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12.24.2014

Entre gritos e sussurros

As reformas de base foram o alvo, hoje o são o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida
por Luiz Gonzaga Belluzzo publicado 21/12/2014 08:37
Acervo / Estadão Conteúdo
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Em lugar dos tanques de 64, chega a intolerância dos mercados e da mídia
O jovem professor infiltrou-se na passeata dos que pediam intervenção militar. Eram 200, talvez 300 gatos-pingados que caminhavam pelas ruas de São Paulo carregando e exibindo cartazes conclamando os militares a repetir o gesto trágico que assolou o País ao longo de 21 anos, entre 1964 e 1985.
Entre as faixas e cartazes, o professor foi atraído pela elegante quarentona. De cenhos e punhos cerrados, ela berrava slogans contra os imaginários arreganhos da “República Bolivariana”.  O rapaz caminhou algumas centenas de metros na companhia da manifestante. Engatou uma conversa. Lá pelas tantas perguntou: “O que é essa tal de República Bolivariana”? Resposta: “É o que temos hoje no Brasil. Essa Bolsa Família distribui dinheiro para os vagabundos e o próximo passo é organizar movimentos de invasão de nossas casas e apartamentos para distribuir os imóveis para esses bandidos. O Minha Casa Minha Vida é isso”.
A visão e a linguagem dos manifestantes de hoje e de seus sequazes nas redes sociais são exatamente as mesmas que fomentaram e antecederam o golpe de 1964. Na época, o alvo eram as Reformas de Base. Hoje, são o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida. Mudam as caras e as modas, mas a mensagem e os propósitos continuam os de sempre.
Com semelhantes apelos “morais” e ideológicos, foi montado o arranjo reacionário e antidemocrático que o País teve de suportar ao longo de 21 anos. Neste pacto civil-militar juntaram-se os cosmopolitas da finança e dos negócios, uma fração majoritária das classes médias – ilustrada, semi-ilustrada e deslustrada – as velhas oligarquias regionais, e a cambada da tripa-forra que quer sempre se locupletar sem esforço.
Nas façanhas da social socialite brasileira, nada mais velho do que o novo.  Observo um empenho permanente na troca de máscaras, enquanto o rosto do poder real permanece esculpido em sua pétrea solidez. O disfarce de maior sucesso no momento é confeccionado por mãos hábeis. Os artesãos da proeza são altamente qualificados nos ofícios do continuísmo com continuidade. Tão hábeis são os manufatureiros da casa-grande que encaixam a persona, sem ajustes ou atritos, no rosto de ex-exilados políticos, nos filhos e netos de bravos lutadores contra os esbirros da ditadura e nas figuras que outrora circulavam nos campanários da esquerda radical e “revolucionária”.
Os miasmas da intolerância e do preconceito emanam dos destroços sociais e culturais  herdados, em boa medida, do período de obscurecimento imposto pelo regime de exceção. Os despojos da civilidade circulam pelo Brasil carregados nos ombros da prepotência dos “sabidos” e à sombra das vulgaridades do Big Brother e assemelhados.
O Partido dos Trabalhadores acenava com uma proposta reformista para chegar ao governo da República, enfrentando os ninhos de resistência abrigados nas casamatas conservadoras. Alcançado o poder, o PT cumpriu as promessas de soerguer a vida dos mais pobres e de combater a miséria absoluta. Abriu milhares de vagas no sistema educacional público e privado para a educação dos que não tinham vez.
Sucumbiu, no entanto, às tentações da política como meio de vida e renunciou às virtudes da política como vocação. Os recém-chegados deveriam ter à cabeceira a Odisseia. Recomenda-se reler diariamente a passagem em que, advertido por Circe, Ulisses tapa os ouvidos da tripulação e se amarra ao mastro do navio para resistir ao canto das sereias.
As trapalhadas não são por certo um acidente. Tal despreparo é típico de quem não imaginava ser vidraça na vida, alvejada pela mesma artilharia moralista costumeiramente despejada sobre os adversários. As lideranças do partido deveriam saber que, na luta política e no embate eleitoral não há perdão e não adianta bater no peito. As denúncias devastadoras do Petrolão são mal respondidas, juntando uma miserável prostração política à incapacidade de autoanálise e autocrítica.
Protesto Diz o filósofo italiano Domenico Losurdo, de irreparáveis credenciais progressistas, que a prática de negar a boa fé dos outros, dando a própria como garantida, é dogmatismo da inteligência e farisaísmo moral.
A “maioria” situacionista parece disposta a barganhar ponto a ponto as vantagens exigidas para enfrentar a saraivada de objurgatórias da oposição. Diante do caráter fragmentário e contraditório dos interesses em jogo, os aliados do governo podem “arrepiar carreira” quando tiverem de encarar paradas mais duras do que o “ajustamento” da LDO.
Nesse episódio, os asseclas dos mercados financeiros acoitados no parlamento dispararam discursos e impropérios exigindo resultados fiscais dificilmente alcançáveis numa economia em forte desaceleração. Quem é menos esperto e mais prudente sabe que a economia se move hoje a um passo da recessão. Tocar a bola no compasso do ajuste fiscal, sem as benesses da demanda chinesa por commodities é chamar carrinho por trás. O debate a respeito da qualidade da política econômica assumiu tons que deambulam entre o trágico e o pitoresco.
É fácil fazer planos gerais, estabelecer metas, apresentar cifras. Mas será muito difícil aglutinar forças e recompor interesses se as medidas desatarem o desemprego e, sobretudo, se atingirem os recém-chegados à  “nova classe média.”
Daí a redobrada intolerância dos mercados e da mídia com as ideias divergentes e a satanização de outras  propostas de política econômica. Para exorcizar o demo, os peralvilhos da finança ameaçam com o rebaixamento do Brasil pelas agências de classificação de risco. A perda do investment grade é esfregada de hora em hora na cara dos brasileiros.
Epílogo globalizado. O novo século, o XXI, renovou a novidade do fim do século XX. Esparrama-se a percepção de que as coisas podem andar para trás, que o progresso individual e coletivo não é uma fatalidade. Esse sentimento é cada vez mais intenso. Ele assombra as classes médias que se tornaram afluentes nos Estados Unidos e na Europa ao longo do período do capitalismo domesticado.
É a nostalgia do futuro,  um sentimento  que reflete as angústias que povoam as almas de homens e mulheres, pasmos diante de uma situação econômica e social que ronda ameaçadoramente suas vidas e as de seus filhos.
As ondas nostálgicas não são incomuns no mundo da cultura popular de massa. Na maioria das vezes esses surtos de nostalgia nascem e desaparecem sem deixar vestígios, porque podem estar associados ao amadurecimento das gerações que começam a olhar para trás. Se assim fosse o fenômeno seria apenas um capítulo da sociologia da moda e da psicologia das massas.
Desta vez, porém, as evidências apontam para algo mais profundo. Os jovens de 20 e poucos anos entregam-se aos devaneios de um passado que não viveram. A explicação mais óbvia para este revival sem memória é a negação das condições do presente. Desemprego em massa nas faixas etárias mais novas, salários em queda, estagnação pessoal. O filho do operário da Renault ou da Fiat virou doutor, mas trabalha no delivery da Pizza Hut.
Alguém mais atilado – ainda que não necessariamente mais esperto – pode concluir que estamos diante de um processo de decomposição dos significados que estruturam o pensamento sociopolítico ocidental em suas duas vertentes gêmeas, frutos do Iluminismo, o liberalismo e o socialismo.
O sonho ocidental de construir o habitat humano somente à base da razão, repudiando a tradição e rejeitando toda a transcendência, chegou a um impasse. A razão ocidental não consegue realizar concomitantemente os valores dos direitos humanos universais, as ambições do progresso da técnica e as promessas do bem-estar para todos e para cada um.
O único universalismo disponível na praça é o domínio descontrolado dos controladores do dinheiro que hoje se instaura sob o escudo protetor dos monopolistas dos meios de comunicação. A submissão das relações sociopolíticas ao totalitarismo argentário-midiático imobiliza o indivíduo de Adam Smith – aquele cuja liberdade e busca do autointeresse realiza o bem-estar coletivo – e desconstrói  a utopia do “homem novo” almejada pelos socialistas. Imobiliza e desconstrói os indivíduos para esmagá-los nas engrenagens de um sistema cuja lógica é tão somente seguir sua própria lógica.

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