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8.25.2014

Inibidores de apetite: proposta que suspende resolução da Anvisa carece de evidências técnicas


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Em 2011, uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a RDC 52/2011, proibiu a comercialização, a produção e a manipulação de três inibidores de apetite (femproporex, mazindol e anfepramona ou dietilpropiona) e impôs restrições à venda da sibutramina. No entanto, está em trâmite no Congresso Nacional, um Projeto de Decreto Legislativo (PDS 52/2014) que revoga a determinação da Anvisa. Uma das principais justificativas da PDS argumenta que a resolução da Anvisa causou grande insatisfação entre a classe médica, constituindo-se num retrocesso ao tratamento dos obesos no país.
 
Especialista no assunto, o pesquisador do Departamento de Ciências Biológicas da ENSP, Francisco Paumgartten, questiona o fato de uma decisão essencialmente técnica na área de regulação medicamentos ter chegado ao Congresso Nacional. Na entrevista concedida ao Informe ENSP, Paumgartten também esclarece a polêmica entre os próprios médicos e desconstrói a justificativa que sustenta o Projeto de Decreto. Confira a entrevista. 
 
Informe ENSP: Está tramitando no Congresso Nacional um projeto de decreto legislativo que anula a decisão da Anvisa de proibir a venda de inibidores de apetite. Como e por que uma decisão essencialmente técnica da área de regulação de medicamentos chegou ao Congresso? 
 
Francisco Paumgartten: Em 2011, uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC 52/2011) proibiu a comercialização de três inibidores de apetite (femproporex, mazindol e anfepramona ou dietilpropiona) e impôs restrições à venda da sibutramina. Essa decisão atendeu em parte à recomendação da Câmara Técnica de Medicamentos (Cateme), que pediu a retirada dos quatro inibidores de apetite do mercado em virtude da falta eficácia e dos riscos à saúde dos pacientes. No ano anterior, as agências americana (FDA) e europeia de medicamentos (EMA) haviam chegado a conclusões semelhantes em relação à eficácia e segurança da sibutramina (o mais moderno dos quatro medicamentos), cuja comercialização foi suspensa nos Estados Unidos e na Europa.

Acompanhando o que ocorreu no resto do mundo, a empresa que desenvolveu a sibutramina suspendeu voluntariamente a produção e a comercialização do medicamento de marca (Reductil) no Brasil. A sibutramina continua disponível no país sob a forma de medicamentos genéricos e produtos preparados em farmácias magistrais. Apesar de a Anvisa ter mantido a sibutramina, o setor regulado, algumas sociedades médicas e o CFM continuaram a exigir a liberação dos demais inibidores de apetite. Esses setores conseguiram que um projeto de decreto legislativo (PDS 52/2014), que revoga a RDC52/2011, tivesse tramitação excepcionalmente rápida e fosse aprovado por esmagadora maioria na Câmara e na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Senado. Além disso, tudo indica que será aprovado também pelo plenário do Senado em data próxima, posto que, como não depende de sanção presidencial, será promulgado pelo Congresso e entrará em vigor.
 
Informe ENSP: Alguns médicos, que defendem a liberação dos inibidores de apetite, afirmam que o impedimento aumentou a prevalência da obesidade no país. Qual foi o impacto da proibição na prevalência da obesidade no Brasil?
 
Francisco Paumgartten: Essa afirmação, sem apresentação de qualquer dado que a sustente, já era feita antes mesmo da publicação RDC/52/2011 completar o primeiro ano. Até 2011, o Brasil foi possivelmente o maior consumidor mundial de femproporex, anfepramona e mazindol e também de sibutramina. Não obstante a esse fato, a prevalência de excesso de peso (IMC>25) e obesidade (IMC>30) na população brasileira vinha apresentando crescimento constante, ano a ano (42,7%, em 2006, 48,5%, em 2011). Em 2012, segundo levantamento do Vigitel-MS, mais da metade (51%) dos indivíduos maiores de 18 anos tinha IMC>25. 
 
Dados mais recentes (Vigitel-2014) mostram que, pela primeira vez em oito anos, a prevalência de excesso de peso parou de crescer e manteve-se em 50,8% em 2013. Portanto, os levantamentos realizados pelo MS mostram que a retirada dos três inibidores de apetite do mercado e a redução do consumo da sibutramina não aumentaram a prevalência de sobrepeso e obesidade no Brasil. Esse fato é consistente com a interpretação de que os inibidores de apetite são pouco eficazes no tratamento dessas condições. 
 
Informe ENSP: Alguns médicos são a favor da proibição enquanto outros são contra. Por que a questão é polêmica?
 
Francisco Paumgartten: Os médicos contrários à proibição dizem que “prescritos de forma adequada e individualizada, os inibidores de apetite são opções terapêuticas válidas”; que “alguns pacientes só conseguem perder peso com esses medicamentos”; “que há poucas opções para tratar a obesidade” e outras afirmações do gênero. Em nenhum momento no debate que precedeu e sucedeu a RDC52/2011 essas afirmações foram sustentadas por estudos clínicos adequadamente desenhados, executados e interpretados. Em que pese a pouca efetividade e os problemas de segurança, trata-se, portanto, da opinião de especialistas de que esses medicamentos ainda assim poderiam ser utilizados em benefício de alguns pacientes.

Por outro lado, para avaliar se determinado medicamento deve ou não ser aprovado para comercialização (quer dizer, se os potenciais benefícios terapêuticos excedem os riscos), as agências reguladoras (FDA, EMA, ANVISA) seguem o que hoje é conhecido como medicina baseada em evidências (MBE), ou seja, o emprego da melhor evidencia científica disponível para a tomada de decisão. A “melhor evidência” é empírica e resulta de revisões sistemáticas, com ou sem meta-análise, e com baixa probabilidade de vieses e de estudos clínicos de boa qualidade, isto é, adequadamente controlados, aleatorizados, e robustos o suficiente para detectar diferenças entre os grupos tratados com o medicamento e o grupo controle, quando ela de fato existe. A opinião de especialistas, porém, ocupa a última posição nessa hierarquia de evidências consideradas no processo decisório. 
 
Há também a questão do desfecho de eficácia a ser considerado no caso de medicamentos para tratar obesidade. O objetivo primordial do tratamento farmacológico da obesidade é a redução da morbidade associada ao excesso de peso e não a perda de peso em si. Pode-se dizer que perdas de peso alcançadas com dieta e exercício físico, ainda que modestas, são benéficas para a saúde do paciente obeso. Por outro lado, o mesmo não ocorre necessariamente quando a perda de peso é alcançada com medicamentos inibidores do apetite. Isso foi demonstrado para a sibutramina (estudo SCOUT) em relação aos desfechos cardiovasculares. Em virtude de suas propriedades adrenérgicas, a sibutramina aumenta a freqüência cardíaca e a pressão arterial. Embora essa elevação da PA seja via de regra pequena e difícil de ser percebida no consultório, ela é mantida durante o tratamento e constitui fator de risco para doença coronariana e acidente vascular encefálico.

O estudo SCOUT mostrou que a sibutramina aumentou o risco de infarto e derrame cerebral, ou seja, o potencial benefício da perda de peso foi anulado e revertido pelos efeitos adrenérgicos da droga.  Os que defendem a permanência dos inibidores de apetite proibidos (todos com propriedades adrenérgicas) consideram a perda de peso (modesta e transitória) como prova de eficácia, e ignoram que essa perda não se traduziu em benefícios à saúde no longo prazo.     
 
Informe ENSP: Um dos principais argumentos repetidos no Congresso é que com a proibição os médicos ficaram sem opções para tratar a obesidade. Que medicamentos contra obesidade restaram no mercado?
 
Francisco Paumgartten: Esse argumento é falacioso. Medicamentos ineficazes, ou cujos riscos superam os potenciais benefícios, não podem ser considerados como opções terapêuticas válidas. Ademais, a Anvisa proibiu os três inibidores de apetite mais antigos e perigosos, mas manteve a sibutramina. Além da sibutramina há também no mercado o orlistat que não é inibidor de apetite, mas bloqueia a enzima lipase e diminui a absorção de gorduras no intestino, reduzindo o peso. Portanto, os médicos continuam a poder usar um inibidor de apetite e um inibidor da absorção de gorduras.    
 
Informe ENSP: Como o setor farmacêutico foi afetado pela resolução da ANVISA sobre inibidores de apetite?

Francisco Paumgartten: Relatório de 2009 do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC - ANVISA) mostra que, antes da proibição (RDC52/2011), mais de 90% da quantidade total de femproporex e anfepramona consumidos no Brasil correspondiam a medicamentos manipulados e vendidos em farmácias magistrais. O mazindol era bem menos consumido do que os outros dois inibidores de apetite, mas também nesse caso a quantidade aplicada em medicamentos manipulados excedia amplamente a quantidade usada em produtos industrializados. No caso da sibutramina, antes da retirada voluntária do produto de marca, a quantidade consumida em medicamentos manipulados quase igualava aquela consumida em produtos industrializados. Portanto, a proibição dos três inibidores de apetite e a diminuição do consumo de sibutramina após a publicação da RDC52/2011 afetou mais fortemente esse segmento do setor regulado.     
 
Informe ENSP: Quais as implicações do decreto legislativo, caso venha a ser aprovado?
 
Francisco Paumgartten: O PDS 52/2014 revoga a RDC52/2011, mas nada impede que a Anvisa publique outra resolução que tenha os mesmos efeitos da anterior e mantenha os três medicamentos fora do mercado. A revogação pelo Congresso de uma decisão técnica da Anvisa, baseada em análise de evidências científicas de segurança e eficácia de medicamentos é um fato inédito e preocupante. Os parlamentares não só não possuem competência técnica exigida para esse tipo de análise, como foram parciais ouvindo apenas a retórica a favor da liberação dos inibidores de apetite. O mais grave, porém, é que análises e decisões sobre a regulação de medicamentos exigem a explicitação de potenciais conflitos de interesse. As agências reguladoras têm regras e procedimentos para que as decisões não sejam indevidamente influenciadas pelos interesses do setor regulado. A cada reunião da Cateme, por exemplo, os membros assinam uma declaração explicitando potenciais conflitos de interesse em relação aos temas da pauta. No congresso, entretanto, os lobbies do setor regulado, apoiados pela uma boa parte de médicos.  atuam livremente.

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