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3.30.2014

Os 20 dias que mudaram o Brasil

As radicalizações das forças políticas de direita e esquerda, a atuação dos conspiradores civis e militares e os equívocos políticos do governo João Goulart contribuíram para que, entre os dias 13 de março e 1º de abril de 1964, o golpe fosse consumado

Sérgio Pardellas

Foi a partir de uma data associada ao mau agouro que a situação política do então presidente da República João Goulart se deterioraria e as forças golpistas civis e militares encontrariam solo fértil para, dali a 20 dias, articular e sacramentar sua deposição, que condenou o País a 20 anos de trevas. Eram 19h45 de uma sexta-feira 13 quando o nada supersticioso Jango, suando frio, ainda meio baqueado por uma queda de pressão horas antes, subiu ao palanque erguido na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Enquanto aguardava o momento do seu pronunciamento, Jango fixou os olhos na multidão – cerca de 200 mil pessoas. A imensa maioria exibia cartazes com dizeres a seu favor. Em meio a um ambiente de radicalização à direita e à esquerda, greves e inflação em alta, o evento estava sendo observado com atenção não só pela população, mas por segmentos expressivos da sociedade civil, agentes políticos de todas as colorações partidárias e, principalmente, militares governistas e oposicionistas. Afinal, o comício poderia marcar a definitiva aliança com as esquerdas de um presidente até então hesitante a fazê-lo por medo de perder o apoio dos moderados, encarnados pelo PSD de Tancredo Neves. A expectativa se confirmou.
abre.jpg FIM DE LINHA
Sem oferecer resistência ao golpe, Jango,
já deposto, experimentaria sua pior solidão
Ao tomar a palavra, às 20h46, sob forte calor e tensão emocional, ao lado da mulher, Maria Thereza, Jango, de improviso, proferiu um de seus mais duros discursos desde a posse. Enquanto o ministro da Casa Civil Darcy Ribeiro soprava palavras incendiárias em seu ouvido, aproveitando as pausas no discurso, Goulart selava sua união com as esquerdas ao defender as reformas de base, entre elas a agrária, confirmar o rompimento com o PSD e pregar a necessidade de reescrever a Constituição, à qual se referiu como antiquada. O pronunciamento magnetizou a plateia e inflamou representantes do PTB, PCB e CGT, mas também atiçou a caserna e setores conservadores. A imprensa alinhou-se nas críticas ao comício e, daquela sexta-feira até 1º de abril, o conflito político entre os grupos antagônicos da época assumiu proporções preocupantes para a continuidade do processo democrático.
O discurso de Jango se materializaria, dois dias depois, em uma mensagem enviada ao Congresso. Além das reformas de base, Goulart propunha uma reforma eleitoral que criava o instituto da reeleição para presidente e abria brechas legais para a candidatura ao pleito de 1965 do cunhado Leonel Brizola, uma das principais lideranças do PTB. Até então, o petebista não poderia se lançar candidato porque a Constituição dizia que eram inelegíveis parentes de até segundo grau de ocupantes do Executivo.
O ambiente não poderia ser mais propício para a movimentação dos militares golpistas. Para as esquerdas, as iniciativas do presidente foram encaradas como uma vitória. Para a direita e conspiradores, “já não se tratava de resistir, mas de intervir no processo para liquidar uma situação tida como intolerável”, sublinhou o jornalista Carlos Castello Branco, que assinava uma das colunas mais respeitadas da época, Coisas da Política, no “Jornal do Brasil”.  Até Juscelino Kubitschek, do PSD, que não costurava e nem sequer pensava em golpe de Estado, pois era um dos candidatos favoritos à eleição de 1965, comentou com um interlocutor: “Jango passou dos limites. Saiu da legalidade que o sustentava”, anunciou. O governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, da UDN, e o de São Paulo, Adhemar de Barros, passaram a ocupar rádios e televisões para atacar Goulart. Carlos Lacerda, ferrenho opositor, governador da Guanabara, ampliou o tom dos ataques. Em meio ao clima de tensão política e desconfiança geral, nem as esquerdas pareciam pacificadas, mesmo após todos os movimentos do presidente em direção aos seus anseios. Houve, na esquerda, quem considerasse que um eventual golpe em marcha, de inspiração direitista ou não, pudesse contar com a participação do próprio presidente.  
A Marcha da Família disseminou o medo da esquerda
No dia 18 de março, o ex-presidente da República Eurico Gaspar Dutra concedia uma entrevista ao “JB” em que, além de atacar pessoalmente Goulart, pregava “a união em defesa da legalidade enquanto é tempo”. A entrevista, de grande repercussão, embalou manifestações populares a favor da destituição de Jango. Numa espécie de revide ao Comício da Central, no dia 19 de março surgiu o movimento intitulado Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Ostentando cartazes com os dizeres “Comuna não tem vez” e “Aqui não, João”, a marcha reuniu 500 mil pessoas, entre lideranças conservadoras, católicas e setores da classe média, na praça da república, em São Paulo. O evento que tomou as ruas da cidade representou o grande ato de resistência a Jango. Naquela altura, entre os círculos conspiratórios, Castelo Branco começava a se sobressair como liderança anti-Goulart. O sentimento de medo de um governo de esquerda que, para os opositores a Jango, “ameaçava a Constituição e a família brasileira”, fora disseminado e ganhou ainda mais fôlego. Restava a gota d’água. E ela teria proporções de um oceano para Goulart: a rebelião dos marinheiros.
Em 23 de março, marinheiros e fuzileiros organizavam o aniversário da associação que os representava. A festa ocorreria na sede da Petrobras e serviria para os subalternos da Marinha criticarem as condições de trabalho. O ministro da Marinha, Sílvio Mota, interveio na tentativa de proibir não só a utilização da Petrobras como local da festa, mas também a comemoração em si. No dia 24 de março, véspera do aniversário da associação não reconhecida pela Marinha, Mota mandou prender 12 de seus dirigentes. Entre eles, seu presidente, o cabo José Anselmo. Quando a crise eclodiu, em 25 de março, Jango estava com a família em São Borja. Durante o evento, realizado na sede do Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, cerca de dois mil marinheiros ouviram um discurso desafiador do cabo Anselmo. Em tom político, ele defendeu as reformas de base e atacou seus superiores.
03.jpg CONSPIRAÇÃO MILITAR
Após a ida de Jango ao Automóvel Clube, o general
Castelo Branco intensificou tratativas para o golpe
A festa se desenrolava quando Mota mandou prender outros 40 marinheiros, mas foi desautorizado por Jango. Horas depois, o ministro da Marinha renunciou ao cargo. No dia 27 de março, Jango, mesmo pressionado pelas Forças Armadas, decidiu anistiar os rebeldes. Sentindo-se feridas no que mais de essencial existia nelas, os fundamentos da autoridade, hierarquia, disciplina e respeito às leis militares, as Forças Armadas estavam à beira de um rompimento definitivo com Jango. Em conversa com o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, JK dizia que na noite de 29 para 30 de março o País vivia “a maior crise político-militar de sua história”. Os jornais afirmavam que “o estado de direito submergia no Brasil”.
O momento exigia de Jango prudência política, mas ocorreu o inverso. No dia 30 de março, o presidente resolveu comparecer à sede do Automóvel Clube, onde aconteceria a posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar. Para assessores próximos a Goulart, a ida ao evento era uma insensatez. Tancredo Neves aconselhou-o pessoalmente a não ir, mas o presidente fez ouvidos moucos e desembarcou no Automóvel Clube perto das 20h, acompanhado da mulher e de alguns ministros. Em discurso, além de acusar “inimigos da democracia” de conspirar contra o seu governo, Jango usou termos contrários à disciplina militar que azedaram de vez sua relação já esgarçada com as Forças Armadas. Até os oficiais legalistas e nacionalistas já temiam pelo pior. “Acabou-se. Não há mais sustentação. Eles vão dar o golpe”, disse o tenente-coronel Alfredo Arraes de Alencar. A partir dali, organizações de esquerda passaram a se preparar de fato para um possível golpe. “Agora, quanto pior, melhor”, dizia o general Ernesto Geisel.
Rebelião dos marinheiros e discurso
em clube militar foram a gota d’água
No dia 31 de março, o movimento golpista já estava em marcha e ganhava dinâmica própria. Em editorial intitulado “Basta!”, o prestigiado jornal “Correio da Manhã” passou a cobrar a deposição de Jango. O presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, foi um dos primeiros políticos a romper publicamente com Jango, ao denunciar a “infiltração comunista no País” e afirmar a necessidade da “intervenção militar para garantir a ordem”. Em seguida, o governador de Minas, Magalhães Pinto, apresentou-se como líder civil do movimento para depor Goulart. Horas depois o presidente teve a confirmação do golpe em curso. De Juiz de Fora (MG), o general Olímpio Mourão Filho liderava um comboio militar, formado por recrutas, que marchava para a Guanabara. Em uma derradeira conversa com Jango, no Palácio Laranjeiras, JK sugeriu ao chefe do Executivo medidas conservadoras para estancar a crise. Fez coro o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Peri Bevilaqua. O general garantiu apoio militar, desde que declarasse oposição às greves patrocinadas pela CGT e se comprometesse com a manutenção da disciplina e da hierarquia militar. Goulart se recusou a tais exigências. Naquele momento, o presidente ainda acreditava num dispositivo militar a seu favor. Pensava também contar com o apoio do general do II Exército, Amaury Kruel, que ainda não havia se posicionado em meio ao turbilhão da crise. Quando tropas, tanques e carros blindados do Exército estacionaram no Ibirapuera (SP), Kruel tomou sua decisão em favor dos golpistas. Em pronunciamento às rádios, depois de o governador Adhemar de Barros declarar apoio aos mineiros, Kruel disse que a Pátria deveria ser salva do “jugo vermelho”. Foi uma derrota para Goulart. Do QG do Exército, Geisel e Golbery do Couto e Silva aglutinavam os focos de rebelião militar por telefone. Na noite de 31 de março, Kruel ordenou o deslocamento das tropas do II Exército em direção à Guanabara. Ou seja, para lá marchavam as colunas militares de Minas e de São Paulo, ambas para derrubar o governo. No Nordeste, o comandante do IV Exército também acompanhou os golpistas e ordenou a prisão do governador Miguel Arraes. Ao amanhecer do dia 1º de abril, o governo de Jango estava sitiado. Às duas da madrugada do dia seguinte, quando o presidente já se encontrava em sua estância em Porto Alegre, o presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, declarou a vacância do cargo de presidente. O golpe estava consumado.
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Fotos: CPDOCJB/Folhapress, UH/Folhapres

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