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6.22.2014

Rose Marie Muraro: a saga de uma mulher impossível

 Leonardo Boff
No dia 21 de junho, concluiu sua peregrinação terrestre no Rio de Janeiro uma das mulheres brasileiras mais significativas do século XX: Rose Marie Muraro (1930-2014). Nasceu quase cega. Mas fez desta deficiência o grande desafio de sua vida. Cedo intuiu que só o impossível abre o novo; só o impossível cria. É o que diz no seu livro Memórias de uma mulher impossível  (1999,35). Com parquíssima visão, formou-se em física e economia. Mas logo descobriu sua vocação intelectual: de ser uma pensadora da condição humana, especialmente da condição feminina. Foi ela que, no final dos anos 60 do século passado, suscitou a polêmica questão de gênero. Não se limitou à questão das relações desiguais de poder entre homens e mulheres, mas denunciou relações de opressão na cultura, nas ciências, nas correntes filosóficas, nas instituições, no Estado e no sistema econômico. Enfim, deu-se conta de que no patriarcado de séculos reside a raiz principal deste sistema que desumaniza  mulheres e também  homens.
Rose Marie Muraro
Rose Marie Muraro
Realizou em si mesma um impressionante processo de libertação, narrado no livro Os seis meses em que fui homem (1990,6ª edição). Mas a obra quiçá mais importante de Rose Marie Muraro tenha sido Sexualidade da Mulher Brasileira: corpo e classe social no Brasil (1996). Trata-se de uma pesquisa de campo em vários Estados da federação, analisando como  é vivenciada a sexualidade, tomando em conta a situação de classe das mulheres, coisa ausente nos pais fundadores do discurso psicanalítico. Neste campo Rose inovou, criando uma grelha teórica que nos faz entender a  vivência da sexualidade e do corpo consoante as classes sociais. Que tipo de processo de  individuação pode realizar uma mulher famélica que, para não deixar o filhinho morrer, dá o sangue de seu próprio  seio?     Trabalhei com Rose por 17 anos como editores da Editora Vozes: ela responsável pela parte científica e eu pela parte religiosa. Mesmo sob severo controle dos órgãos de repressão militar, Rose tinha a coragem de publicar os então autores malditos como Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Paulo Freire, os cadernos do CEBRAP, e outros. Depois de anos de longa discussão e estudo em conjunto, reunimos nossas convergências num livro que considero seminal: Feminino & Masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças  (Record 2010). Destaco apenas uma frase dela: ”educar um homem é educar um indivíduo, mas educar uma mulher é educar uma sociedade”.
Sem deixar nunca de lado a questão do feminino (no homem e na mulher), voltou-se cedo aos desafios da ciência e da técnica moderna. Já em 1969, lançava Autonomação e o futuro do homem e previa a precarização do mundo do trabalho.  
A crise econômico-financeira de 2008 levou-a a colocar a questão do capital/dinheiro com o livro Reinventando o  capital/dinheiro (Idéias e Letras 2012), onde enfatiza a relevância das moedas sociais e complementares e as redes de trocas solidárias que permitem aos mais pobres garantirem sua subsistência à revelia da economia capitalista dominante.
Outra obra importante, realmente rica em conhecimentos, dados e reflexões culturais se  intitula Os avanços tecnológicos e o futuro da humanidade: querendo ser Deus? (Vozes 2009). Neste texto, ela se confronta com a ponta da ciência, com  a nanotecnologia, a robótica, a engenharia genética e a biologia sintética. Vê vantagens nessas frentes, pois não é obscurantista. Mas pelo fato de vivermos dentro de uma sociedade que de tudo faz mercadoria, inclusive a vida, percebia o grave  risco de os cientistas presumirem poderes divinos e usarem os conhecimentos para redesenharem a espécie humana. Daí o sub-título: Querendo ser Deus?  Essa é a  ingênua ilusão dos cientistas. O que nos salvará não é essa nova Revolução Tecnológica mas, como diz Rose, é a “Revolução da Sustentabilidade, a única que poderá salvar a espécie humana da destruição… pois a continuarmos como está, não estaremos em um jogo ganha-perde e sim no terrrível jogo perde-perde, que significará a destruição de nossa espécie, na qual todos perderemos”(Reinventando o Capital/dinheiro, 238).
Rose possuía um sentimento do mundo agudíssimo: sofria com os dramas globais e celebrava  os poucos avanços. Nos últimos tempos, Rose via nuvens sombrias sobre todo o planeta, pondo em risco o nosso futuro. Morreu preocupada com as buscas de alternativas salvadoras. Mulher de profunda fé e espiritualidade, sonhava com as capacidades humanas de transformar a tragédia anunciada numa crise purificadora rumo a uma sociedade que se reconcilie com a natureza e a Mãe Terra. Conclui seu livro Os avanços tecnológicos com esta sábia frase: ”quando desistirmos de ser deuses, poderemos ser plenamente humanos, o que ainda não sabemos o que é, mas que intuímos desde sempre”(p. 354).
Proclamada a 30 de dezembro de 2005 oficialmente pelo Presidente, Patrona do Feminismo Brasileiro e com a criação da  Fundação Cultural Rose Marie Muraro em  2009, deixará um legado de fecundo humanismo para as futuras gerações. Rose Marie Muraro mostrou em sua saga pessoal que o impossível não é um limite, mas um desafio. Ela se inscreve na linhagem das grandes mulheres arquetípicas que ajudam a humanidade a preservar viva a lamparina sagrada do cuidado por tudo o que existe e vive. Nesse afã ela se tornou imorredoura.
* teólogo e escritor

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