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11.15.2010

AIDS: AJUDAMOS OS MOÇAMBICANOS A VIVER MAIS

Inauguração da  fábrica de medicamentos  anti-HIV (Brasil- Moçambique)

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Lula, ao lado do ministro da Saúde, José Gomes Temporão (à dir.), exibe uma cartela de remédios na fábrica de Moçambique
A última visita de Lula como presidente à África, na semana passada,. O destino foi Moçambique, ex-colônia portuguesa na costa leste do continente, onde ele ficou dois dias. Lá, inaugurou uma fábrica de medicamentos antirretrovirais genéricos para o tratamento do vírus HIV – um projeto de cooperação orçado em US$ 31 milhões e que será financiado em acordo de Cooperação  Brasil- Moçambique.
Orgulhoso, Lula posou segurando cartelas de comprimidos. A  máquina instalada na fábrica (emblistadeira, usada para moldar e embalar comprimidos)  chegou a Moçambique  foi emprestada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
 A explicação oficial para que se despachasse daqui para lá um equipamento “não definitivo” foi que os funcionários moçambicanos poderiam já começar a treinar para a “fase um” da fábrica. A máquina vai  fracionar e embalar remédios vindos do Brasil – além dos antirretrovirais, anti-hipertensivos e analgésicos, entre outros. Será devolvida quando começarem a funcionar as máquinas definitivas.
 Os equipamentos da fábrica  deverão chegar a partir de março de 2011.
 A Fiocruz se valeu, então, de um mecanismo chamado Regime Especial de Exportação Temporária, que facilita o envio de mercadorias para eventos culturais ou para assistência técnica e humanitária. Em duas semanas, a emblistadeira usada estava pronta para o embarque.
   Reprodução

Moçambicanos operam a máquina emblistadeira.
 Hayne Felipe da Silva, diretor de Farmanguinhos, o laboratório da Fiocruz que viabilizou a emblistadeira na fábrica. . Um dos impasses é que a doação de equipamentos não está prevista na legislação brasileira de cooperação internacional. A saída foi Lula enviar um projeto de lei ao Congresso, em que pedia a liberação de R$ 13,6 milhões destinados à compra e doação do maquinário a Moçambique. A autorização só veio em dezembro de 2009. Com isso, não houve tempo hábil para adquirir os equipamentos, todos importados, e enviá-los ainda neste ano.
.Esta será  a primeira fábrica pública de antirretrovirais da África. O continente abriga quase 70% dos adultos e crianças infectados com o HIV no mundo. Em Moçambique, 12,5% da população (1,5 milhão de pessoas) tem o vírus. Hoje, só 200 mil moçambicanos são tratados com antirretrovirais.. A Vale, que vai entrar com cerca de US$ 5 milhões para adaptar a fábrica de remédios, tem um projeto de exploração de carvão no noroeste do país, para o qual se comprometeu a investir US$ 1,5 bilhão. A fábrica contribui para a imagem do Brasil .
Este projeto do governo do Brasil e de Moçambique é um dos maiores programas de ajuda humanitária melhorando a qualidade de vida dos nossos irmãos moçambinquenhos

SAIBA MAIS SOBRE BRASIL E MOÇAMBIQUE


Rosana Del Bianco: Fábrica de remédios para aids significa emancipação

por Conceição Lemes
Moçambique é um dos países mais afetados  HIV no mundo. São cerca de 1,7 milhão de infectados em uma população de 21,4 milhões de pessoas. Em 2009,  100 mil eram tratados com antirretrovirais — os  “coquetéis” de  remédios contra aids. Atualmente,  são 200  mil.
A boa notícia. O número de moçambicanos tratados deverá aumentar. Nesta quarta-feira o presidente Lula visita em Maputo as instalações da futura fábrica de antirretrovirais daquele país. É a primeira 100% pública do continente africano e deve começar a funcionar em 2011. Ela é resultado de um acordo firmado em 2008  entre Moçambique e Brasil, que investirá US$ 20 milhões no projeto de US$ 26 milhões.
“Os antirretrovirais que  utilizamos aqui são comprados na Europa, Índia ou Estados Unidos e custam muito caro por causa do transporte”, afirma Leonardo Chavane, porta-voz do Ministério ministério da Saúde de Moçambique. “A fábrica aumentará o volume dos medicamentos disponíveis e baixará o custo, melhorando o acesso dos moçambicanos ao  tratamento.”
“A fábrica representará a emancipação de Moçambique no setor de remédios para aids”, festeja a infectologista Rosana Del Bianco, que há dez anos vive na “ponte-aérea” São Paulo-Maputo. ” Além de suprir todas as necessidades locais, permitirá, a longo prazo, atender a outros países do continente africano.”
” Como Moçambique carece de profissionais de saúde, o projeto da fábrica contribuirá para envolver mais gente nas ações de tratamento e prevenção da aids”,  prossegue a médica. “Afinal, a parceria Brasil-Moçambique deve gerar conhecimento no processo de transferência de tecnologia e auxiliar o país a se desenvolver econômica e socialmente.”
Inicialmente,  a fábrica vai apenas embalar os remédios enviados, a granel, pelo Brasil. Depois, os moçambicanos vão desenvolver os próprios antirretrovirais e outros medicamentos. Para executar o projeto lá, o Ministério da Saúde do Brasil designou o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), principal laboratório público produtor de medicamentos para o Sistema Único de Saúde (SUS).
A propósito. A cooperação Brasil-Moçambique na área de aids vem de longa data. A doutora Rosana Del Bianco atua desde o começo. Confira esta entrevista que ela nos deu no início de 2009. Vai entender melhor por que  está festando a implantação da fábrica de remédios lá.
AIDS: AJUDAMOS OS MOÇAMBICANOS A VIVER MAIS
Trazido do Viomundo antigo; foi publicado em 24 de abril de 2009
por Conceição Lemes
Das mais de 33 milhões de pessoas que viviam com o HIV no mundo em 2007, 67% eram da África subsariana. Um total de 22 milhões de adultos e crianças nos 47 países ao sul do deserto do Saara. A região meridional do continente continua a ser desproporcionalmente a mais atingida: 5 milhões de infectados e 640 mil óbitos por aids (37% do total no planeta) em 2007. As estimativas, divulgadas no final de 2008, são do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids s (Unaids) e da Organização Mundial de Saúde (OMS).
“Há sinais pontuais de respostas positivas a ações em vários países da África devido a maiores investimentos”, observa o médico epidemiologista Pedro Chequer, coordenador do Unaids no Brasil. “Mas a falta de infraestrutura geral dificulta bastante o combate da epidemia.”
A República de Moçambique é um dos países onde o HIV é mais prevalente: dos seus quase 21 milhões de habitantes, estimam-se que mais de 2 milhões estariam infectados.
“Em Moçambique, a epidemia assolou a zona rural, onde vive a maioria da população, que sequer tem certidão de nascimento”, atenta a infectologista Rosana Del Bianco. “Alta prevalência de DST [doenças sexualmente transmissíveis], padrões culturais e baixo nível de escolaridade são alguns dos fatores que facilitam a disseminação do HIV no país.”
Rosana Del Bianco é médica do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, e assessora clínica do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde e das secretarias municipal e estadual de Saúde de São Paulo. Em 2001, o Ministério das Relações Exteriores ofereceu aos países de língua portuguesa da África a possibilidade de treinamento de 15 dias no Brasil. Moçambique aceitou.
Na época, poucos profissionais brasileiros encamparam a idéia. Rosana foi uma. O contato com Moçambique se estreitou e passou a treinar os médicos lá. Em 2004, os ministérios da Saúde e das Relações Exteriores ofereceram 100 tratamentos para aids a vários países para que os médicos aprendessem a manejar os antirretrovirais. Moçambique participou novamente. Como Rosana já estava fazendo isso lá, integrou-se ao projeto, para auxiliar na criação de unidades de saúde. O Hospital Dia de Maputo, que é o primeiro grande ambulatório de HIV/Aids de Moçambique, é resultado da ajuda humanitária do Brasil. Inaugurado em 2003 pelo presidente Lula, funciona junto da Universidade Eduardo Mondlane.
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Rosana vive entre São Paulo e Moçambique. Lá, treina médicos nas enfermarias, dá aulas a estudantes do último ano de Medicina, forma agentes de saúde, presta assistência a pacientes. Crianças, jovens – alguns viu crescer — e adultos não podem vê-la nas ruas de Maputo, que logo abanam a mão para a Dona Brasileira, como a chamam carinhosamente. Já na universidade é a Doutora Rosana de Moçambique. Nesta entrevista ao Viomundo, ela nos conta toda essa experiência.
Viomundo – A senhora vivenciou a epidemia de HIV/Aids no Brasil desde o começo, em 1983. Agora, atua também na de Moçambique. Qual a diferença?
Rosana Del Bianco – Aqui, se disseminou primeiro nas grandes capitais, depois se interiorizou. Lá, a epidemia é rural. Aqui, no começo, atingiu principalmente os homossexuais. Lá, afeta indistintamente homens e mulheres. Em oito anos, só agora ouço falar de homossexualidade. Mas há um ponto em comum: nas cidades praieiras a prevalência é altíssima. Foi assim em Santos, litoral de São Paulo. Acontece lá também nas cidades à beira-mar, onde 30% das pessoas estariam infectadas.
Viomundo – O que encontrou em Moçambique em 2001?

Rosana Del Bianco – Uma situação absolutamente catastrófica com muitas doenças associadas. Além da explosão do HIV, até hoje há cólera e malária na capital. Um país muito pobre saindo de uma guerra de muitos anos, tentando se reerguer. Viviam uma situação de quem sabia um pouco mais, ensinava os demais. E, assim, foram se formando.
Viomundo – Havia algum remédio para tratar aids?

Rosana – Nenhum. O primeiro contato dos médicos moçambicanos com os anti-retrovirais aconteceu em 2001. Foi no treinamento que fizeram no Brasil. Aprenderam quais eram, como prescrever, os efeitos colaterais. Quando cheguei lá, o único remédio disponível era o sulfametoxaxol+ trimetroprima, o Bactrin. Não tinha tratamento para toxoplasmose e muito menos para citomegalovírus [infecção oportunista que acomete pacientes com aids e pode levar à cegueira].  Em 2004, o Brasil deu 100 tratamentos anti-retrovirais – os chamados “coquetéis –, para que aprendessem a prescrevê-los.
Viomundo – Como foi para escolher os 100 primeiros pacientes entre milhares precisando do tratamento?

Rosana Del Bianco – Muito difícil. O sarcoma de Kaposi, por exemplo, é um tumor oportunista que atinge os pacientes com aids, desfigurando-os. Mas em Moçambique há muito sarcoma de Kaposi  mesmo em pessoas  que não têm o vírus da aids.  Escolhemos então, o indinavir para esses pacientes e os outros anti-retrovirais, como AZT, ritonavir e didanosina, para aqueles em estágio mais avançado, sempre associando três drogas. Depois, começaram a receber doações de medicamentos, inclusive do Brasil.
Viomundo – Mas o ritonavir precisa ser guardado na geladeira…

Rosana Del Bianco – E quase ninguém tem geladeira. Então improvisavam. Guardavam o remédio numa moringa, enterravam no chão e, assim, o mantinham “refrigerado”.
Viomundo – Atualmente, quantas pessoas recebem antirretrovirais?

Rosana Del Bianco – Em 2008, 60 mil. Agora, 100 mil. Os medicamentos são distribuídos gratuitamente pela OMS. Um avanço brutal. Mas ainda longe do necessário. Quase 300 mil pessoas precisam tomar drogas anti-retrovirais.
Viomundo – Quanto tempo a aids demora para se desenvolver?

Rosana Del Bianco – O período de incubação do HIV varia de 4 a 8 anos. Durante esse período, a pessoa é apenas portadora do vírus. Nós dizemos que ela é soropositiva. Porém, à medida que o vírus destrói o sistema de defesas do organismo, certas infecções e tumores se aproveitam da baixa imunidade e se manifestam. São os tumores e infecções oportunistas. Dizemos então que a pessoa está com aids. A partir daí, é que ela precisa tomar os remédios antirretrovirais. A propósito: aidético, não, pelo amor de Deus! É um termo estigmatizante da época em que não se tinha nenhuma perspectiva para doença.
Viomundo – Que medicamentos são usados?

Rosana Del Bianco – O tratamento de primeira linha junta estavudina, lamivudina e nevirapina. Tudo num mesmo comprimido, o que facilita a adesão.  Ela chega a 70%.
Viomundo – Tem muitas crianças infectadas?

Rosana Del Bianco – Bastante. Até recentemente não tinham xarope. Então a mãe amassava o comprimido e botava goela abaixo do bebê. Agora, já têm xarope, o que facilitou o tratamento.
Viomundo – Após desenvolver os sintomas da aids, quanto tempo a pessoa vive em Moçambique?

Rosana Del Bianco – No Brasil, já temos pessoas vivendo 10, 15 anos com aids mesmo. Em Moçambique, talvez 2, 3 anos. Em 2001, poderia ser apenas 3 ou 6 meses.
Viomundo – Tão pouco?

Rosana Del Bianco –  No Brasil, também era pouco tempo no começo, lembra-se? Em Moçambique, há uma baita epidemia que pegou a população de surpresa. A maioria chega para tratamento em estágio avançado. Por isso hoje estimula-se a para a população fazer o teste rápido, que não precisa de equipamento. Basta a picada no dedo. Quanto mais precoce a detecção, melhor a perspectiva.
Viomundo – A disseminação do HIV em Moçambique é persistente alta. Por quê?

Rosana Del Bianco – São muitos os motivos, a começar por pobreza, baixa escolaridade e muito pouco emprego. Em Moçambique, vive-se mais da pesca. Existe apenas uma indústria de alumínio. Praticamente tudo é importado, o que aumenta bastante o custo de vida. Os padrões culturais também pesam. Em alguns grupos étnicos e religiosos (os mulçumanos) admite-se a poligamia, o que facilita a transmissão do HIV, já que a rejeição à camisinha é grande devido inclusive ao baixo nível de instrução.
Viomundo – A poligamia vale tanto para o homem quanto para a mulher?

Rosana Del Bianco – O homem tem direito tudo, a mulher, a nada; está sempre numa posição de submissão. Existe a chamada sexta do homem. Ele sai de casa na sexta-feira e só volta na segunda. É freqüente ter duas, três famílias, e não usar preservativo. Em Moçambique muitos costumes giram em torno da sexualidade.
Viomundo – Como assim?

Rosana Del Bianco – Por exemplo: as mulheres moçambicanas mais velhas me contam que há uma prática ainda comum da viúva manter relação sexual com o irmão mais velho do marido ainda durante o velório. Isso significa que o irmão vai tomar conta daquela casa. Quando Samora Machel [primeiro presidente de Moçambique após a independência, chamado de ‘Pai da Nação’] morreu [1986], a mulher dele [Graça, que foi ministra da Educação], se recusou a cumprir esse rito. A partir de então, as moçambicanas se apegam a essa possibilidade de não se sujeitar mais a essa prática. Ela se casou [1998] com Nelson Mandela [principal líder do movimento anti-apartheid na África do Sul e seu presidente de 1994 a 1999]. Hoje os dois moram hoje em Moçambique.
Viomundo – Os homens HIV-positivos revelam sua condição sorológica às esposas?

Rosana Del Bianco – Muitas vezes, não. E aí acontece de pegar os anti-retrovirais para a mulher que está com aids, e tomar.
Viomundo – Impossível!
Rosana Del Bianco – É isso mesmo. O teste de HIV dá positivo, muitos escondem da esposa e, ainda, proíbem o doutor de contar. É uma situação complicadíssima. Mas como sabem que a mulher está tomando a medicação, tomam a dela.  A população hoje está mais consciente de que quem tem aids, precisa dos antirretrovirais. E como é um comprimido só por dia, é fácil. Além disso, a mulher tem relação sexual com ele sem camisinha, sabendo que está infectado e se reinfecta. O poder do homem sobre a mulher é muito grande. A mulher não tem emprego. Então, por questão de sobrevivência, suporta muita coisa. A gente vê casos de mulheres que, para arrumar dinheiro para comprar um saco de arroz, atravessam o rio dando a sua sexualidade.
Viomundo – Que outras barreiras dificultam o controle da epidemia lá?

Rosana Del Bianco – O uso da camisinha é uma barreira enorme. Há a questão dos dialetos. A maioria fala apenas um. O que dificulta a transmissão de informações, porque as pessoas do sul não entendem o que as do norte falam, e vice-versa. Em conseqüência, os próprios médicos moçambicanos muitas vezes não conseguem conversar com os pacientes.
Viomundo – No início da epidemia no Brasil, quando existia apenas a zidovudina – o AZT –, era muito comum os pacientes recorrerem a garrafadas, chás, certas injeções. Havia sempre um tratamento dito alternativo da hora. Em Moçambique isso também acontece?

Rosana Del Bianco – É o que eles chamam de medicina tradicional. O médico tradicional, que na verdade não é médico, serve para tudo: “faz casamento, batizado, trata gonorréia, cura aids, dor nas costas, arruma emprego, mulher bonita, resolve problema de ereção”. Essas informações você vê em cartazes na rua e em anúncios de jornais. Junto aparecem escritos médico tradicional, o nome e o telefone. O problema é que eles usam ervas que às vezes têm interação com os medicamentos anti-retrovirais.  Agora, eles estão misturando também às ervas um pouco de nevirapina. O que nos preocupa ainda mais, pois pode fazer com que essas pessoas desenvolvam resistência a esse antirretroviral.
Viomundo – O que fazer?

Rosana Del Bianco – Não dá para bater de frente, mesmo sabendo que algumas dessas ervas interferem nos antirretrovirais. Lá, isso é muito mais forte do que foi aqui. A maioria dos moçambicanos recorre ao médico tradicional. Eles preferem usar o que o ele manda do que o que o médico alopático orienta. Às vezes até falam para o médico alopata que estão tomando o remédio da alopatia, mas não estão. Estão tomando apenas o que o médico tradicional prescreveu.
Viomundo – E a rede de saúde?

Rosana Del Bianco – É ainda bastante precária. Hoje em dia existem no país cerca 900 médicos. Setecentos são de Moçambique. Os 200 restantes são cubanos, holandeses, Médicos sem Fronteira… É uma das taxas mais baixas do mundo. O Ministério da Saúde tem um staff no país todo de 16 mil pessoas; 1.140 trabalham nos hospitais.  Parte delas, inclusive médicos e professores, também infectada.
Viomundo – Essa precariedade contribui para a proliferação do chamado médico tradicional?

Rosana Del Bianco – Sem dúvida.
Viomundo – E os médicos alopatas dão conta de tanta gente doente?

Rosana Del Bianco – Não tem médico para todo mundo. Quem distribui, prescreve e vê os efeitos colaterais os anti-retrovirais na zona rural são principalmente os agentes de saúde — pessoas da população treinadas pelos médicos. São eles que também fazem cesarianas e certas cirurgias. Por lei, todo médico recém-formado é obrigado a ficar dois anos na periferia. Portanto, ele se forma e vai sozinho chefiar uma vila enorme e formar novas equipes de multiplicadores. São os agentes de saúde. São verdadeiros fazem tudo. Imagine você indicar os remédios e ver os efeitos colaterais em que tem o estômago persistentemente vazio. É muito difícil. Então eles conseguem muito pelas poucas condições que têm.
Viomundo – E quem forma esses médicos na área de HIV-Aids?

Rosana Del Bianco – Três vezes por ano a Universidade Eduardo Mondlane traz médicos do país inteiro para um curso de três semanas. Eu dou as aulas teóricas. Depois, vou com eles para as unidades de saúde que tratam pacientes com aids. Aí, faço a parte prática. Também todo final de ano, vou para Moçambique e dou aula para o pessoal do último ano de Medicina. Para se formar, eles são obrigados a fazer o curso e a prova. É para que tenham condições de cuidar dos pacientes com aids e prescrever terapia anti-retroviral.
Viomundo – Todos os médicos de Moçambique já passaram pelas suas mãos?

Rosana Del Bianco – De Norte a Sul. Tanto que me conhecem como a doutora Rosana de Moçambique. Já a população me chama de Dona Brasileira.
Viomundo – Como eles te vêem?

Rosana Del Bianco – Já estão acostumados comigo. Moçambique é um país predominantemente de negros. A primeira barreira foi dar aula para professores de medicina. Uma mulher branca, loura, brasileira, ensinando num hospital universitário. Eu consegui principalmente o respeito dos meus colegas de lá. Fui respeitando cada vez mais os costumes deles. Fui também me doando e doando o meu conhecimento sem cobrar nada em troca, largando todos os meus afazeres e compromissos no Brasil. E eles perceberam isso. E foram me puxando cada vez mais para lá. Hoje eu digo que são realmente meus amigos.
Viomundo – Quais são as estratégias de prevenção para um país com essa dinâmica social?

Rosana Del Bianco – Eu sempre digo que essa é uma epidemia deles. E ninguém melhor do que eles para saber lidar com ela. O que eu posso fazer é mostrar a minha experiência e como a gente no Brasil conseguiu combater o HIV. Porém, a nossa realidade não é igual a deles. Portanto, o nosso modelo não serve para eles. Não há uma fórmula mágica. Eles têm uma questão cultural muito forte que tem que ser respeitada. Então precisam achar uma saída dentro de toda essa situação.
Viomundo – A camisinha seria uma estratégia?

Rosana Del Bianco – O preservativo é sem dúvida o melhor método preventivo no momento. Temos que tentar que usem. O problema é que a rejeição é muito grande.
Viomundo – E a circuncisão?

Rosana Del Bianco – Tem papel de higiene. O prepúcio, membrana que recobre a cabeça do pênis, pode reter sujeira, consequentemente reter mais o vírus se o homem for portador e aumentar a transmissibilidade. Ao retirar cirurgicamente essa membrana, reduz-se a transmissibilidade. Aliás, por motivos religiosos, a maioria dos homens é circuncidado lá. Acredita-se que se não fosse a circuncisão, a epidemia seria muito maior.
Viomundo – Qual a saída preventiva então?

Rosana Del Bianco – Talvez a vacina mesmo. Existe também a perspectiva de óvulos com antirretrovirais. Eles já estão sendo testados em macacas. Talvez evitem que o vírus se instale rapidamente. Eles seriam colocados na vagina antes ou logo depois da relação sexual.
Viomundo – Seria uma “vacina”?

Rosana Del Bianco – Não é uma vacina, mas o espírito é esse. É uma quimioprofilaxia. Porém, você não toma. Usa na forma de óvulo. Ele seria à base dos antirretrovirais disponíveis. É uma saída interessante para locais com tamanha diversidade cultural como Moçambique.
Viomundo – O que mais está se testando?

Rosana Del Bianco – Existe uma droga novíssima que inibe a entrada do vírus nas células CD4, que são células de defesa, onde o HIV se instala.  Só quem tem o fator celular CCR5 pode tomar esse remédio.  O CCR5 é como se fosse o buraco da fechadura para a entrada do vírus nas células CD4. Na fase inicial da doença, a pessoa tem  muito CCR5. Quando o indivíduo começa a ficar doente, o CCR5 vai desaparecendo, e aí esse medicamento já não faz efeito. Portanto, é um medicamento para ser usado no começo para tentar evitar que o vírus se instale dentro do CD4 e a pessoa se infecte.  O caminho medicamentoso talvez seja o que vá ter maior impacto na prevenção do HIV na África.
Viomundo – A Dona Brasileira já virou moçambicana?

Rosana Del Bianco – Quase.
Viomundo – Doutora, eu a conheço há uns 15 anos. Nunca a vi tão feliz com o trabalho como agora. É o efeito Moçambique?

Rosana Del Bianco – Aqui, as pessoas têm a memória fraca. Eu fiz muito pelo Brasil, mas a valorização foi pouca. Eu faço pouco por Moçambique, e a valorização é imensa. Eles tomam para si – e com razão – todas as conquistas. Mas fazem questão de lembrar que a minha mão está por trás. E isso realiza a gente como profissional e ser humano.  Eu nunca esquecerei o que um dos médicos mais antigos que estavam num treinamento me disse: “Doutora, se um dia escutar que a epidemia de aids em Moçambique está controlada, pode ter certeza de que a senhora tem participação nisso”.
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