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4.28.2015

Resenha do livro Caim de José Saramago





Enredo

Filho primogênito de Adão e Eva - banidos do jardim do Éden por terem desobedecido ao Senhor (também conhecido como Deus) e comido a fruta do conhecimento do bem e do mal - Caim teve suas ofertas rejeitadas pelo Senhor, que só contemplou as ofertas de Abel, que, pretensioso, se sentiu, erroneamente, um “preferido do Senhor”. Ao invés de se compadecer do desgosto do irmão e consolá-lo, Abel riu e zombou de Caim por ele ter sido desdenhado por Deus. Passou-se uma semana e o mesmo aconteceu, Caim sendo rejeitado pelo Senhor e Abel sempre rindo sem piedade do irmão. Caim, com ciúmes, cansado do desprezo do Senhor e das zombarias de Abel, pediu que o irmão o acompanhasse a um vale próximo, chegando lá, ele o golpeou com uma queixada de jumento. Abel, o “preferido do Senhor”, morreu “na hora”.

Atrasado em relação aos acontecimentos, o Senhor chega para “abominar” o ato Caim, agora um fratricida. Eles começam a discutir. Caim, depois de ser acusado por Deus de assassino, argumenta que a divindade também tinha culpa no acontecido, pois se ele não tivesse rejeitado suas ofertas ou tivesse chegado a tempo de evitar a tragédia nada daquilo teria acontecido. Sem saída, o Senhor acabou admitindo sua parcela de culpa na morte de Abel - assumindo ter aceitado somente a oferta Abel para testar a fé de Caim. Em seguida, o Altíssimo fez um pacto com Caim. O acordo consistia no silêncio de Caim sobre a parcela de culpa do Senhor na morte de Abel, como recompensa, o Todo-Poderoso não o castigaria/mataria e, também, nenhum homem poderia lhe fazer o mal, pois ele estaria até o fim de sua vida com a proteção e censura do Senhor, isto é, sendo vigiado e protegido.

Nisso, o Senhor marcou a testa de Caim com um sinal, uma mancha, e também traçou o seu destino, dizendo que ele andaria perdido e errante pelo mundo, disse isso e foi embora, deixando Caim desolado e perplexo. Contudo, Caim, apesar de ser um fratricida, não é uma má pessoa, segundo o narrador (em 3ª pessoa). Durante sua vida até aquele momento, Caim sempre tivera bons princípios. Talvez seu destino fosse diferente se o Senhor não tivesse atravessado seu caminho com seus joguinhos divinos de testar a fé alheia.

Daquele dia em diante, Caim - “misteriosamente” e sem mesmo ter designado isso o Senhor - começa a viajar pelos tempos - sem uma ordem cronológica em relação aos acontecimentos - indo do presente ao passado, do passado ao futuro, conhecendo diferentes lugares e civilizações, que, aliás, são paródias às histórias bíblicas do Antigo Testamento judaico-cristão.

O primeiro lugar que Caim visita é a terra de Nod, lá ele conhece Lilith, rainha da cidade, mulher muito bonita e sedutora, uma figura ausente, pelo menos explicitamente, na Bíblia. Lilith é conhecida na cidade pelo hábito de ter muitos amantes, e isso abertamente para todos, apesar de ser casada, e que, aliás, seu marido, Noah, sabe e concorda com tudo. Caim, seduzido e apaixonado por Lilith, se torna seu amante, mas, pouco tempo depois, se vê obrigado a deixá-la para cumprir com seu destino (que é viajar pelo tempo, involuntariamente), assim, ele vai embora de Nod e deixa Lilith, grávida de um filho seu.

A segunda aventura de Caim é seu encontro com Abraão e seu filho Isaac, justo no momento em que Abraão oferecia Isaac como sacrifício a Deus. No momento em que Abraão ia matar o próprio filho, obedecendo ao pedido do Senhor, Caim interfere e começa a discutir com o velho Abraão, que diz que iria sacrificar o filho para louvar a Deus. Um anjo do Senhor chega durante a discussão, porém atrasado, em relação aos acontecimentos, e diz que aquilo de pedir um sacrifício humano em louvação foi só um teste divino e que Abraão não precisa mais sacrificar Isaac, que fica muito magoado com a maldade de Deus e de seu pai, em pôr sua vida em jogo e ainda deixar o anjo chegar atrasado, pois se não fosse por Caim, ele teria morrido. Abraão pede perdão ao filho e diz que não tinha consciência do que fazia, que em perfeito juízo nunca faria aquilo. Isaac, sem (supostamente) “entender a religião”, questiona se Deus é capaz de enlouquecer as pessoas, deixando seu pai numa saia justa. Caim, depois dos agradecimentos de Abraão por ter evitado a morte de seu filho, segue sua viagem pelo tempo - dessa vez um tempo mais antigo que o anterior.

Em seguida, Caim se deparou com o episódio bíblico da Torre de Babel. Ele chega a um lugar onde as pessoas estavam desesperadas, pois falavam e não conseguiam se entender, fazendo, assim, uma algazarra. Caim consegue encontrar um homem que falava hebraico e pergunta o que ocorreu. O homem diz que as pessoas tentaram construir uma torre que pudesse chegar ao céu, para assim ficarem famosas. Contudo, quando o Senhor viu a torre, não gostou nem um pouco, apesar de o desejo do homem justo ser o de chegar ao céu, Deus ficou com ciúme e inveja, pois se os homens conseguissem fazer uma torre assim, tudo, dali por diante, poderiam fazer também. E foi assim que ele tirou a língua comum dos homens, os castigando e destruindo a torre de babel.

Caim, depois de mais uma vez ficar perplexo e descontente com os feitos do Senhor, volta a reencontrar Abraão, só que num passado mais distante que o do primeiro encontro, pois Isaac ainda não tinha nem nascido. Caim estava em Sodoma, e está, junto com Gomorra, estava sob as ameaças de destruição total pelo poder do Senhor, que ficou sabendo de crimes “contranaturais” que estavam ocorrendo por ali, como, por exemplo, o fato de os homens preferirem se deitar com outros homens a mulheres. Abraão, diante dessa ameaça de destruição de Sodoma, pergunta ao Senhor se ele pouparia a cidade e perdoaria as pessoas se lá houvesse 50 inocentes. Deus afirma que se ele encontrasse 50 inocentes todos seriam perdoados. Abraão, muito esperto, aos poucos, vai diminuindo a quantidade de inocentes que ele poderia encontrar e pergunta se o Senhor seria capaz de perdoar os maus feitos da cidade se lá se encontrassem 10 pessoas inocentes. O senhor aceita a proposta de Abraão, enquanto, Caim, disfarçado para que o Senhor não o reconheça, observava aquela conversa. Ficamos sabendo que o Senhor não é tão onipotente, já que ele não percebe que um dos homens que estava ali ao seu redor era Caim, disfarçado.

Depois que Deus foi embora, Caim conversou com Abraão sobre essa proposta, e viu que Abraão já sabia que era em vão a palavra do Senhor, por nada, pois o Senhor já tinha seus planos de destruição e já sabia dos costumes “pecaminosos” das pessoas. Eles decidiram ir à cidade e chamar alguns companheiros de Abraão para fugir, pois os anjos do Senhor avisaram que o fim para as cidades estava chegando. Foi então que em alguns dias aconteceu a destruição de Sodoma e Gomorra por causa da ira do Senhor que devastou tudo e a todos que lá se encontravam, até crianças inocentes, queimadas pelo fogo e enxofre, e isso bem reparou Caim, que guardou essa triste e cruel lembrança, e também da falta de palavra do Senhor, que não poupou nem os inocentes, as criancinhas, que não tinham culpa dos feitos dos adultos, seus pais. Enquanto seguia para longe com Abraão, Caim questionava tudo isso, não olhando para trás, para não virar uma estatua de sal, o que foi uma ordem do Senhor.

Caim, em seguida, sem se dar conta, viajou para o deserto do Sinai. Lá ele comprovou, mais uma vez, o poder da ira do Senhor diante do povo pecador. Caim encontra Moisés, e o ajuda, a contragosto, numa guerra contra os homens madianitas, povos da região de Madian, que desonraram o nome do Senhor e que pelo seu mandado, não restou nenhum com vida, exceto as mulheres e crianças que os israelitas, homens do Senhor, levaram como prisioneiras, assim como as riquezas e os bens matérias daquele povo, que seriam divididos em uma metade para os soldados que foram à guerra e a outra para a comunidade, em que ambas as partes, tanto a dos soldados como a da comunidade, deveriam pagar determinados tributos/impostos para o Senhor, que aumentou sua riqueza mais ainda depois disso, ficando, também, conhecido como o Senhor dos exércitos.

Depois de alguns episódios, Caim, involuntariamente sendo levado pelo tempo, volta paras as terras de Nod, onde Lilith é a rainha. Caim fica surpreso ao encontrar pela primeira vez seu filho, um rapazinho de cerca de 10 anos. No castelo, ele fica sabendo que o marido de Lilith havia morrido de morte natural, e que agora eles, se quisessem, poderiam ficar juntos. Depois de matar as saudades de Lilith, isto é, fazer amor/sexo, Caim lhe conta os motivos de não poder ficar muito tempo por ali, que são suas viagens inesperadas e involuntárias pelo tempo. E foi assim que, depois de duas semanas ao lado de Lilith, Caim, desapareceu, mais uma vez por efeito de uma viagem.

Caim chega à terra de Us. Com a ajuda de alguns anjos do Senhor, ele decide pedir trabalho a Job, homem generoso e o mais rico da cidade. No meio do caminho, Caim, desconfiado da presença dos anjos de Deus na terra, pergunta o que eles estão fazendo. Depois de pensarem se deviam ou não contar a Caim os planos de Deus, os anjos “abrem a boca”, deixando Caim perplexo com a maldade divina. Os anjos revelaram a Caim que Deus e o Diabo haviam feito uma aposta para testar a fé de Job no Senhor. Assim, com o aval divino, Satanás destruiu a vida do pobre fiel Job, que perdeu de uma só vez, toda a sua fortuna e todos os seus filhos, ficando, em seguida, gravemente doente de chagas. Até determinado momento, diante de tudo isso, Job aceitou o destino sem questionar, foi então que sua mulher, a única ainda viva da família, lhe fez raciocinar um pouco a respeito das fatalidades: sobre Deus que permitiu que Satanás fizesse tudo isso, pois, ele deveria concordar com a malignidade, porque não intervira em seu sofrimento. Mesmo sem saber, a mulher de Job, raciocinava por um caminho semelhante aos fatos. Mesmo sabendo que - segundo os anjos - o Senhor futuramente arranjaria uma maneira de (re)compensar Job pelos seus sofrimentos, Caim aumentou, cada vez mais, seu ódio por Deus.

Caim, depois de presenciar os Hobbies do Senhor, fez sua última viagem pelo tempo, que é o seu encontro com Noé construindo a arca que salvaria a vida de sua família e as das duas espécies de cada animal da terra, pois o Senhor decidira acabar com a humanidade, com um poderoso diluvio. Quando Deus veio encontrar Noé para ver o andamento da arca, encontrou Caim, e ficou surpreso, por “não o ter visto mais”, pois ele ainda não sabia que Caim tinha se disfarçado em Sodoma. Caim e o Senhor, para a surpresa de Noé de sua família, começaram a discutir - parecendo até velhos conhecidos - Caim mostrando sua insatisfação com os cruéis e injustos feitos divinos e o Senhor se justificando, apesar de não precisar, “pois ele é Deus”.

Depois dessa batalha dialética, Deus ordena a Noé que leve Caim junto na arca, pois ele teria que ajudar na procriação da espécie junto com as mulheres de seus filhos e com a sua. Caim, desesperado e inconformado com a frieza do Senhor, decide, já que não podia matá-lo, que, pelo menos, mataria seus planos celestiais. E foi assim que durante o diluvio divino, Caim matou, secretamente, os habitantes humanos da arca, um por um, desde as mulheres até os homens da navegação. Quando o diluvio passou, Noé, desprovido de inteligência, ficou desesperado, pois não conseguira ajudar nos planos do Senhor, que era a procriação e povoação da nova terra, depois do diluvio. Caim fica satisfeito por ter acabado com os planos do Senhor, que apesar de ser onipotente, nem imaginou o que estava acontecendo durante os 40 dias e 40 noites de diluvio. Caim confessa a Noé sua culpa, Noé, desesperado, se joga no mar, se suicidando, pois não saberia como contar ao Senhor seu fracasso.

No dia seguinte, quando a arca tocou a terra, o Senhor, sem saber do fracasso de seus planos divinos, encontra somente Caim, que satisfeito consigo mesmo, lhe conta as novidades. Deus, exaltado por ver seus planos contrariados por um reles mortal, pergunta por que Caim fez tamanhas atrocidades, mesmo depois de ele, o Senhor, ter-lhe poupado a vida quando ele matou o irmão. Caim, diz que fez isso porque não podia matá-lo, e assim, pelo menos, mataria seus planos de fazer uma nova civilização. Quando o Senhor, com sua moral divina, acusa Caim de infame por ter matado o próprio irmão, Caim assume que o é, mas não mais que ele, o Senhor, pelas crianças inocentes, mortas pelo fogo divino em Sodoma. Eles ainda discutiram alguma coisa, e, segundo o narrador, continuariam a discutir.


A desconstrução do discurso bíblico do Antigo Testamento

José Saramago faz em Caim uma desconstrução do discurso bíblico do Antigo Testamento judaico-cristão. O autor não recua diante de nada no momento de abordar e questionar a divindade e o conjunto de regras e princípios religiosos que os homens estabelecem em torno de Deus para exigir de si mesmos - e dos outros - uma fé inabalável e absoluta, e que através desta tudo se justifica, desde negar-se a si mesmo até à destruição, morrer oferecido em sacrifício ou até matar em nome de Deus.

Saramago, para fazer esses questionamentos e essa desconstrução das verdades tidas como absolutas no discurso bíblico, faz intertextualidades com os textos bíblicos do Antigo Testamento, mas com um novo ponto de vista em relação aos fatos bíblicos, que ganham uma nova interpretação, reelaborada a partir de um discurso paródico. Assim, a paródia (imitação cômica que utiliza a ironia ou o deboche, sugerindo uma nova interpretação para uma obra já existente) e o recurso da intertextualidade (criação de um texto que envolve ou faz referências a outros textos já existentes) possibilitam diversas discussões, rediscussões, questionamentos e novas interpretações dos fatos bíblicos.

O escritor português, ao fazer isso em Caim, não desmente ou nega, pelo menos diretamente, os fatos bíblicos repassados pelas instituições religiosas através da Bíblia, mas propõe uma nova visão sobre a “verdade” interpretada desses fatos, desconstruindo o que para as instituições religiosas da religião judaico-cristã é dado como verdade absoluta e inquestionável. Provavelmente, o posicionamento do autor é influenciado por suas ideologias, já que devemos levar em consideração que Saramago era ateu, isto é, ele possuía uma visão cética diante de crenças religiosas. Dessa forma, o leitor tem a oportunidade de questionar as ideologias que são passadas pelas sociedades de cultura cristã, já que Saramago propõe um posicionamento diferente do religioso diante dos fatos bíblicos.


Personagens Antagônicos: Deus X Caim

Há na narrativa um contraste existente entre as atitudes (ideológicas, morais, comportamentais) de Deus e de Caim, que se confrontam ideologicamente, num jogo de forças antagônicas, contrárias.


DEUS

Deus, no romance de Saramago, é uma figura de caráter autoritário que impõe aos seres humanos preceitos morais divinos particulares, egocêntricos (isto é, baseados, apenas, em sua vontade). Assim, Deus, na narrativa saramaguiana, se distancia do caráter sagrado, bondoso, justo e misericordioso da Divindade que é apresentada no discurso bíblico, pois seus atos são apresentados com ironia e/ou sarcasmo pelo narrador como sendo “ações divinas” cruéis, banais, mesquinhas, invejosas, injustas e egoístas, que, aliás, são constantemente questionadas de forma crítica e reflexiva por Caim. 

Deus pode ser visto como um tirano, como um vilão, pois é capaz de destruir civilizações inteiras sem importar-se nem com possíveis inocentes, como no caso do extermínio dos ímpios de Sodoma e Gomorra que acarretou também a morte de crianças inocentes. Ou ainda, no caso de Abraão que quase matou o próprio filho por ordem do Senhor, para provar sua fé e louvação, ou ainda, a história do fiel Job, que pela aposta do Senhor com o Diabo perdeu até a dignidade humana.

Os valores morais e ideológicos de Deus, na obra em questão, são particularizados e/ou egocêntricos, pois são regras de conduta que dirigem as ações do homem apenas para a louvação e alegria do Senhor, que pouco se importa (ausência de afeto) com seus fieis adoradores e servidores, estes podendo até matar em nome do Senhor - se assim Deus quiser - mostrando o controle arbitrário de Deus sobre os seres humanos, em que estes, na verdade, não têm o livre-arbítrio em sua totalidade idealizada (vontade livre de escolha, as decisões livres), pois são manipulados a fazer as vontades e preceitos divinos para não serem castigados.

Contudo, em Caim, nós vemos também que há uma igualdade entre o caráter de Deus e de suas criaturas, ou seja, há uma semelhança de Deus com os seres humanos (vice-versa), pois ambos possuem ligações com a maldade, crueldade. Deus, na narrativa de Saramago, pode ser considerado perverso, mas muitos dos personagens que representam seres humanos também podem ser considerados cruéis, pois cometem as maiores barbaridades em nome de Deus para fugir de um castigo divino, sendo assim, seres egocêntricos, egoístas. Saramago nos apresenta um Deus tão sujeito a falhas, maldades e injustiças como os seres humanos. Dessa forma, no romance de Saramago, nos é apresentado à figura de um Deus que possui características mais humanas que divinas/celestes.


CAIM

Caim pode ser considerado um personagem que representa a dualidade humana do bem e do mal. Apesar de ser um fraticida, de sofrer por isso, e de ter cometido alguns atos que do ponto de vista religioso são condenáveis, Caim, na narrativa saramaguiana, é um homem bom, demonstrando ter compaixão pelo seu próximo, assim, não individualista (como Deus). Isso é confirmado, por exemplo, no episódio da destruição de Sodoma, pois Caim ficou triste e revoltado com a morte de crianças inocentes e também por causa da frieza do Senhor diante disso, dessa forma, ele possui um sentido moral da existência.                                                                                                                                                
Apesar de assassino, caim é um homem intrinsecamente honesto, os dissolutos dias vividos em contubérnio com lilith, ainda que censuráveis do ponto de vista dos preconceitos burgueses, não foram bastantes para perverter o seu inato sentido moral da existência, haja vista o corajoso enfrentamento que tem mantido com deus, embora, forçoso é dizê-lo, o senhor nem de tal se tenha apercebido até hoje, salvo se se recorda a discussão que ambos travaram diante do cadáver ainda quente de abel. (SARAMAGO, 2009, p. 119).

Caim, através de sua insatisfação e de seus questionamentos, é visto como um personagem que quebra aquele status quo de passividade diante das inescrutáveis e/ou incompreensíveis ações divinas que não possuem outro propósito além do de mostrar o poder de Deus ou para exigir sacrifícios e provas de louvação e/ou amor absoluto para este.

Caim demonstra através de seus diálogos com outros personagens ou com o próprio Deus que não acredita no amor, na misericórdia e na bondade divina, por tudo o que presenciou em nome de Deus ou por ele, como as provas absurdas de devoção e fidelidade absolutas que Deus pedia aos seus fieis; as guerras; os assassinatos; as mortes de pessoas inocentes entre outras atrocidades para o bel-prazer da divindade suprema. Além disso, Caim sente ressentimento por não ser amado pelo Senhor, pela própria humanidade não ser amada por Deus, segundo ele: “Deus não nos ama.” (SARAMAGO, 2009, p. 113), sugerindo a típica necessidade humana de ter que se apegar a uma divindade para se sentir protegida e amada.

Caim assume-se como pecador, como um fraticida, contudo, sua perplexidade diante das atrocidades divinas não é porque ele se ache melhor que Deus ou porque ele queira um motivo para fugir de sua culpa por ter matado o irmão, mas porque ele sente indignação de como Deus, uma divindade suprema controladora da vida humana, possa ser tão egoísta e cruel para exigir tantas coisas absurdas - sem uma causa maior - aos seus fieis. E por isso, Caim se revolta contra essa moralidade divina egocêntrica, particular, e decide “matar” os planos de Deus de fazer uma nova civilização, e para isso, ele assume valores também particulares em nome de algo que para ele é maior, tendo que matar algumas pessoas, assumindo, assim, outras mortes, para que o plano de uma nova civilização não seja concretizado e mais uma vez Deus brinque, jogue e/ou manipule com a vida humana, igual fez com a primeira civilização, destruída pelo diluvio divino.

Quando as tartarugas, que tinham sido as últimas, se afastavam, lentas e compenetradas como lhes está na natureza, deus chamou, Noé, noé, por que não sais. Vindo do escuro interior da arca, caim apareceu no limiar da grande porta, Onde estão noé e os seus, perguntou o senhor, Por aí, mortos, respondeu caim, Mortos, como, mortos, porquê, Menos noé, que se afogou por sua livre vontade, aos outros matei-os eu, Como te atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces ter-te poupado a vida quando mataste abel, perguntou o senhor, Teria de chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face, Então a nova humanidade que eu tinha anunciado, Houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame como tu, lembra-te das crianças de sodoma. Houve um grande silêncio. [...] (SARAMAGO, 2009, p.142).


Escrita

Através dos trechos da obra, citados nessa resenha, nós podemos ver (ou conhecer) algumas das características mais marcantes da escrita de José Saramago: a utilização de frases (ou períodos) longos, o uso da pontuação de maneira diferente da convencional (onde se esperaria um ponto final, por exemplo, ele utiliza uma vírgula), a inserção dos diálogos das personagens dentro dos parágrafos sem a utilização de travessões, aspas ou outras marcas tradicionais de indicação de diálogos. O nome dos personagens (e outros nomes próprios) são escritos com letras minúsculas. O escritor, em Caim, só grafa com letra inicial maiúscula a palavra que indica a mudança de posicionamento verbal dos personagens, isto é, a palavra que indica a mudança de ''fala'' (ou de ''pensamento'') de um personagem por outro na narrativa. Dessa forma, sabendo disso, não tem como nós nos confundirmos durante a leitura.

***

O livro é muito bom, recomendo muito para quem gosta de uma leitura/história instigante e divertida, sim, você leu essa palavra: Divertida. Ao contrário de outros livros de Saramago em que a leitura pode ser considerada mais complexa  - difícil -, como, por exemplo, em O Ensaio Sobre a Cegueira, a leitura deCaim é fluida, de fácil compreensão, além  de muito agradável, pelo menos para mim.

REFERÊNCIAS


SARAMAGO, José. Caim. São Paulo, Cia das Letras, 2009.


Lizandra Souza.

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