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4.19.2015

Transexuais enfrentam via-crucis para a adequação de sexo em hospital do Rio


Tempo de espera para cirurgia no Pedro Ernesto pode passar de seis anos
A dor de não se reconhecerem nos corpos que habitam faz parte do cotidiano de homens e mulheres transexuais à espera de uma cirurgia que lhes garanta adequação entre o físico e a mente. O Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio, é um dos poucos centros de atendimento especializado para este público no país. No entanto, desde dezembro de 2011 não são aceitas inscrições novas. E quem conseguiu se inscrever pode ficar mais de seis anos na fila.
Para piorar, os pacientes não são informados nem em que lugar da fila estão. Esta incerteza levou o comerciante Bruno Chaves, 28 anos, nascido em corpo feminino, a procurar outros meios para conseguir a mastectomia (retirada das mamas): está fazendo vaquinha virtual para conseguir os R$ 7 mil necessários para o procedimento na rede particular. A produtora de TV Bárbara Aires, 30, nascida em corpo masculino, desistiu do programa transexualizador do Pedro Ernesto. Ela conta que tentou se inscrever por dois anos, de 2008 a 2010, mas ouvia sempre como resposta a falta de vagas.
Bruno espera por uma chance e Bárbara desistiu da operação no único hospital público do Rio que a faz
Bruno espera por uma chance e Bárbara desistiu da operação no único hospital público do Rio que a faz
Bruno entrou no programa em dezembro de 2010 e a primeira consulta foi em setembro de 2011. Em seguida, passou pelo atendimento psiquiátrico por dois anos (tratamento considerado necessário pelo SUS antes da operação). Depois, foi encaminhado ao setor urológico, para assim dar início à terapia hormonal, outro pré-requisito para a cirurgia. Alguns dos exames que fez perderam a validade. “Voltei em março e pediram novamente exames de sangue e de urina. Ano que vem vão pedir novamente. Estou há 28 anos esperando ter um corpo ideal para mim. Como ter calma?”.
Bárbara perdeu o interesse em operar na unidade. “Eu não tenho direito à retirada de pomo de Adão. Não tenho direito à prótese de mama, não tenho direito à hormonioterapia. Tenho o direito apenas a ser maltratada”.
Além da falta de informações sobre o esperado dia da cirurgia, Bruno denuncia ainda a desordem para a convocação dos pacientes. Segundo o comerciante, pessoas que entraram no programa depois dele já passaram pela mastectomia.”Desde que nós fizemos, no ano passado, um movimento dentro do hospita, chamado Ocupa Hupe, eles atenderam uma antiga reivindicação do movimento de não ser necessária a passagem pela urologia para a mastectomia. O problema é que quem já estava no programa e, como eu, passou pela cirurgia, continua aguardando ser chamado enquanto quem recebe agora o laudo da psiquiatria para a cirurgia, já consegue operar.
O coordenador no Rio do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat) Patrick Lima, confirma a denúncia. “Hoje não é preciso mais passar a urologia, o que é positivo. Porém, as pessoas que fizeram todo o processo de passar pela psquiatria e depois pela urologia são deixados pra trás. Hoje, quem já vai da psiquiatria pra cirurgia está conseguindo fazer direto a cirurgia, mas pessoas como o Bruno estão sendo esquecidas”.
Para muitos transexuais, o início da hormonioterapia é um renascimento: os remédios fazem o corpo desenvolver características sexuais desejadas. Antes de ter acesso aos hormônios, o comerciante esteve perto de tirar a vida. As mudanças físicas que os medicamentos trouxeram um alívio para o jovem que já havia tentado o suicídio em razão da inconformidade entre corpo e mente.
“Quando eu não tinha as características masculinas, eu entrei numa depressão tão grande que eu quis me mutilar, quis acabar com a minha vida. Subi ao terraço da minha casa e quase me joguei de lá, foi uma ex-namorada que me salvou e me tirou dali.
Na fase da adolescência, Bárbara quase se mutilou quando começou a sofrer rejeição na escola e dentro de casa. “Houve um dia que minha mãe me pegou no banheiro com a tesoura na mão. Se ela não abrisse a porta, eu teria cortado meu órgão sexual”, lembra.
Apesar de a portaria do SUS prever o fornecimento dos hormônios gratuitamente, isso não acontece. Bruno recebe a receita médica no hospital e paga pelos medicamentos. Investigação do Ministério Público aponta que muitos pacientes só conseguem os remédios grátis por meio de ação judicial. Foi o caso de Bruna Leonardo, 34, operada em 2013, após esperar seis anos. “Só depois da ação consegui os remédios grátis. O problema é do SUS por não oferecer os recursos. A equipe do Pedro Ernesto é maravilhosa”.
Segundo o movimento de homens e mulheres transexuais no Rio, o número de pessoas tentando se inscrever no programa transexualizador do Pedro Ernesto chega a 300. Beatriz Cordeiro, supervisora do projeto de capacitação profissional para travestis e transexuais da prefeitura, o Damas, esperou por seis anos e oitos meses até chegar à mesma de cirurgia. Ficou satisfeita com o resultado, mas lembra ter vivido grande sofrimento à espera pela data da operação. “Foi uma tortura psicológica muito grande”. Ela aponta a falta de transparência como o principal problema no Pedro Ernesto.
"Me sinto prisioneiro dentro do meu próprio corpo", desabafa Bruno. Foto: Alexandre Brum
“Me sinto prisioneiro dentro do meu próprio corpo”, desabafa Bruno. Foto: Alexandre Brum
“Saber a data da cirurgia, saber mais sobre a interação dos serviços que já são ofertados no hospital, tais como: cirurgias plásticas e laser, uma vez que essas intervenções fazem parte da construção da nossa identidade de gênero. E não é algo a mais: esses procedimentos estão garantidos na resolução federal do processo transexualizador; são o acesso às cirurgias chamadas secundárias. Essas intervenções são tão importantes quanto a cirurgia de trangenitalização. No entanto, muitas de nós encontramos dificuldade para acessá-las. Eu mesma estou aguardando até hoje a minha mamoplastia, mas a comunicação com o ambulatório de cirurgia plástica é ineficiente”, argumentou.
Artifícios para esconder o corpo: marcas e dores
Enquanto não consegue ser operado, Bruno usa de artifícios que provocam dor, mas acalmam por passar despercebido em público. Antes usava esparadrapos e faixas para puxar a pele e esconder as mamas. Ficava com marcas e queimaduras. Depois, passou a usar colete elástico, que vai do peitoral ao quadril, sob a roupa. “Andar assim, sufocado, no calor do Rio, é horrível. Colocar esparadrapo e ficar com a pele rasgada é horrível. Eu só quero ser feliz e me reconhecer no meu corpo”, diz.
Bárbara revela a mesma rotina de sofrimento para evitar a reprovação pública. “Para eu vestir calça legging tenho que usar duas calcinhas, uma de tecido e outra de vinil, para me sentir confortável e não agredir as pessoas. Se eu usar uma calça que mostra um certo volume, me incomodo. Quando tiro as calcinhas estou com a pele marcada, dolorida. Até para dormir prefiro ficar assim. Tudo isso para me adequar ao que é considerado feminino e para me sentir bem”.
Segundo ela, integrante do Conselho Municipal LGBT, ligado à Prefeitura do Rio, a questão é “se reconhecer, se ver no espelho”. “É poder me ver completa, como me reconheço, de acordo com a minha identidade de gênero. Muitas das nossas limitações estão no olhar do outro.”
"Muitas das nossas limitações estão no olhar do outro", define Bárbara
“Muitas das nossas limitações estão no olhar do outro”, define Bárbara


Greve de anestesistas e obras no centro cirúrgico motivam demora
Criador do programa do hospital, Eloisio Alexsandro reconhece que há limitações. Como motivos para a demora na fila, ele aponta a greve de anestesistas, que trabalham em capacidade reduzida, e as obras de reforma no centro cirúrgico, que já duram três anos, além do incêndio em 2012. “Hoje a fila tem 90 pessoas. Apesar de a estimativa de cirurgias ser de 12 ao ano, por motivos alheios ao serviço de Urologia o número tem sido menor. Ano passado foram nove”. Sobre a dificuldade no fornecimento de hormônios, ele diz que há “defasagem no valor repassado pelo Ministério da Saúde ao hospital”.
O ministério diz, em nota, que “o gestor local faz parte da regulação do serviço” e é corresponsável pelas “prioridades, metas e critérios para alocação dos recursos da assistência”, segundo a “necessidade da população”.
O governo do estado promete, para ainda este ano.a criação de um Centro de Saúde Integral para Travestis e Transexuais com início de funcionamento ainda este ano na Policlínica Piquet Carneiro, também da Uerj. Todo o atendimento ambulatorial ficaria restrito à policlínica e as cirurgias de média e alta complexidade, ao Pedro Ernesto. Segundo o coordenador do Programa Rio Sem Homofobia, Cláudio Nascimento, a criação do centro foi possível através de emendas parlamentares dos deputados federais Jandira Feghali (PC do B) e Jean Wyllys (Psol).
Nesta segunda-feira, a segunda reportagem abordará as criticas ao tratamento psiquiátrico e o desrespeito ao nome social no Pedro Ernesto.

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