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5.26.2014

“Diz que eu sou uma boa mãe!”

A aventura de educar e a tentativa frustrada de evitar perigos na ótica de um desenho animado

ISABEL CLEMENTE
Sentei no sofá ao lado da minha filha mais velha para ver televisão e lá pelas tantas eu ria mais do que ela do desenho animado. Assistíamos a O incrível mundo de Gumball, um desenho daqueles sem pé nem cabeça, que você não consegue discernir se o boneco é um coelho ou um urso, mas com diálogos inesperadamente inteligentes e engraçados.
Gumball é um menino de 12 anos, tem uma irmã mais nova, um bicho de estimação com vida que, pelo que entendi, faz o papel do terceiro filho do casal formado por um pai coelho e uma mãe azul um tanto histérica.
Em boa parte do desenho, ela está irritada. Expressão franzida, prestes a ter um piripaque. Naquele episódio, a mãe enlouquecida se via num embate com a sogra por criticá-la incessantemente. Deve ser inspirado em fatos reais.
Segundo a vovó, uma boa mãe evita os acidentes antes que eles aconteçam, e a mãe do Gumball não era precavida o suficiente. Dava liberdade demais arriscando a pele dos filhos e do marido, que vira uma quarta criança na trama. Baseado em fatos reais?
Em sua saga para provar que estava certa, a vovó deu sustos de arrepiar em todos. Mandou Gumball comprar leite na rua. No caminho para o mercado, o moleque foi perseguido por um carro preto que subiu na calçada, derrubou cercas, atropelou latas de lixo e quase o matou ao longo de seis quarteirões. De dentro do veículo, saiu a avó triunfante. “Agora você aprendeu a lição. Sair na rua pode ser perigoso”, disse.
Lições semelhantes foram aplicadas nos outros três, que quase morreram de susto ao tentar abrir uma janela, pegar uma ferramenta no quintal ou passar manteiga no pão com uma faca. Neste último caso, a vó simulou ter mutilado o próprio dedo ao lado da netinha caçula, que gritou horrorizada ao lado da avó que também berrou desesperada como se fosse de dor. Depois do pânico veio o didatismo fatídico: “agora você aprendeu a lição. Usar faca pode ser perigoso”.
No final das contas, os quatro (incluindo o pai!) só ficaram em casa assistindo televisão e comendo sem parar. Engordaram e emburreceram. Não sabiam nem mais como girar a maçaneta da porta. Os cérebros tinham dado pane. Diante daquilo, a mãe se vê obrigada a retomar o leme da situação. Para tirar os filhos e o marido de uma enrascada (estavam a toda velocidade num carro e não sabiam o que fazer para frear), ela disse que eles precisavam usar a cabeça. E num sopro de sabedoria final absolve o pai das crianças da obrigação de acertar: querido, você pode errar!
E então o querido funcionou.

>> Hora de largar o celular e olhar para seu filho

Claro que ela só falou aquilo porque estava num desenho animado. Errar na direção de um carro desgovernado em alta velocidade seria fatal. Mas é genial a mulher dar um passo atrás, parar de criticar o marido e só então ele acertar o passo.
Àquela altura do desenho animado, eu ainda me divertia com tanto absurdo junto, a minha filha mais nova dizia que era a coelhinha menor (a mesma que teve um troço diante do falso dedo mutilado da avó) e a filha mais velha afirmava que aquele protótipo desenhado de mulher histérica azul era sim uma boa mãe. “A avó com mania de segurança é que é louca”, disse. Muito bem, Letícia! - eu vibrando por dentro.
“Diz que eu sou uma boa mãe!!”, gritava a nora irritada. A sogra-coelha deu o braço a torcer e concordou que a mulher azul era boa mãe mesmo não evitando acidentes e outras bobagens que que seus filhos levados à beça faziam.
Aquele desenho reproduzia no “modo exagero” a vida de muitas famílias. Pais de pijama (metáfora para a falta de ação), mulheres descontroladas agindo como mães de todos, avós dando pitacos errados na educação dos netos, crianças entretidas apenas pela TV sem exercitar corpo e mente e a comida como o maldito recheio a preencher lacunas de medos e carências. Os roteiristas são muito perspicazes. Para você ver que tudo é aprendizado no convívio diário com crianças, até parar para ver um desenho animado meio biruta.
A história me fez refletir também sobre a mais difícil das missões: ensinar nossas crianças a viverem de forma independente, o que exige um baita freio nessa propensão de querer mantê-las longe dos perigos, mesmo depois de crescidas.
Eu sei o quanto praticar isso é difícil, mas ser um bom pai e uma boa mãe não é antever e evitar todos os perigos, mas preparar os filhos para enfrentá-los sem ou apesar da presença.

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