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10.21.2011

Pare de se preocupar com doenças

Você se preocupa com doenças, controla a alimentação feito louca, malha demais, faz inúmeros exames médicos? Atenção! Quando o assunto é saúde, mais nem sempre é melhor.

Cristina Nabuco1

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Uma paixão comum uniu o biólogo Lucas Botelho, 32 anos, e a arquiteta Márcia Costa, 29 anos: a corrida. Eles se conheceram no calçadão da praia, no Rio de Janeiro, engataram um namoro e passaram a dedicar as horas livres a essa prática esportiva. Corriam 40 minutos, duas vezes por semana. Depois uma hora, três vezes semanais. Suando sempre juntos, matricularam-se numa academia para não interromper o pique nos dias de chuva. Chegaram a quatro horas diárias. Não tinham mais tempo para a família nem para os amigos. Até preferiam assim. Se aceitassem convites para churrascos, almoços e festas, teriam que quebrar a dieta extremamente rígida enviada numa planilha eletrônica pelo treinador que contrataram. Os parentes reclamaram. Ofendidos, os dois resolveram ignorar os protestos até sentirem no corpo os sinais de que haviam passado dos limites. Márcia parou de menstruar e Lucas desenvolveu um problema tão grave no joelho que acabou na mesa de cirurgia. Não há nada de errado em cultivar um estilo saudável: comer mais frutas e verduras, restringir o açúcar, o sal e as gorduras, fazer exercícios, preservar a qualidade do sono... Afinal, a vida é nosso maior patrimônio. Mas guardar-se numa bolha, ficar focada no corpo – como se saúde fosse apenas manter a máquina azeitada e funcionando –, é um equívoco.
Patrulheira da saúde
“Se a preocupação com bem-estar interfere no cotidiano a ponto de privá-la dos bons momentos, de limitar seu repertório de atividades ou causar prejuízos no trabalho, nas relações sociais e afetivas, cuidado! Você pode ter se tornado prisioneira desses hábitos”, alerta o psiquiatra Marcelo Hoexter, do Laboratório Interdisciplinar de Neurociências Clínicas da Universidade Federal de São Paulo. Quando isso ocorre, cresce o perigo de se manifestarem transtornos que têm como âncora a atenção desmedida com a saúde, caso da ortorexia, vigorexia, hipocondria e do transtorno obsessivo-compulsivo (veja “Doenças do excesso”). “Muitos têm uma visão limitada do que seja bem-estar, o que leva ao patrulhamento dos outros e à cobrança desmedida de si mesmo”, avisa o cardiologista Arthur Zular, presidente do Departamento de Medicina Psicossomática da Associação Paulista de Medicina. “Ninguém morre nem altera o colesterol por comer batata frita um dia com os amigos”, diz. Ele lembra que, em nome da suposta qua lidade de vida, as pessoas adotam dietas espartanas, cortam grupos de alimentos e passam à base de ração humana. Em busca de uma apa rência às vezes inatingível, elas perdem o prazer de saborear uma refeição e a alegria de celebrar com os amigos. “A conclusão: esse grupo não está bem. Saúde não é apenas a ausência de doenças, envolve o conforto físico, psicológico, social e espiritual. Qualidade de vida é estar em harmonia consigo e com as pessoas que nos cercam.”
Só pensando nisso

Para a psicanalista Dirce de Sá Freire, especialista em psicologia clínica pela PUC do Rio de Janeiro, esses comportamentos têm uma explicação histórica: o século 18 foi marcado pela extrema rigidez dos costumes, o que se estendeu pelo 19 e ralentou no século 20 até o movimento rebelde que quebrou as normas nos anos 1960. Após longo período de muita repressão seguido por tempos de extraordinária permissividade, a civilização ocidental teve dificuldade em lidar com limites. A consequência é um jeito de viver e de pensar enquadrado no padrão tudo ou nada, pautado pela tendência ao excesso.” Então, o que em princípio é bom se torna um problemão. “Cuidar do corpo é ótimo, mas o excesso de exercícios causa lesões. Comida natural não faz mal, pelo contrário. O isolamento social que essa escolha acarreta, porém, é maléfico.” Em demasia, até a substância mais comum no organismo, a água, pode ser nociva.
O papel que a saúde assumiu hoje na nossa sociedade aumenta as distorções. O cientista social Alain Giami, do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica, na França, diz que ela se tornou o valor maior, o que orienta a vida – ocupando o lugar antes atribuído à liberdade. Essa visão levou as pessoas a se pautarem pelo que parece fazer bem. Elas não recorrem à medicina apenas para tratar doenças, mas usam dados de pesquisas científicas para regular os hábitos e as escolhas individuais. “É uma maneira de raciocinar e de perceber as coisas de um modo médico, que se dá, por exemplo, quando se deixa de comer açúcar.” Assim, abrimos mão de desfrutar hoje de um prazer para prevenir um suposto mal futuro. “Quando todas as atividades são condicionadas à saúde, medicaliza-se o viver”, adverte a especialista em saúde coletiva Madel Therezinha Luz, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “O ato de comer dá lugar à nutrição e às regras de alimentação; o andar desaparece em função do caminhar com metas.” E a pessoa passa a crer que, para não adoecer, ela precisa obedecer a diversas normas, algumas ditatoriais. “Ainda que a prevenção deva estar sob seu controle – pois é a pessoa que vai decidir ir à academia, usar camisinha e fazer checkup –, isso elimina a naturalidade do viver.”
Campanhas não faltam para reforçar a noção de que, para preservar a saúde, quanto mais exames melhor. A tese é criticada por cientistas da Dartmouth Medical School, nos Estados Unidos, liderados pelo professor Gilbert Welch. No livro Overdiagnosed (Random House), ainda inédito no Brasil, ele alerta para os riscos do sobrediagnóstico. Welch diz que há uma epidemia de exames preventivos. Muitos detectam alterações que nunca viriam a incomodar. Com base nos resultados, são adotados tratamentos complexos, dolorosos ou desnecessários. Pacientes sofrem uma overdose de efeitos adversos das medicações; cirurgias ocorrem sem critério. O resultado: a elevação do custo dos serviços médicos, falta de leitos em hospitais – e nossa ansiedade vai lá em cima. Do outro lado, florescem a indústria farmacêutica e os laboratórios de análises e imagens. “Exames demais não são mesmo a solução”, diz o clínico-geral e infectologista carioca Alex Botsaris, autor do livro Sem Anestesia (Objetiva), que discute os problemas da medicina atual. “Há uma inversão: ocorre a supervalorização dos métodos de diagnóstico, às vezes sujeitos a erros, e a depreciação da figura do médico. Ele deveria se encarregar de interpretar o quadro conforme os sintomas, a história pessoal e familiar para tratar o paciente, e não só o resultado do exame.”
Caminho do meio

Botsaris propõe repensar o modelo científico focado na doença e na especialidade. “Os profissionais adquirem uma visão limitada do paciente – e ele pula de médico em médico, todos receitando remédios, pedindo exames, uma bagunça. Deve haver um gestor, um generalista atento à condição do ser que está ali à sua frente. E, se necessário, encaminhá-lo ao especialista.” Na esfera individual, a mudança começa com a análise do tempo dedicado a cada atividade, aos cuidados com o corpo e a mente. Arthur Zular sugere criar outros focos de gratificação: ler, viajar, esperar o amanhecer, ver um filme e os amigos – coisas mais interessantes que só olhar o corpo. Quando o problema foge do alcance, terapias ajudam. Às vezes, remédios, como antidepressivos, são necessários. Finda a leitura desta reportagem, recorra à velha sabedoria popular: nem tanto ao céu, nem tudo ao mar. Não abandone os cuidados nem as visitas de rotina ao médico, mas invista no caminho do meio, que é o equilíbrio – não há receita melhor para a sua saúde.
Doenças do excesso
Ortorexia Zelo exagerado com a alimentação. A vigilância é tão grande que a pessoa abre mão de compromissos sociais e festas para não sair da dieta. Quando vai, leva a própria comida embalada. Além de enfrentar problemas nutricionais, fica sujeita ao isolamento.
Vigorexia Treinamento superintenso para ficar sarado. Ginástica, musculação, spinning e outras práticas tornam-se sagradas. O portador do transtorno ignora os alertas para os perigos, como ferir os músculos e tendões, afetar a produção hormonal e acelerar o envelhecimento. Ainda ocorrem queda no rendimento e na resistência imunológica, fadiga, insônia e alterações de humor.
TOC Transtorno obsessivo-compulsivo. Pensamentos, ideias e imagens relacionadas a doenças atormentam o tempo todo. Um exemplo: a pessoa que supõe ter sido contaminada por bactérias ao apertar o botão do elevador num hospital e lava as mãos repetidas vezes. O ritual parece aliviar o desconforto. Outras compulsões ocupam o tempo, com prejuízo profissional e social.
Hipocondria Percepção acima do normal dos sinais e ruídos do corpo, que ganham importância extrema. Qualquer dorzinha é vista como uma catástrofe e indício de doença grave. A hipocondríaca vive em médicos, está atenta às novidades das farmácias e toma muitos remédios, vitaminas e coquetéis antioxidantes sem prescrição médica.
Foto Karine Basílio/Modelo Soraya Steltenpool, Elite

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