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8.03.2014

Cracolândia tem 'organização' regras e código de conduta

Entorpecidos pelo consumo, viciados em crack vivem como se estivessem num universo paralelo, em comunidades em que o tempo passa num compasso diferente do marcado nos relógios e que têm as suas regras próprias de solidariedade

Christina Nascimento
Rio - Há um Rio onde meninas de pele dourada não desfilam à beira-mar, aonde turista não vai e onde nem mesmo a melhor das imaginações é capaz de transformar em letra de samba. São 11h20, na Nova Holanda, Complexo da Maré, favela ocupada pelo Exército. A rua está cheia de gente, principalmente crianças. Numa tenda improvisada, dois casais sentados ao chão riem, visivelmente entorpecidos. Seguem um ritual que lembra o fumo do narguilé, mas lá, na roda, estão pedrinhas, que de tão miúdas parecem inofensivas. São quatro, cinco, fumadas em sequência, num copo de água vazio. A média é de 16 por dia. Ali, na miséria, dia e noite não se separam.
A fissura pelo crack, tema de série que O DIA começa hoje, é o que dita o compasso do tempo. “Ainda não dormi. Estou virado. Por ela, pela droga”, conta X., 37 anos, ao ser abordado por uma equipe de acolhimento da prefeitura.
Sem casa e sem família, só a fumaça da droga
Foto:  Maíra Coelho / Agência O Dia
Os olhos se destacam no rosto sujo. As mãos, cheias de anéis, estão imundas e envelhecidas, assim como o rosto, que aparenta ser de um homem de 50 anos. No peito, carrega um cordão com chupetas. O acessório é um signo de paternidade. Quem tem filhos tem o objeto num bolso do short esfarrapado, num alfinete pendurado na camisa encardida, independentemente dos laços rompidos.
“Está vendo? São quatro, um para cada filho. É para lembrar deles, que ficaram com as mães”, conta X., que contraria o senso comum e mostra lucidez e consciência sobre sua própria realidade.
Ele é ‘casado’, “não sabe há quanto tempo”, com Y., 24 anos, fisionomia de 40, dona de sorriso quase sem dentes e de uma chupeta. Os dois moram na cracolândia da Rua Flávia Farnese, a dois quarteirões da Avenida Brasil. Seguem o padrão de comportamento do acampamento de tendas, barracos de papelão, plástico, muita pobreza e lixo.
Lá, praticamente, não há ‘solteiros’. Os relacionamentos são efêmeros, mas fiéis enquanto duram. E isso pode ser dois dias ou dois anos. “O tempo da rua é outro. Eles se conhecem hoje e se ‘casam’. Para esse homem, a questão da genética é muito inferior. Ele assume (naquele universo) a mulher e o filho, mas elas geralmente recusam essa paternidade.
A bagunça deles é, sim, organizada”, explica a psicóloga Diana Ribeiro, uma das coordenadoras do Projeto Proximidade, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Com seu grupo, ela vai até quatro vezes por dia à cracolândia oferecer assistência. “Tentamos convencê-los a tirar a identidade, ir a um dos nossos centros, tomar um banho, fazer um lanche. Não é tratamento de cura. É oferecer serviços, cidadania, para motivá-los a ter uma outra vida”.
Vídeo:  Cracolândia: Sem casa e sem família

Mergulhar no universo do usuário de crack que vive nas ruas é derrubar alguns mitos. Se de longe são apenas um formigueiro de maltrapilhos, sem rumo, inaladores sem justificativa do vapor da cocaína, na grande angular nota-se uma lógica de convivência de comunidade.
Há regras, hierarquia e código de conduta. A droga é partilhada, assim como a comida e o sentimento de segurança. Em comum, têm, além do vício, histórico de problemas familiares, baixa escolaridade e a recusa em aceitar tratamentos de saúde. “A gente aqui tem meta 5 (reais), entendeu? Meta 5. Se não conseguir, pega R$ 2,50 de um e junta com o de outro. Nóis (sic) divide tudo”, conta Z., 24 anos.
O valor da “meta” compra a menor pedra de crack e é conseguido, na maioria das vezes, na ‘correria’ — garimpo no lixo de objetos para venda e pequenos bicos — e nos furtos. A compra não pode ser em moeda, porque o tráfico só aceita notas. As maiores pedras custam R$ 10 e R$ 20. E, no Jacarezinho, onde a cracolândia na linha do trem chega a ter 185 pessoas numa única manhã, há comerciantes que fazem a troca do dinheiro, com ágio de até 20%.
No copo de água, o saciar de um prazer
O copo de água é o cachimbo da vez. E, na cracolândia da Nova Holanda, ele é oferecido por R$ 1 em mesinhas de compensado de madeira ou plástico que são colocadas na frente das cabanas usadas como moradia, alimentando o comércio de um produto só e que mostra que a cadeia do vício vai além da boca de fumo do tráfico.
São os próprios usuários que vendem para eles mesmos o utensílio para fumar. O processo para o uso é sistemático e tem uma certa morbidez. Fazem-se dois furos na tampa do copo e tira-se a água. Num dos buracos, a pessoa joga a pedra e, no outro, aspira o vapor. A combustão é feita com a brasa de cigarro de tabaco.
Os copos plásticos de água têm um valor especial para moradores da cracolândia. São usados como cachimbos, nos quais pedras são queimadas
Foto:  Maíra Coelho / Agência O Dia

Os estalos da queima explicam o nome da droga, crack, e contrastam com o silêncio do viciado, hipnotizado enquanto prepara a pedra para saciar o desejo. Os efeitos chegam como uma pancada e, em segundos, ao sistema nervoso.
A ‘onda’ é igualmente instantânea. Quase nunca ultrapassa um minuto. É essa curta duração uma das explicações para a aglomeração de grupos que consomem a pedra. Eles precisam aplacar a fissura a todo momento. Por isso, estabelecem-se próximo ao local onde a droga é vendida. É a territorialidade desenhada pelo consumo.
“É diferente da cocaína e da maconha, que têm efeitos duradouros. A forma de consumo do crack faz com eles fiquem na rua. Essa pessoa que consome a pedra não sai de casa pela manhã, trabalha, faz o uso e volta a se recolher. Ela fica, ali, na rua”, explica o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore André Zílio Maximiano.
Mundo de valores próprios
Talvez seja apenas a sensação de estar limpo diante de tanta sujeira. Em vez do banho, quase raro, enfeites. Muitos. Anéis, cordões, pulseiras, relógios até quase toda a extremidade do antebraço. Adornos que, para alguns, são inegociáveis até mesmo na fissura.
“Arruma 20 (reais), amor!”, grita D., 31 anos, no burburinho das tendas, para o ‘marido’. “É para o crack”, confessa ela, que ostenta um bracelete. Não importa se os cabelos estão desgrenhados, se a pele está comprometida por dermatoses, se as unhas parecem seladas por barro. A cracolândia é uma imensidão onde o belo tem codificação própria. E, nos padrões de lá, o pacote para atração resvala principalmente no companheirismo. Nessa lógica, ter a arcada dentária completa ou não é tão invisível como ter uma casa em Paris. Se é ali que se vive, o real tem que ser palpável.
No Jacarezinho, o crack cria padrões entre os usuários. Até um trecho da linha do trem é o subúrbio, onde os mais miseráveis se encostam na parede enquanto consomem. Do outro ponto em diante, é a ‘Zona Sul’, onde barraquinhas vendem as pedras. Lá, há preciosidades que se perderam por causa da droga. C., 36 anos, é um caso. Toca violino, violoncelo, violão e cavaquinho. Já se apresentou na Europa. Hoje, trafica e consome, mas diz que vai mudar de vida.
Cracolândias espalhadas pelo Rio
Foto:  Arte: O Dia


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