circunstâncias judiciais fossem rigorosamente as mesmas” (3:23 mins.). Tendo constatado essa evidente “contradição interna existente no acórdão”, o Ministro Roberto Barroso ainda ponderou polidamente que não era de seu interesse debater se “essa exacerbação tinha sido feita para evitar a prescrição ou para mudar o regime de semi aberto para fechado”, instante em que ouviu-se o Ministro Joaquim Barbosa dizer: “foi feito para isso sim!” (3:04 mins.). Com equilíbrio e paciência, o Ministro Roberto Barroso seguiu com seu voto, ponderando que “não me passaria pela cabeça insinuar qualquer motivação indevida de Vossa Excelência ao fazer isso” (fixar penas contraditórias relativamente ao delito de quadrilha ou bando), não obstante a confissão indecorosa que acabara de escutar.  Para o Ministro Roberto Barroso, acusado pelo Ministro Joaquim Barbosa de proferir um voto político e não técnico, “depreciar quem pensa diferentemente, com todo respeito, é um déficit civilizatório”. Também viola os padrões civilizatórios, a Constituição da República, a Lei nº 1.079/50 e flerta com o delito de prevaricação (art. 319 CP[3]) a conduta do juiz que fixa reprimendas penais com o deliberado (e confessado!) intuito de tornar sem efeito os lapsos temporais previstos em lei causadores da prescrição.

Na “satisfação de interesse ou sentimento pessoal”, nos ensinou o insuperável Fragoso, “está o traço fundamental da prevaricação, que a distingue de outros delitos da mesma natureza. O interesse pessoal pode ser de qualquer espécie (patrimonial, material ou moral). O sentimento pessoal diz com a afetividade do agente em relação às pessoas ou fatos a que se refere a ação a ser praticada, e pode ser representado pelo ódio, pela afeição, pela benevolência etc[4]. Independentemente da instância a qual pertença, o magistrado que fixa penas e, portanto, pratica ato de ofício a partir de critérios ilegais atua ilicitamente. Os juízes, de qualquer grau de jurisdição, prestam solene compromisso de cumprir rigorosamente as leis República e não podem, sob pretexto algum, deixar de cumpri-las, ainda que em nome dos mais respeitáveis interesses e sentimentos pessoais. Haverá prevaricação se na origem dessa atuação indevida estiver presente a satisfação de interesse ou sentimento pessoal. Se a pena verdadeiramente justa está prescrita, “fazer justiça” significa condenar o acusado e em seguida extinguir sua punibilidade por força da prescrição. O processo de construção e aplicação da pena tem início no artigo 59 e fim no artigo 120 do Código Penal, passando pelo artigo 109, que disciplina a prescrição da pretensão punitiva. Percorrer o caminho inverso – estabelecendo primeiro uma pena não prescrita e criando depois argumentos que sustentem a exasperação – constitui hipótese autêntica de fraude à lei.

O Professor Nilo Batista debruçou-se sobre o tema com a precisão costumeira:

“Há, em alguns círculos forenses brasileiros, um autêntico preconceito contra a prescrição. É como se a prescrição fosse um instituto espúrio, quase indecente: isso explica que a vergonha de seus efeitos seja sempre metaforicamente escondida (sob o ‘manto’ da prescrição e expressões similares) (...)
Uma pena em cuja aplicação ingresse (...) o componente de evitar a prescrição é nula, na medida em que se vale de um critério que extrapola da lei (artigos 59 ss CP).
Para melhor compreensão deste fenômeno jurídico, podemos recorrer a uma categoria que, oriunda do direito romano, seria desenvolvida pelos pandectistas alemães no século XIX: a fraude à lei. Apesar de sua origem privatística, e de ter no direito privado seu campo privilegiado, admite-se hoje que atos administrativos podem exibir o vício, no qual Giovanni Giacobbe viu abuso de poder: ‘L’atto amministrativo in fraudem legis è viziato per eccesso di potere’. De forma geral, nosso Regis Fichtner Pereira afirma que “os atos in fraudem legis seriam aqueles em que a inobservância da norma se daria de forma indireta, de maneira que, à primeira vista, pareceria não ter sido produzida qualquer violação”. Para empregar palavras de Umberto Morello, na fraus legis autênticas acrobacias jurídicas (“autentiche acrobazie giuridiche”) se escondem nas vestes de meios inatacáveis (“mezzi inattacabili”) segundo o estrito direito positivo”[5].

Até o momento da confissão televisionada, a inobservância das normas relativas à fixação das penas não parecia, pelos menos aos mais ingênuos, fruto de uma consciente fraude à lei. O nexo de causalidade entre as penas fixadas e a utilização deliberada de um critério ilegal (fugir da prescrição) ficou explícito naquela sessão de julgamento. A desnecessária e reveladora resposta do Ministro Joaquim Barbosa foi chocante. Acenderam-se os refletores sobre a acrobacia jurídica.

Que péssimo exemplo para os jovens magistrados! O que fará o Senado da República? O que fará o CNJ?


[1] Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 02/09/99)
II processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (...)
Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.
[2] Art. 39. São crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal:
1- altera, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal;
2 - proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa;
3 - exercer atividade político-partidária;
4 - ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo;
5 - proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decôro de suas funções.

[3] Art. 319 – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
[4] Fragoso, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, São Paulo, José Bushatsky, 1959, p. 923.
[5] Batista, Nilo, Novas tendências do direito penal – artigos, conferências e pareceres, Rio de Janeiro, Revan, 2004, pp. 212/213.


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