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8.12.2016

Anistia entre amigos prepara nova ordem política


"Esforço para descriminalizar contribuições eleitorais destinadas a Temer e Serra, iguais àquelas usadas para perseguir lideranças ligadas ao governo Lula-Dilma, não reflete apenas a realidade de um país onde a Justiça funciona seletivamente. Expressa uma tentativa de construir uma nova ordem republicana, pós-impeachment, com exclusão de lideranças populares e sem alternâncias no poder, como aquela iniciada pela chegada do Partido dos Trabalhadores ao Planalto, em 2003". Temer foi citado por Marcelo Odebrecht como responsável por um pedido de R$ 10 milhões, doado via caixa dois, e Serra de R$ 23 milhões.
Sem um grama de espírito panfletário, pode-se dizer que o poder de uma classe dominante funciona assim mesmo.  
     Depois de conduzir um processo seletivo de criminalização e encarceramento de  adversários políticos, os aliados de Michel Temer, acusados de envolvimento nos mesmos crimes de corrupção apurados na Lava Jato resolvem preparar um conforto exclusivo -- encerrar a operação e garantir anistia para os amigos que deram o azar de serem apanhados na operação. Depois que as forças do adversário foram duramente atingidas, suas fileiras se encontram dispersas e boa parte das lideranças,  encarceradas, procura-se fazer uma previsível correção de rota.
     A entrevista de Michel Temer publicada no Valor de hoje é parte deste esforço. Apanhado numa delação premiada de Marcelo Odebrecht, Temer admitiu que recebeu o dinheiro. Não foram 10 milhões de reais. Foram 11,3 milhões esclareceu, com prudência profissional, já que este é o número  consta da "prestação de contas do período." Temer fala de um período em que, como vice presidente da República e presidente do PMDB, havia uma "enxurrada de empresários querendo colaborar" e que, na época, 2010, isso era perfeitamente legal. Tocando no nervo da discussão, afirmou aos jornalistas:
     "Essas doações estão sendo criminalizadas. Por quê? Não pelo seu aspecto formal, mas pelo seu aspecto mais indutivo, achando que aquilo entrou porque havia propina. Então, vai precisar provar que aquele valor que entrou no partido e que houve prestação de contas é fruto de propina. É uma questão a ser examinada."
      Este é o ponto em discussão. Envolve o destino de investigações que começam a se aproximar de figurões do governo Temer -- além do próprio interino, estão citados José Serra e Eliseu Padilha, sem falar no eterno Aécio Neves.
     Também diz respeito a quem está interessado em debater formas de reconstruir o sistema democrático massacrado por condenações duríssimas. Ainda  envolve os debates sobre acordos de leniência, que protegem os empregados de uma empresa -- e o PIB do país inteiro -- contra desmandos e abusos cometidos por executivos e dirigentes acusados de corrupção. Podemos avançar numa saída democrática. Ou abrir espaço para um regime autoritário, que exclui a participação das lideranças populares.
     O argumento do presidente interino ajuda  a recordar que o eixo das condenações da Lava Jato foi constituido por essa mudança de natureza. Alterou-se a visão do chamado objeto investigado. Aquilo que se via como doações de campanha, e que eram perfeitamente legais na época, constituindo no máximo irregularidades fiscais conhecidas como caixa 2,  passaram a ser classificadas como propina. Não era um percurso fácil, porém.
 Em março do ano passado, quando  o impeachment não passava de um projeto obsceno   dos adversários de Dilma vencidos cinco meses antes nas urnas presidenciais, a Folha de S. Paulo registrou a dificuldade de separar uma coisa da outra."Doação ou propina," escreveu o jornal em editorial, que informou: "Em relatórios enviados ao STF, Polícia Federal diz que, em alguns casos, dispõe de 'elementos iniciais' a indicar que a doação eleitoral foi utilizada como forma de corrupção." Conforme o jornal,  em alguns casos a própria "PF ressaltava a necessidade de aprofundar análises."
   Já naquele momento, as investigações apontavam para um equilíbrio notável na distribuição de doações de campanha, que jamais seria acompanhado, mais tarde, pela investigações e punições. Um levantamento do Estado de S. Paulo mostrou que entre 2007 e 2013, o PMDB, PSDB e PMDB receberam um bolo total de R$ 571 milhões em donativos de empresas, dos quais 77% haviam saido de empresas com negócios ligados a Petrobras, alvo da Lava Jato. Segundo o jornal, o Partido dos Trabalhadores ficou com a maior parte e o PSDB veio logo atrás, com mais 42% dos donativos. Na campanha de 2014, as grandes empreiteiras envolvidas também fizeram doações aos grandes concorrentes, partilhando somas equivalentes mas não iguais. Se a OAS chegou a doar R$ 30 milhões a Dilma, deixando R$ 10,7 milhões para Aécio, a candidata do PT recebeu R$ 16,8 milhões da Andrade Gutierrez, contra R$ 20,2 milhões para Aécio.
    Como registrei em A Outra História da Lava Jato:  "Estamos falando de quem negocia bilhões de reais, para lá e para cá.  Dinheiro puro, sem ideologia. Vamos falar em cortesia e boas maneiras?"
    Interpretando o espírito da legislação, escrevi: O jogo sempre foi este e é para ser este: pedir e prometer, pagar e esperar."
    O que separa uma coisa da outra? A política.
    Entrevistado neste espaço, o professor Sidne Chalhoub, que leciona História do Brasil em Harvard, esclarece o ponto:
    -- Hoje o Judiciário tem hoje um poder imenso, sem paralelo. A tese é que 'tudo é corrupção e todos são corruptos.'A partir daí, cria-se o arbítrio, que é o caminho para a seletividade, para o uso político da Justiça."
      Avançando no ponto de vista, Chalhoub explica que a natureza da legislação contribui para esse poder discricionário dos magistrados:  
     "Nosso sistema legal tem regras múltiplas, contraditórias e incoerentes. Essa situação cria um espaço infinito para se agir arbitrariamente, porque a cada dia você pode mudar a interpretação de determinada lei, de uma regra, e aplicá-la seletivamente."
    A política entrou em cena, nos primórdios da Lava Jato, para culpar e criminalizar. Volta a cena, agora, para aliviar e inocentar.
    Essa é a questão. As coisas não poderiam estar mais claras.
    Após a destruição do sistema político construído a partir da Constituição de 1988, que instituiu o mais amplo e duradouro regime de liberdades públicas da história do país, o plano é consolidar uma nova ordem republicana.
    Ampla, geral e irrestrita, a anistia de 1979 preparou a democracia dos anos seguintes. Recusou as objeções contra Leonel Brizola, Miguel Arraes e outras lideranças consideradas indesejáveis pelos poderosos de então. Deu-se um jeito para abrir a porta das cadeias para os condenados por ações armadas. Nasceu um país onde a liberdade de expressão e o direito de organização eram valores absolutos. Os partidos comunistas, mantidos na ilegalidade desde 1947, foram legalizados antes da Constituinte. As centrais sindicais, alvo de perseguição duríssima por parte dos golpistas de 64, puderam ser organizadas.
   O debate, hoje, envolve o país dos próximos anos, onde a votação do impeachment de Dilma será uma fronteira. A anistia entre amigos humilha os que acreditam que todos são iguais perante a lei. Institui a desigualdade como método preferencial de tratamento político.
   O acordo que se busca em 2016 tem como base a preservação dos amigos e a exclusão de lideranças populares que têm sua  expressão maior é o Partido dos Trabalhadores, cuja extinção já aparece no radar, e a consolidação de um monopólio político conservador, à prova de alternâncias no poder, como aquela iniciada pela chegada de Lula ao Planalto, em 2003. Recuperando uma posição de força perdida no final da ditadura militar, a classe dominante não quer riscos.

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