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1.21.2014

Carinho de familiares e padrinhos e solidariedade cercam órfãos da Kiss

Algumas das vítimas deixaram filhos que hoje são cuidados por parentes.
Famílias veem apoio em amigos, desconhecidos e nas próprias crianças.

Felipe Truda Do G1 RS, em Santa Maria e Itaara
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Patrícia (D, na foto) e Joanna no 'quarto dos brinquedos' da menina em Santa Maria  (Foto: Felipe Truda/G1) 
Patrícia (D, na foto) e Joanna no quarto dos brinquedos da menina em Santa Maria
 (Foto: Felipe Truda/G1)
Carinho redobrado, solidariedade e uma legião de padrinhos marcam a vida das crianças que perderam o pai ou a mãe no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, em 27 de janeiro de 2013. Quase um ano depois, familiares e amigos cercam de mimos os órfãos da tragédia que matou 242 pessoas. O G1 conta histórias de quatro crianças que se apoiam no amor dos mais próximos para abrandar a saudade que eles ainda não entendem bem.
Desta segunda (20) até sexta-feira (24), o G1 conta como vivem sobreviventes e familiares de vítimas e o que mudou na lei, nos hábitos e na vida das pessoas um ano depois do incêndio na Kiss.

A tragédia de 27 de janeiro de 2013 matou 242 pessoas.
É o caso da pequena Joanna Treulieb, que não teve oportunidade de conhecer o pai, João Aluísio Treulieb, chefe do bar da boate Kiss e uma das vítimas da tragédia. No dia em que completou 10 meses de vida, a menina era o centro das atenções de uma sala repleta de convidados. Seis padrinhos e seis madrinhas disputavam o carinho no apartamento da mãe, a advogada Patrícia Carvalho. O grupo era apenas uma parte da legião de 20 "dindos" e "dindas".
"Recebemos a visita de, no mínimo, duas pessoas por dia. Logo depois do acidente, não comportava todo mundo na sala. As pessoas se aproximaram e nunca deixaram de vir. Todos participam, brincam com a Joanna", conta ao G1 Patrícia.
A ideia do grande número de padrinhos partiu do casal, quando os Treulieb ainda planejavam quem convidariam. "A escolha de vários tinha sido nossa, em conjunto. Ainda estávamos na fase de decisão", diz a mãe.
A jornalista Luciane Treulieb, de 30 anos, é a única tia da criança. Irmã do pai da menina, ela morou em Buenos Aires até agosto de 2012, quando foi aprovada em um concurso na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Na mesma época, soube que o irmão teria um bebê. "Fiquei feliz por poder acompanhar", lembra.
Após o dia 27 de janeiro, esteve sempre ao lado de Patrícia. Com a ausência do irmão, foi ela quem entrou na sala do parto com a mãe. "Ainda parece mentira. É surreal que a Joanna esteja aqui e ele não", lamenta Luciane, ao lembrar da tragédia. "Ficamos com uma lembrança dele. E ela é parecida, acabamos percebendo ele nela. Não tem como não notar".
Grupo de padrinhos cerca a mãe e a criança de carinho (Foto: Felipe Truda/G1)Grupo de padrinhos cerca a mãe e a criança de carinho (Foto: Felipe Truda/G1)
O bancário Diego Bacin Raymundo, de 30 anos, lamenta não ter ouvido o convite do próprio pai da menina. Quando Patrícia ainda estava grávida, o amigo de infância o convidou para "tomar umas cervejas". Devido à rotina atribulada do trabalho, não conseguiu encontrá-lo. Depois da tragédia, quando velava o corpo do amigo, ouviu de Patrícia o motivo da conversa: fora escolhido para ser um dos padrinho.
"Isso me fez rever uma coisa na vida, não podemos deixar para amanhã o que podemos fazer hoje", diz.
Outro amigo de infância de Treulieb na legião de padrinhos é o diretor de marketing Vinícius Brum Silva, 26 anos. Há ainda ex-colegas de trabalho da vítima da tragédia: o psicólogo Luismar da Rosa Model, de 26 anos, e a estudante Fernanda Dias, de 20. Ele sobreviveu ao incêndio na Kiss e ela havia deixado a casa noturna sete meses antes.
Ariela Quartiero, com Joanna no colo, ao lado da estudante Fernanda Dias (Foto: Felipe Truda/G1) 
Ariela Quartiero, com Joanna no colo, ao lado da estudante
Fernanda Dias (Foto: Felipe Truda/G1)
Luismar diz que saiu da boate noturna ainda consciente, mas não viu Treulieb. Ele chegou a se afastar da boate temendo uma explosão, mas retornou com outros colegas para procurar os conhecidos. "Passando alguns minutos, começamos a ter certeza. A preocupação seria sobre quem iria avisar a Pati", relembra.
Mas Patrícia já acompanhava a situação. "A Pati me ligou, tentei conversar com ela, mas não sabia ainda. Ela me disse que não achava o ‘nosso amiguinho’", lembra o empresário Marcio Simon, de 37 anos, marido de Diele Estivalete Cunha, de 30.
A lista de padrinhos também tem amigos de Patrícia. O empresário André Luiz Farias, de 46 anos, convive há mais de 20 com a advogada e acompanhou todo o relacionamento com o marido. A administradora Naiane Zanetti, de 35, também tem um vínculo de longa data com a mãe de Joana. A psicóloga Ariela Quartiero, de 31, e a advogada Mariana Mariano Rocha, de 34, eram amigos do casal.
"No momento em que fiquei sabendo, entrei em contato com a Patrícia e desde então continuo acompanhando as duas", conta Ariela, que também realiza um trabalho voluntário com sobreviventes e familiares de vítimas da tragédia.
Os "dindos" e "dindas" entendem que não são capazes de suprir a ausência do pai que a criança não conheceu. No entanto, garantem que Joanna nunca estará sozinha. "Todas as pessoas vêm para somar. Cada um tem uma história para contar, um momento em que viveu com o pai dela", disse a mãe.
Solidariedade ajuda família humilde em Itaara
Vlademir e Iracema Vargas com as netas Jennifer e Eduarda (Foto: Felipe Truda/G1)Vlademir e Iracema com as netas Jennifer e Eduarda, ao lado de uma foto das mães (Foto: Felipe Truda/G1)
Em um pequeno casebre de madeira em Itaara, a 11 km de Santa Maria, moram as primas Jennifer, de 7 anos, e Eduarda, de 5. A mais velha é filha de Francielle Vargas, e a segunda, de Cecília Vargas. As duas irmãs morreram na boate Kiss. Quem cuida das crianças é o jardineiro Vlademir Antonio Vargas e a mulher, a dona de casa Iracema Teixeira Soares, ambos de 52 anos. Também vive com eles a estudante Camila, de 17 anos, a caçula do casal.
Casebre de madeira onde mora Vlademir, a mulher, a filha e as duas netas (Foto: Felipe Truda/G1) 
Casebre de madeira abriga Vlademir, a mulher, a
filha e as duas netas (Foto: Felipe Truda/G1)
O lar é pequeno e aparenta ser frágil. A porta de entrada dá acesso à cozinha. Quem adentra sente o assoalho se movendo com a força dos passos. A geladeira treme com a oscilação do chão. "Não dá bola que é assim mesmo", avisa Vlademir, sorrindo, e mostrando símbolos religiosos e armários com roupas que pertenciam às filhas que perdeu há cerca de um ano.
As meninas não se importam. Em uma manhã ensolarada, brincavam pela casa com outras crianças da localidade de Parque Pinhal, onde Vlademir sustenta a família trabalhando para donos de casas de veraneio próximas ao balneário da localidade.
O sorriso ingênuo das duas crianças desapareceu quando o jardineiro mostrava um quadro com uma foto delas com as mães. Com semblantes sérios, Jennifer e Eduarda pararam para observar a imagem, sem falar nada. Os olhos da avó se encheram de lágrimas. "Sinto uma saudade horrível das minhas filhas", afirma.
O casebre contrasta com uma construção inacabada, que simboliza o maior sonho de Vlademir: dar uma moradia mais confortável à família. Ao observar a obra, mostra gratidão. "Tudo isso que você está vendo, tudinho mesmo, foi feito com dinheiro que me depositaram", revela, enquanto aponta para a casa com quatro cômodos que tem a estrutura pronta, inclusive o telhado.
A história da humilde família foi contada pelo G1 e pela RBS TV, além de jornais locais. Desde então, a família recebeu doações, parte em dinheiro, parte em materiais de construção. Vlademir parou de aparar jardins alheios, usou o dinheiro para contratar um pedreiro e trabalhou como servente do próprio funcionário. Os alimentos que chegavam eram parte do pagamento, e a casa foi projetada de forma gratuita por um grupo de arquitetas de Santa Maria.
Construção ainda precisa de reboque e instalação de redes elétrica e hidráulica (Foto: Felipe Truda/G1)Construção ainda precisa de reboco e instalação de redes elétrica e hidráulica (Foto: Felipe Truda/G1)
"Um homem de uma igreja me deu 9 mil tijolos, mas isso não é mais do que o que me deu um saco de cimento. Não tenho nem palavras. Lembro de cada um da mesma forma. Posso dizer que Deus existe”, conta.
Em janeiro deste ano, no entanto, as doações pararam de chegar. A obra cessou. Para que a família possa deixar o casebre de madeira, ainda falta o reboco, a instalação hidráulica e a rede elétrica. "A prioridade é rebocar. Ainda tem a porta da garagem para colocar, mas isso é o de menos", minimiza.
Maturidade de Júlia ajuda avó e tia a superar a dor
Vanessa e Júlia brincam com gatos no pátio de casa: paixão da criança por animais foi herdada da mãe  (Foto: Felipe Truda/G1) 
Vanessa e Júlia brincam com gatos no pátio de
casa: paixão da criança por animais foi herdada da
mãe (Foto: Felipe Truda/G1)
A paixão por animais e a mania de limpeza de Júlia, sete anos, fazem a avó, a aposentada Erci Vasconcellos, de 60 anos, e a tia, a estudante Vanessa Vasconcellos, de 24 anos, se lembrare da mãe da menina. Letícia Vasconcellos foi recepcionista da Kiss e morreu no incêndio, aos 36 anos. Elas moram com o avô da menina, o vendedor Renato Vasconcellos, na mesma casa onde a menina vivia com a mãe e o irmão Vinícius, de 14 anos, que se mudou para a casa do pai.
"Sempre falamos que ela é como a mãe. Temos um pátio enorme e ela varre tudo. Eu digo para ela parar, pois é muito nova. E a Letícia era bem assim. E ainda me diz para não esquecer meus remédios. Sempre digo que foi Deus que a mandou para me cuidar", diz Erci, que precisa de medicamentos para tratar a artrite e artrose.
Foi Deus que a mandou para me cuidar"
Erci Vasconcellos, avó de Júlia, de sete anos
Sentada ao lado da avó, Júlia acompanhava atentamente a conversa, sem dizer uma palavra. Ouvia sobre a morte da mãe, as dificuldades financeiras e o trauma que impede a tia de conseguir um novo emprego – Vanessa trabalhou como relações públicas na boate Kiss até o mês que antecedeu a tragédia. Desde que Júlia perdeu a mãe, maturidade da criança surpreende diariamente os familiares.
"Ela é um espírito de luz. Não é fácil, nunca ninguém imaginaria isso", diz a avó Erci. "No início eu chorava muito, ela corria para buscar um lenço e me confortava", conta.
No meio da conversa, Júlia rapidamente se levantou do sofá e saiu em direção à porta que dá acesso ao pátio. Do lado de fora, pegou um gato no colo, voltou para a porta da sala e sorriu para Erci e Vanessa. "A mãe dela também adorava gatos. Sempre digo a ela que ela é a segunda Letícia", diz a aposentada.
Explicar para a criança que a mãe morreu não foi fácil. Foi necessária uma conversa prévia com psicólogos sobre o assunto. Segundo Erci, a criança já sabia o significado da morte. "Eu já vinha explicando há muito tempo atrás que, quando uma pessoa morre, não acaba, para prepará-la para a minha morte. Eu explico a parte do espírito, que um dia vamos nos encontrar", afirmou.
A aposentada acredita que a forte ligação com a menina ajuda a criança a superar o trauma. "Ninguém vai suprir uma mãe, mas ela já era muito apegada comigo", conta.
Erci sente falta do neto mais velho, que devido ao período de férias de verão não tem ido visitá-la. "Ele estuda aqui perto e, quando tem aula, vem almoçar aqui. Ele sempre diz que o feijão da vó é o melhor que tem", diz, orgulhosa. A presença da neta, no entanto, é o maior conforto para a avó. "Se eu não tivesse a Júlia, estaria tudo acabado", conta.
Erci, Vanessa e a pequena Júlia Vasconcellos: maturidade da menina surpreende  (Foto: Felipe Truda/G1)Erci, Vanessa e a pequena Júlia Vasconcellos: maturidade da menina surpreende (Foto: Felipe Truda/G1)
Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul, ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia matou 242 pessoas, sendo a maioria por asfixia, e deixou mais de 630 feridos.

O fogo teve início durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira e se espalhou rapidamente pela casa noturna, localizada na Rua dos Andradas, 1.925.
O local tinha capacidade para 691 pessoas, mas a suspeita é que mais de 800 estivessem no interior do estabelecimento.

Os principais fatores que contribuíram para a tragédia, segundo a polícia, são: o material empregado para isolamento acústico (espuma irregular), uso de sinalizador em ambiente fechado, saída única, indício de superlotação, falhas no extintor e exaustão de ar inadequada.

Ainda estão em andamento dois processos criminais contra oito réus, sendo quatro por homicídio doloso (quando há intenção de matar) e tentativa de homicídio, e os outros quatro por falso testemunho e fraude processual. Os trabalhos estão sendo conduzidos pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada. Sete bombeiros também estão respondendo pelo incêndio na Justiça Militar. O número inicial era oito, mas um deles fez acordo e deixou de ser réu.

Entre as pessoas que respondem por homicídio doloso (com intenção), na modalidade de "dolo eventual", estão os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, além de dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o funcionário Luciano Bonilha Leão. Os quatro chegaram a ser presos nos dias seguintes ao incêndio, mas a Justiça concedeu liberdade provisória aos quatro em maio do ano passado. Entre os bombeiros investigados, está Moisés da Silva Fuchs, que exerceu a função de comandante do 4° Comando Regional de Bombeiros (CRB) de Santa Maria.

Atualmente, a Justiça está em fase de recolher depoimentos dos sobreviventes da tragédia. O próximo passo será ouvir testemunhas. Os réus serão os últimos a falar sobre o incêndio ao juiz. Quando essa fase for finalizada, Louzada deverá fazer a pronúncia, que é considerada uma etapa intermediária do processo.

Se o magistrado "pronunciar" o réu, ele vai a júri (a pronúncia é a ordem para ir a júri). Outra possibilidade é a chamada desclassificação, quando o juiz não manda o réu para júri, mas reconhece que houve algum tipo de crime. Nesse caso, a causa será julgada sem júri. Também existe a chance de absolvição sumária dos réus. Em todas as hipóteses, cabe recurso.

No âmbito das investigações, três delas estão sendo conduzidas pela Polícia Civil. Além dos documentos sobre as licenças concedidas à boate Kiss, um inquérito apura as atividades da empresa Hidramix, responsável pela instalação de barras antipânico na boate, e outro analisa uma suposta fraude no documento de estudo de impacto na vizinhança do prédio onde ficava a casa noturna. O Ministério Público, por sua vez, investiga as responsabilidades de servidores municipais na tragédia.

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