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10.06.2015

Lula e a destruição da memória

Por Tarso Genro
“A pulsão de impor-se pela habilidade de manipular palavras e imagens não mudou desde aqueles tempos longínquos, mas o instrumento posto a serviço dela é, hoje, infinitamente mais poderoso. Desse ponto de vista, com as mídias, dá-se o mesmo que com os armamentos: nossa ferocidade não aumentou, mas nossa capacidade de destruir vidas e construções é infinitamente superior à dos romanos ou à dos bárbaros do Norte. (…) Acreditamos tomar sozinhos nossas decisões; mas se todas as grandes mídias, desde a manhã até a noite e dia após dia, nos enviam uma mensagem, a margem de liberdade de que dispomos para formar nossas opiniões fica muito restrita.”  Este texto é de Tzvetan Todorov, no seu livro “Inimigos Íntimos da Democracia”,  Cia. das letras, 2012, pg. 197. Todorov é um cientista da linguística, um dos grandes intelectuais contemporâneos, aliás sempre prestigiado pelas suas convicções democráticas, méritos acadêmicos e independência em relação aos extremos.
Fui relê-lo, para procurar entender um pouco o recente fenômeno Cunha, flagrado em operações suspeitas, com provas materiais, depois de ter comandado a mais formidável chantagem feita contra um Governo, na história da república. E o fez, amparado na sua condição de membro do Partido mais importante do Governo e líder inconteste da oposição fisiológica e neoliberal. Sua chantagem consistiu, até agora, num triplo movimento: estourar o Orçamento da União com os gastos estratosféricos de uma “pauta bomba”; chantagear o Vice-presidente da República, para que não se “aproxime demais” da Presidenta, para dar-lhe estabilidade; resistir à aprovação do “ajuste” ortodoxo do Governo, para inviabilizar a sua governabilidade e, quem sabe, impulsionar o seu impedimento. Nem toda a oposição lhe tem como referência, mas a sua parte mais rancorosa e antidemocrática.
Cunha é o líder da oposição, arrombador do orçamento, ícone da direita truculenta e membro do maior partido do Governo. Nesta posição, foi protegido e incensado pela mídia tradicional, para se tornar o promotor número um da inviabilização do Governo Dilma, fossem quais fossem as suas opções de política econômica e monetária. Cunha está se transferindo, agora, da esfera da política para a esfera da polícia e da condição de problema do Governo, para problema da oposição e da República.
Observação necessária: não sou adepto das medidas de “ajuste” do Governo e não concordo com a sua busca de governabilidade em troca da aplicação da pauta exigida pelas “agências de risco”. São medidas que não estabilizam a economia, antes congelam injustiças. Nem acho que o Governo tenha lidado, com as chantagens de Cunha, de forma republicana, tanto como pelo que ele é, como pelo que pretendia em relação ao Governo: tutelá-lo e humilhá-lo. Compreendo as atitudes do Governo -para manter-se governando- como uma desesperada defesa de um mandato legítimo, carente de apoio popular (pelos seus próprio erros), para resistir ao “golpismo paraguaio” ainda em curso.
Cunha, porém, só chegou, até aqui, pelo apoio praticamente irrestrito que teve da direita e pelo apoio que teve de cronistas das “redes”, editorialistas dos grandes meios e seus colunistas políticos. Eles chegaram ao extremo de fórmulas, literalmente, como estas: “O ódio à Cunha é ódio à democracia”; “Cunha nos representa”; “O PSDB saúda a marcha pela democracia. Vocês são exemplo de democracia e esperança de um Brasil livre da corrupção ” (palavras que designam uma foto, onde Cunha, radiante, está abraçado com vários seus dignos apoiadores).
Se a grande mídia desse às acusações contra Cunha, dez por cento da credibilidade e atenção que deu às acusações contra Lula, ele não teria chegado à Presidência da Câmara e a crise política do país não teria causado este prejuízo paralisante, com seus enormes problemas econômico-sociais e desgastes da democracia perante os olhos da cidadania, seja ela pró ou contra o governo Dilma.
Cunha é filho de Aécio, de Fernando Henrique, de Bolsonaro, da grande mídia oligopólica, que não só quer destruir a capacidade do Governo governar (chegou-se a dizer fazê-lo “sangrar”), mas também Cunha é um instrumento de destruição da memória de Lula, como um dos grandes Presidentes do país nos últimos 50 anos. Com erros, com concessões, com limitações, mas um dos grandes presidentes brasileiros. A promoção de Cunha, como um político que “tem defeitos”, mas que é bom porque é contra a esquerda e o PT -essa é a tática da direita truculenta e da grande mídia- é uma ofensa à memória de Getúlio, de Juscelino, Jango, de Lula e mesmo do antigo Fernando Henrique, quando não era um líder radical do oposicionismo sem princípios e sem programa.
É bom lembrar, neste momento, que Cunha foi um tenaz apoiador de Aécio e dele sempre recebeu solidariedade. Que sempre foi oposição ao Governo Dilma e que a grande mídia, por seus colunistas impolutos e editoriais arrogantes – com raras exceções -, sempre utilizou-o como instrumento de combate a um Governo legitimamente eleito, que, se não é um Governo coerente com o programa que lhe elegeu, não tem qualquer motivo legítimo para ser deposto.  Cunha, que é um instrumento de revide de perdedores, agora está desmascarado pelos mesmos fundamentos, através dos quais ameaçou bloquear a cumprimento de um mandato presidencial legítimo.
Nenhum Presidente, no país, governou sem apoios fisiológicos e sem sustentação em interesses regionais, muitas vezes oligárquicos. Nenhum Governo deixou de ter casos de corrupção, que envolvessem os partidos no poder e quadros dos altos escalões da máquina pública. Mas não me recordo de nenhum Governo que tenha organizado as instituições do Estado, de forma tão eficiente como fizeram os dois governos Lula, para combater a corrupção no setor público, e que criasse condições políticas tão positivas, para que a Polícia Federal, o Ministério Público, a Corregedoria da União, expandissem o seu pessoal, melhorassem os seus salários, qualificassem os seus meios tecnológicos e as suas conexões internacionais, para combater de forma tão intensa a corrupção.
As manipulações e as instrumentalizações políticas cometidas por estas instituições, neste momentos de turbulência, não diminuem a importância do trabalho que estão fazendo em defesa da República. Combater e criticar os seus desvios, sejam em que sentido forem, não ofuscam o fato de que estamos num novo patamar de defesa do público e de combate à corrupção no país. Nem a petulância de alguns dos seus membros deve ser considerada como marca definitiva das suas ações.
Nenhum país do mundo, seja ele uma jovem democracia, seja ele um país de democracia madura, ficou livre dos aproveitadores das benesses, que governar oferece. Mas é bom lembrar, por outro lado, que não é corriqueiro nem é característica de qualquer Governo, em dez anos fazer 50 milhões de pessoas melhorarem as suas condições de vida (como no Brasil de Lula e do PT). Tal fato, ao final do segundo Governo Lula, fez o próprio Fernando Henrique dizer (reconhecendo o sucesso dos Governos do Presidente Lula), que “isso só foi possível por causa do Plano Real”. E Serra dizer, que ele, Serra, seria, na verdade, um bom sucessor para continuar a obra de Lula.
A habilidade de manipular palavras e imagens, hoje se repete de maneira superlativa, na “crise de Cunha”. Nela, não é a oposição que caiu por terra, com seu líder mais importante. Nem a chantagem, que foi desmascarada, é o fato político mais importante. Não é Aécio que deve explicar seus companheiros de “luta”. Não é FHC que, com Cunha e Bolsonaro, formou o trio dos radicais contra Lula e o PT, que deve explicações. Segundo esta habilidade para manipular, é a Presidenta que deve explicar porque se defende e porque quer preservar o seu mandato. É Lula, que não tem qualquer sombra de suspeita de ter contas no exterior, que tem que se explicar, porque -certo ou errado- promove as empresas do país no exterior, como fazem todos os Presidentes. É ele, Lula, que deve se explicar todos os dias sobre a corrupção na Petrobras, que iniciou lá nos anos 90, em outro mandato presidencial.
A manipulação de palavras e imagens, que agora está sendo feita, tem uma meticulosidade superior a todas as demais. Ela pretende secundarizar a queda da máscara do líder mais ativo da oposição, para colocar em primeiro plano a crítica da reforma ministerial.
Com isso, este segundo estágio da manipulação pretende enfraquecer a tênue recuperação da governabilidade e criar algum outro Cunha -talvez ainda no próprio ventre do Governo- para enfraquecer capacidade do Governo fazer escolhas e, assim, exigir “ajustes” ainda mais profundos.  Ao atacar duramente a reforma ministerial que a Presidenta realizou, colocando-a –como problema- num plano superior ao flagrante delito de Cunha, o trabalho fica completo: Cunha vai para a reserva e as demandas, para que o ajuste seja ainda mais radical, continuam indefinidamente.
A edição de Zero Hora, de sexta-feira, 2 de outubro, não é nada demais do que está sendo feito pela grande mídia, mas é exemplar para avaliar o novo momento político que iniciamos a travessia. Duas páginas para “lembrar” as “suspeitas” contra a Presidenta Dilma e contra Lula, sem nenhuma prova, direta ou indireta, no mesmo dia em que noticia os cinco milhões de dólares, bloqueados na Suíça, atribuídos a Eduardo Cunha.
Assim, sem hierarquia, tudo se dissolve num fantástico festival, no qual a política fica sempre invalidada e se fornece elementos para que sobreviva, mesmo com o principal líder da oposição desmascarado, o ódio e a irracionalidade contra o Governo. Como diz Todorov, a nossa capacidade de destruir vidas e construções é bem maior  que a dos romanos e dos bárbaros, só que estamos tratando -agora- do próprio futuro da democracia, que não existirá sem política, sem partidos, sem debates minimamente racionais.
Em algum momento, a ampla maioria da sociedade vai reconhecer -nem que custe um pouco –  que o massacre desproporcional que está sendo promovido contra Lula e contra o PT, não o é somente pelos nossos defeitos, mas principalmente pelas nossas virtudes. Os Governos Lula promoveram, dentro da democracia, o mais formidável processo de inclusão social, num curto período histórico, que nenhuma revolução conseguiu fazer no Século passado e, se é verdade que estamos num momento de regressão e crise, que o ciclo está esgotado, que a esquerda precisa renovar-se radicalmente –com ou sem o PT- também não é menos verdade que nossos sonhos já passaram, em outras épocas, por retrocessos semelhantes. E sempre voltamos.
O massacre contra Lula, agora chamado para depor como “testemunha” num inquérito policial, visa expor o ex-Presidente ao escárnio público, ou seja, fazer do ingresso definitivo da política no âmbito da judicialização, o ataque definitivo à memória dos seus Governos, depois de um completo processo de manipulação da informação, sobre o que foi o seu período de Governo e os motivos reais da crise atual.
A tentativa de homicídio político qualificado contra Lula, tem por finalidade última dizer a todo o povo, que quem deve governar o país são os grandes grupos midiáticos que defendem –com ou sem apoio dos partidos- a forma de governar que nasceu com Thatcher na Inglaterra e hoje comanda o grande ajuste europeu. E o faz com uma grande mistura de gangsterismo “a la Berlusconi” com a severidade tecnocrática da sra. Merkel: decretam não só o fim da ideia de igualdade, contida no socialismo, mas também a ideia de justiça social, contida na socialdemocracia. O que a esquerda espera de Lula é que os seus movimentos táticos não sejam a rendição a uma paz que promove esta dupla morte do humanismo democrático moderno..
Encerro com Todorov, como ele encerra seu livro: “Todos nós, habitantes da Terra, estamos envolvidos, hoje, na mesma aventura, condenados a ter êxito ou a fracassar juntos. Embora o indivíduo isolado seja impotente diante da enormidade dos desafios, mantém-se a verdade: a história não obedece a leis imutáveis, a Providência não decide quanto ao nosso destino. O futuro depende das vontades humanas”. Assim sempre foi e assim será. Para a tragédia ou para esperança.
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Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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