2.26.2013

SOCORRO: É A POLICIA

Tempo de terror no Rosana

Por Spensy Pimentel
O momento da tragédia já ganhou várias versões, que correm pelo Jardim Rosana, bairro da região do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Eram pouco mais de 11 da noite e o dono do bar já tentava despedir a freguesia: “Gente, está na hora de fechar”. Havia semanas circulavam na região as ameaças feitas por policiais de que “coisas ruins poderiam acontecer”. Na prática, avisos como esse são interpretados como um toque de recolher – e o fato é que o perigo era iminente.
Os assassinos encapuzados chegaram ao bar anunciando: “Polícia!” Nesse ponto, não há divergência entre as versões, até porque as ameaças ouvidas por várias pessoas no bairro eram claras: a ação era uma vingança por alguém do bairro, dois meses antes, ter gravado e enviado à TV Globo um vídeo do momento em que policiais abordavam e aparentemente executavam Paulo Batista do Nascimento, o Limão, morador daquela mesma rua. Cinco PMs foram presos em novembro, depois da exibição das imagens – eles haviam registrado no boletim de ocorrência ter encontrado o corpo já sem vida em uma viela.
Um protesto pela paz
Um protesto pela paz

Há quem diga que, ao ouvir anúncio de que se tratava de policiais, Laércio, que estava próximo à porta do bar, gritou a resposta chave: “Calma, aqui só tem trabalhador!”
Só depois de ter levado um primeiro tiro na perna, a despeito de sua advertência de que não havia “vagabundos” no recinto, Laércio teria xingado: “Seus filhos da p…”. Outros dizem que ele os chamou de “covardes”Há também gente que estava no bar, no momento do crime, que conta que não houve tempo de dizer nada.
Mas há quem lembre que, depois do grito “Polícia”, Laércio teria dito: “Não tenho medo de vocês, seus covardes”. Ou foi como se dissesse: na sequência, virou-lhes as costas – tanto é que tomou a coronhada de uma escopeta na nuca, antes de ser executado com vários tiros que o atingiram de costas, como me dizem. “Ele morreu como um homem, eles mataram como covardes”, emenda o narrador que, como quase todos os entrevistados, pede que seu nome não seja revelado.
Até o momento eram seis os policiais militares presos pela chacina que vitimou sete pessoas no dia 4 de janeiro, num bar na rua Reverendo Peixoto da Silva, no bairro do Jardim Rosana, zona Sul de São Paulo. A investigação policial e a Justiça vão compor sua própria versão sobre esse episódio trágico em que morreu o protagonista das histórias acima, o DJ Lah, Laércio de Souza Grimas, 33 anos, integrante do grupo Conexão do Morro. Mas poucos no Rosana acreditam que o crime será esclarecido até o fim.
Já se sabe que não é verdadeira a primeira versão que circulou, a de que teria sido Laércio o autor do vídeo exibido na Globo. Os moradores do bairro insistem: o responsável pela denúncia saiu dali logo depois de ter registrado as imagens. “Chegaram a dizer que o DJ tinha dito por aí que ele teria gravado. Isso não é verdade, estão querendo usá-lo como bode expiatório”, explica-me um deles.
A indignação é geral. Covardia é a palavra mais ouvida para descrever o que aconteceu. Todos os que morreram no bar eram “trabalhadores”, termo que na periferia paulistana significa o oposto de tudo o que deveria ser alvo da polícia: crime, vagabundagem, “vida fácil”. Quem vive ali encara um cotidiano árduo, feito de ocupações cansativas e mal pagas, além de horas de transporte público para chegar ao emprego, que frequentemente fica “da ponte pra lá”.
Não há como determinar se a expressão foi forjada pela canção dos Racionais MC’s ou se foram os rappers que captaram o termo que já circulava. Mas o fato é que para quase todos ali o mundo paulistano se divide entre os que vivem de um lado ou de outro das pontes do rio Pinheiros.
“Tá pensando que você está nos Jardins?”, alguém se lembra de ter ouvido de um policial durante um enquadro, depois de ter cobrado uma abordagem mais respeitosa. Os Jardins – uma das regiões mais ricas de São Paulo – ficam, claro, do outro lado da ponte.
Há muito o rap denuncia esses maus tratos, que não raro se convertem em violência mortal. O protesto contra a violência policial é a marca do Conexão do Morro desde que o grupo do DJ Lah começou a se destacar na cena paulistana, no final dos anos 90.
single de estreia do trio, que veio à luz por volta de 1998, se chamava, justamente, “Saiam da mira dos tiras”. “São eles é que forçam, são eles que atiram/ Reze pra sobreviver”, completava o refrão. Laércio tinha pouco mais de 18 anos nessa época, e foi também nesse período que nasceu sua primeira filha.
Rap, amor e pés de pato
O DJ nasceu, cresceu e morreu no Jardim Rosana. A mulher – que começou a namorar quando ambos ainda eram adolescentes – e os quatro filhos que teve com ela moram, até hoje, na casa onde ele cresceu com os três irmãos e viveu o grande trauma da família, a morte precoce da mãe, Aparecida, em 1992, com 35 anos. De saúde frágil, ela sempre pedia ao filho mais velho, Washington, como ele conta: “Quando eu morrer, você me promete que vai ajudar a cuidar de seus irmãos?”
Foi também com a mãe que Laércio aprendeu a se dedicar à comunidade. Os anos 80 eram o tempo de “Pânico na Zona Sul” – título de um dos primeiros raps do Racionais MC’s, que chamava atenção para o terror causado pelos pés-de-pato, matadores que transitavam entre a polícia e a defesa de estabelecimentos comerciais na região.
“Justiceiros são chamados por eles mesmos/ Matam, humilham e dão tiros a esmo/ E a polícia não demonstra sequer vontade/ De resolver ou apurar a verdade/ Pois simplesmente é conveniente/ Por que ajudariam se nos julgam delinquentes?”
A família de Laércio chegou ao Jardim Rosana nos anos 70, vinda do interior da Bahia, e a mãe dele logo se tornou frequentadora assídua da Igreja Católica, à época fortemente alinhada com os princípios da Teologia da Libertação. Um dos principais feitos da comunidade foi criar uma associação esportiva, a Juacris (originalmente, Juventude Unida no Amor a Cristo), que hoje tem quadra coberta e espaço para reuniões. Junto com várias outras entidades da região, o grupo agora busca mobilizar, mais uma vez, a comunidade para reagir à nova onda de violência na região.
Uma das primeiras conquistas dos moradores, a creche que fica ao lado da Juacris, bem perto do local da chacina de janeiro, recebeu, em 1990, o nome de dois jovens assassinados ali, Paulo e Admar.
Também foi à base do mutirão que a comunidade começou a construir o que hoje é a Igreja de Santa Isabel, mesmo local onde foi rezada a missa de um mês pela chacina de 4 de janeiro. Na celebração, o padre leu o trecho dos Evangelhos em que Jesus exorciza um homem possuído pelo demônio que se autodenominava Legião, lançando as entidades sobre uma manada de porcos que se encontrava ali perto. Os animais se jogam de um despenhadeiro, morrendo todos, enquanto o homem endemoninhado aparece curado.
A referência ecoa as imagens grotescas que o rap da Zona Sul relaciona aos maus policiais, desde os anos 90, chamando-os de ratos, vermes, cães, ou mesmo porcos. Mas, nada mais distante de uma provocação, num momento de terror como o atual.
“Se Jesus tem poder até sobre os espíritos maus, então vamos esperar e ter fé, pois a Justiça dele será feita”, pregou o padre, preocupado em pedir paciência ao rebanho. As famílias das vítimas têm contado com a caridade da paróquia para sobreviver – são longínquas, ainda, as perspectivas de indenização por esse crime que pode ter sido cometido por agentes do Estado, pois é preciso esperar a conclusão dos inquéritos e o julgamento dos réus.
É grande o temor de retaliações por parte do grupo que executou a chacina em janeiro. Não é só a persistência das ameaças que aterroriza o bairro. Foram pelo menos 14 os autores do crime – alguns falam em dezenas de integrantes desse grupo –, e só seis policiais foram presos temporariamente até agora, sendo que parte desse grupo não é acusada de participação direta nas mortes. “Mesmo que eles sejam condenados, como vamos ficar tranquilos? Cadeia para polícia é suave, não é igual para nós… Quem me garante que eles não sairão futuramente para nos caçar na rua?”, pondera um morador que sobreviveu a um dos ataques recentes no bairro.
Sim, porque a história não se resume à ação dos policiais que foi filmada e a chacina de janeiro. Ao todo, houve pelo menos outros seis ataques desde outubro na região, com modus operandi semelhante, às vezes à luz do dia e com os criminosos de rosto descoberto, segundo fontes ouvidas pela Agência Pública – e por medo de retaliação, testemunhas têm deixado o bairro. Em alguns casos, a condição de policial dos criminosos foi mal disfarçada, de acordo com as testemunhas. Há, ainda, a desconfiança de que as pessoas entrevistadas pela televisão após os primeiros episódios em outubro se tornaram visadas.
Os elementos apurados pela reportagem se somam a indícios já apresentados pela Secretaria de Segurança Pública após a prisão dos seis acusados. Era comum, por exemplo, dizem as testemunhas, que assim como ocorreu no dia 4 de janeiro, equipes de perícia aparecessem logo após o crime para alterar a cena do crime e recolher cápsulas deflagradas.
“O governador vai à televisão e diz que ‘vão investigar’. Investigar o quê? As pessoas sabem que há policiais envolvidos”, diz um morador da região. “As crianças da periferia só vão passar a respeitar os policiais quando não souberem que eles bateram nos pais delas, ou atiraram em um conhecido”, emenda outro. “Quem mata pai de família, para mim, é bandido.”

Ferido por uma bala, menino levado pela polícia chegou ao hospital com seis tiros

Não houve quem não se solidarizasse no bairro com as famílias dos jovens trabalhadores mortos. Cinco das sete vítimas deixaram órfãos, dizem-me. “Moro aqui há 40 anos, e nunca tinha vivido algo assim” – eis uma frase comum de se ouvir pelo Rosana atualmente.
Isso em uma comunidade acostumada a histórias de confrontos entre policiais e traficantes e que têm viva na memória os horrores das execuções promovidas pelos pés-de-pato entre os anos 80 e 90, bem como as mortes banais das guerras entre bairros até o final dos anos 90, quando o crime organizado instaurou sua pax na região, estabelecendo que autores de assassinatos inexplicados sofreriam represálias.
Mas as últimas mortes na região afrontam pelo absurdo. Um dos detalhes que mais tem indignado as pessoas diz respeito à morte de Bruno Cassiano, de 17 anos, a vítima mais nova do ataque de 4 de janeiro. Atingido com um tiro, ele chegou a ser socorrido por policiais, a pedido de uma moradora que o abrigara. No hospital, contudo, segundo os moradores, o rapaz chegou com seis tiros e acabou morrendo.
Coincidentemente, na segunda-feira após o episódio do Rosana, dia 7 de janeiro, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo publicou uma norma estabelecendo que policiais não devem socorrer vitimas de crimes violentos nas viaturas, e sim avisar os serviços de emergência competentes, bem como as equipes de perícia. A resolução também acatou uma reivindicação antiga dos movimentos de direitos humanos, determinando que os episódios com mortes durante supostos confrontos com policiais sejam registradas não mais como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, mas como “lesão corporal ou morte decorrente de intervenção policial”.

Férias na praia, uma nova sorveteria: projetos abatidos

Uma das vítimas da chacina de 4 de janeiro, Ricardo, estava no bar comemorando com amigo as férias com a família para a praia que começariam na manhã seguinte. “Amanhã, vou voltar a ser criança, vou empinar pipa com meus filhos”, disse a um amigo, pouco antes de morrer.
Laércio, por sua vez, preparava-se para inaugurar uma sorveteria – a Raspadinha João e Maria – na semana seguinte. Segundo amigos, ele tinha ido até o bar porque pagara a um grafiteiro para desenhar na porta da sorveteria uma imagem de São Jorge, mas o serviço não fora executado. O jovem que fora contratado dispôs-se a devolver o dinheiro, e o encontro tinha sido marcado ali.
Tido como um sujeito caseiro e boa gente, o DJ se destacava na região pela camaradagem. Além de participar de ações voluntárias, como quermesses e eventos para arrecadação de donativos para os mais pobres, ele tinha como única fonte de renda fixa, nos últimos tempos, o que ganhava na colaboração com projetos da ONG Capão Cidadão. Ali, ele ministrava oficinas de DJ para crianças e jovens e ajudava na exibição de filmes educativos em escolas públicas em Taboão da Serra.
Era comum tocar de graça em festas de amigos. “A gente insistia com ele para que pensasse melhor na carreira pessoal de DJ, que não ficasse só no trabalho com o grupo. Ele falava que ia tomar providências, mas sempre acabava se envolvendo com algum projeto coletivo e adiando esses planos”, conta o irmão mais velho, Washington.
“Levaram embora um cara muito especial. Ele era um verdadeiro gentleman, um cavalheiro. Eu aprendi muito a me comportar com as pessoas observando como ele agia com todos que o cercavam. O bairro todo chorou por ele”, conta o parceiro Cobra, que, junto com o também MC Cachorrão formava o Conexão do Morro.
No último dia 10, um domingo de festa marcou a inauguração da sorveteria de Laércio, com direito a cama elástica, piscina de bolinhas e distribuição de doces e brinquedos para as crianças da vizinhança. Na parede interna do estabelecimento, um grafite do DJ Lah, abençoando o evento, planejado para honrar a memória do artista-ativista.
Tudo aconteceu à luz do dia, a partir das nove da manhã. Realizar qualquer evento noturno na região, hoje, implica encarar o perigo dos ataques, e até uma cerveja com os amigos no bar da esquina de casa pode representar risco de vida. “É como se vivêssemos sob uma ditadura”, compara um morador. “Por que não podemos andar tranquilos na nossa comunidade de madrugada? Vai lá nos Jardins, na Vila Madalena, às três ou quatro da manhã. Está cheio de boyna rua enchendo a cara, sem medo nenhum.”

Mais para Luther King do que para Malcom X

Dois ícones do movimento negro norte-americano dos anos 60 fornecem modelos opostos aos integrantes do Hip Hop. Há quem siga as ideias do muçulmano Malcolm X, associado à luta aberta contra o sistema, “por qualquer meio necessário”. E há quem se identifique com o pacifismo do pastor Martin Luther King.
Para o rapper Cobra, o DJ Lah, por sua personalidade, sempre esteve mais para Luther King do que para Malcolm X, apesar de também admirar este último. “Ele pregava a não violência, sempre”, conta o parceiro.
Em casa, após a morte da mãe, Laércio também se viu diante de dois caminhos opostos. O irmão mais velho, Washington, é hoje professor universitário, o único da família que buscou um diploma de ensino superior. Outro dos irmãos, Wendro, nos anos 80, era conhecido como o DJ Colour e atuava junto ao grupo feminino The Night Girls, então famoso na Zona Sul. Foi com Colour que Lah aprendeu o ofício que seguiria pelo resto da vida.
Seis anos mais velho, Wendro foi um modelo, por um tempo, antes de se tornar uma referência a ser evitada. Estigmatizado depois de uma primeira passagem pela polícia, que dificultou a obtenção de oportunidades de emprego, ele foi tentado pela “vida fácil” do crime. Hoje, cumpre pena em outro estado, após envolvimento em um roubo.
Assim como tinha um irmão na cadeia, Laércio também tinha parentes que são policiais. “Hoje, na periferia de São Paulo, é quase inescapável ter alguma relação com alguém que passou pelo sistema carcerário”, diz o sociólogo Rafael Godoi, pesquisador da Universidade de São Paulo que se dedica, nos últimos anos, a acompanhar a problemática vivida pelas famílias de detentos. “O parente, muitas vezes, acaba sendo punido sem nunca ter cometido nenhum delito. Ele é quase sempre maltratado, como se tivesse alguma responsabilidade pelo crime que o outro cometeu.”
Godoi alerta, ainda, para o fato de que os egressos, além de permanecerem estigmatizados e de serem frequentemente extorquidos por policiais, têm corrido risco de vida. “Em casos recentes, há relatos de que os grupos de extermínio procuravam gente com marcas de passagem pelo sistema carcerário, como tatuagens”, conta ele. “É como se a passagem pelo sistema fosse, automaticamente, uma justificativa para o assassinato.”

O deficiente visual foi executado à queima roupa

Um episódio ocorrido na véspera da chacina de 4 de janeiro, no Jardim Rosana, confirma a observação ad absurdum. Segundo as testemunhas, um deficiente visual de 27 anos, Rodrigo Barbosa, foi abordado por homens de roupa civil – sem capuz – que se identificaram como policiais. O fato também se deu por volta das onze da noite, na frente da casa de Rodrigo.
Ele perdera a visão há nove anos, após perseguição policial, e foi preso, à época, por envolvimento em um assalto. Segundo moradores, os PMs questionaram se ele ou seu acompanhante “tinham passagem”, e ele respondeu que sim, certamente imaginando que sua condição de deficiente era o suficiente para coibir qualquer violência. Foi morto logo em seguida, com um tiro na nuca.
“Você fica com medo de sair de casa. Como vai confiar na polícia? Como vai confiar no Estado?”, questiona um sobrevivente do ataque de 4 de janeiro. Ele perdeu amigos no crime e diz estar vivendo à base de remédios. “Tinha gente que tinha chegado ali fazia dez minutos. Era um bar de família. Um menino tinha acabado de chegar do trabalho e morreu com uma marmita nas costas, dentro da mochila.”
A viúva de uma das vítimas lembra com tristeza: “Ele tinha acabado de chegar a casa, me pediu para esquentar a comida e foi até o bar tomar uma para ‘abrir o apetite’. Não deu cinco minutos e eu ouvi os estrondos, nem sabia se eram rojões ou o quê. Quando cheguei lá, estava na porta. Morreu bem do lado do DJ Lah”. A filha de outra vítima não tem forças nem para ir à escola: era o pai que a levava e buscava todos os dias, e as lembranças a imobilizam. Alguns parentes de crimes ocorridos em outubro só agora estão começando a conseguir voltar a trabalhar e sair de casa.

Viver no gueto, vichii…

A carreira do Conexão do Morro experimentava um momento de pausa nos últimos dois anos, depois de o grupo ter rodado o Brasil entre 2009 e 2010 com a turnê Big Ben Bang Johnson, capitaneada por Mano Brown e Ice Blue, do Racionais MC’s, e com a participação de integrantes dos grupos RZO e Rosana Bronx – outro coletivo de rappers do Jardim Rosana que, em 14 de outubro, perdeu um de seus integrantes, Daniel Gabu, em um dos primeiros ataques com características semelhantes às da chacina de 4 de janeiro – na ocasião, foi morto mais um jovem, Pedro Thiago Souza, de 20 anos.
Antes disso, o Conexão já havia lançado um single, dois álbuns, mais um disco ao vivo e um DVD. Dos títulos sobre os quais conseguiram ter algum controle, os integrantes do grupo calculam que pelo menos 150 mil cópias foram vendidas. E continuava a fazer sucesso com canções do início da carreira, como “Super Billy” – do álbum Viver no gueto, vichiii…, de 2000 –, faixa ainda muito tocada nas grandes rádios de rap e sempre pedida nos shows Brasil afora.
Era antiga a proximidade dos integrantes do Conexão com o grupo mais popular de rap do país, o Racionais MC’s. No primeiro clipe do grupo de Lah, gravado entre 1999 e 2000, lá estava Mano Brown pilotando um carrão estilo lowrider (com suspensão modificada). O vídeo era dirigido por Maurício Eça, premiado à época por obras-primas do rap nacional, como o clipe de “Diário de um Detento”, do Racionais. Logo na sequência, os integrantes do Conexão participaram ativamente de um documentário dirigido por Maurício, sua irmã Tereza Eça e Cobra. Chamava-se “Universo Paralelo” o filme, inédito na internet e que inclui um depoimento de Laércio.
Maurício se lembra de ter conversado pela internet com Laércio, perto do fim do ano. “Foi um choque o que aconteceu. A gente nunca acha que vai acontecer uma coisa dessas com alguém que a gente conhece”, diz o cineasta. Atualmente, está em produção a sequencia do documentário de 2004: “Vamos aproveitar para homenagear o Lah. A violência hoje na periferia está diferente, talvez muito pior, porque parece mais invisível”.
O Conexão chegou a fazer 30 shows por mês, no auge da repercussão de seu primeiro álbum. Nos últimos anos, abriu apresentações de artistas consagrados do rap mundial, como Wu-Tang Clan, Naughty by Nature e Brand Nubians. Chegou a tocar para um público de mais de 20 mil pessoas, em festivais em São Paulo.
Ao mesmo tempo, todos buscavam iniciar carreiras paralelas. Laércio inauguraria sua sorveteria, Cobra estagia em restaurantes de São Paulo para aprender o ofício de cozinheiro. “As pessoas pensam que, pelo nome que temos, estamos ricos. Conseguimos sobreviver da música, simplesmente”, diz ele.
“Eu sentia necessidade de fazer algo que fosse considerado trabalho”, conta Cobra. “Claro que, também como músicos, somos trabalhadores, eu faço parte dos brasileiros que contribuem para o governo arrecadar aquele ‘R$ 1 trilhão’”, emenda o rapper.
A ideia era “dar um breque”, como diz Cobra, na carreira do trio, depois de quase 15 anos de intensa convivência. “A gente repartia tudo igualmente, até dividia o mesmo quarto nos hotéis, éramos como irmãos. Agora, vai ser difícil pensar em um dia retomar o grupo”, conta ele.
Ele e Cachorrão preparam, atualmente, projetos solo no rap. Laércio, lembra o amigo, era quem tinha as melhores possibilidades de engatar uma carreira profissional independente do grupo. “A gente dizia a ele, você não depende do grupo, pode conseguir se firmar numa carreira solo como DJ, dar som em festas.”
“Nós, da família, não tínhamos ideia de como ele era conhecido. Acho que nem ele imaginava”, conta o irmão, Washington.
O rapper Cobra conta que, poucas semanas antes da tragédia de 4 de janeiro, Laércio lhe relatou um fato sui generis: “Ele me disse que, nos últimos tempos, estava tendo sonhos lindos com a mãe dele, coisa que nunca tinha lhe acontecido antes”.
“No caixão, ele trazia um sorriso nos lábios, isso me chamou a atenção”, conta o homem que foi parceiro de Laércio por quase metade de sua vida. “O que conforta meu coração é pensar que esse sorriso é sinal de que ele foi se encontrar com a mãe, que ele agora está com ela lá, que ela pegou na mão dele quando ele fez a passagem para o outro lado.”
DJ Lah não viveu para comemorar o fato de que, no dia 31 de janeiro, o Ministério do Trabalho atualizou sua Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), incluindo na lista a profissão de disc jockey, DJ, ou discotecário. O fato foi celebrado como importante passo no reconhecimento desses profissionais, possibilitando o acesso a direitos básicos, como registro em carteira e benefícios da Previdência Social.

Investigações lacradas e a volta do “pânico na zona sul”

A reportagem da Agência Pública procurou, junto à Secretaria de Segurança Pública, informações adicionais sobre novas prisões e perguntou se as evidências de ligações entre o caso de 4 de janeiro e os ataques anteriores na região estão sendo investigadas. A SSP se limitou a responder que “todas as possibilidades” estão sendo analisadas e que o delegado responsável pelo caso, Luiz Fernando Lopes Teixeira, da 3ª Delegacia do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), prefere não dar entrevistas, por enquanto, para não atrapalhar os trabalhos.
Mais de um mês após a chacina – e semanas depois das prisões dos seis acusados, em 24 de janeiro –, um jovem do bairro ouviu de um PM, durante uma abordagem de rotina: “Fala para o pessoal ficar esperto. Estamos na rua de novo. Já levamos sete, e vamos levar 30 daqui”. Outra pessoa relata que um conhecido ouviu de policiais, em outra ocasião: “Você mora no Rosana? Se eu fosse você, mudaria de lá”. A continuidade das ameaças já foi relatada a outros jornalistas, mas não há notícias de medidas a esse respeito por parte da Secretaria de Segurança Pública.
A Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Assembleia Legislativa de São Paulo, presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT) vem acompanhando os casos ocorridos na Zona Sul, mas, segundo o deputado, o governo estadual tem respondido com evasivas aos pedidos de informação.
“Estamos pedindo esclarecimentos, mas até agora nada. Na Zona Sul, está todo o mundo em pânico, porque a sensação que se tem é que a matança está liberada”, diz o parlamentar. E denuncia: “Temos gente sendo presa sem culpa formada, gente torturada, sendo acusada de ligação com o crime de forma absurda. Em outras regiões, parece que está um pouco melhor, mas lá o descontrole é impressionante”.
Diante da falta de informações oficiais, os moradores da região, direta ou indiretamente afetados pelos ataques, tecem suas hipóteses sobre os crimes. “Grupo de extermínio” é o termo mais citado em reportagens e consta também das primeiras informações divulgadas pelo governo paulista a respeito das seis prisões de acusados pela chacina, todos policiais do 37º Batalhão da PM, no Capão Redondo.
Mas há quem desconfie de que algo mais está acontecendo. “Para mim, estão querendo tomar a quebrada”, arrisca um sobrevivente de um dos ataques que ocorreram na região desde outubro – ele se mudou dali logo em seguida. “Oportunismo” é outro termo muito usado: remanescentes dos pés-de-pato, ex-policiais expulsos da corporação, policiais corruptos ou mesmo fugitivos de outros estados com relação com grupos de extermínio no Nordeste poderiam estar se aproveitando da confusão imperante na periferia atualmente para afastar a concorrência do crime organizado ou de outros atores no controle de negócios ilegais, ou mesmo legais.
O raciocínio levaria a pensar em um processo de formação de milícias, como afirma, em nota enviada à Agência Pública, o grupo Mães de Maio, que reúne familiares de vítimas da violência em São Paulo: “Junto com o terror dos grupos exterminadores, vem também a oferta de serviços de segurança particular, e ano passado houve um avanço significativo de militares em cargos legislativos. Isso se assemelha ao processo de milicialização ocorrido no Rio de Janeiro”.
Mas há quem não considere adequado falar em milícias no contexto paulistano. “Não acredito nisso. O que estamos vendo parece ser algo oficial, feito a partir dos batalhões. Ouvimos falar até que estão cometendo esses delitos em folgas dadas oficialmente”, diz o deputado Adriano Diogo.
Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais – São Paulo, diz que não estão nada claras as razões da mortandade nos últimos meses, mas que é preciso observar que o problema aconteceu em todo o estado. “Foi uma quantidade muito grande de gente morrendo, num período muito curto de tempo, numa onda de violência com características muito semelhantes, espalhada por todo o estado”, diagnostica ele, que está em contato com movimentos sociais das áreas vulneráveis. “O que temos aventado é que uma briga maior está acontecendo, e a população é que está pagando.”
“Para mim, saíram matando aleatoriamente para engordar as estatísticas”, arrisca um morador da Zona Sul. “Isso aí cria a falsa impressão de que a polícia está ganhando a guerra. Não ia pegar bem para eles se aparecesse pela imprensa que o PCC matou 50 policiais, e só 10 criminosos foram mortos. O problema é que a matança está se voltando contra eles.”
O ano de 2012 em São Paulo foi encerrado com um balanço sinistro. Em ações supostamente ordenadas pelo PCC, morreram 94 policiais militares, sendo 80 fora de serviço. Uma série de ataques com características semelhantes aos registrados no Jardim Rosana, por outro lado, colaborou para que o número de pessoas assassinadas no estado chegasse, no 4º trimestre de 2012, a 1667, um índice 35,8% superior ao registrado no trimestre anterior (1227 mortes), e 41,5% superior ao mesmo trimestre de 2011 (1178). O número de mortos em confrontos com a PM também aumentou 25,1% entre 2011 e 2012 – foram 547 casos no ano passado.
A onda de violência que se ergueu na primavera de 2012 faz lembrar maio de 2006, quando logo após uma série de ataques do PCC a agentes da segurança pública, cerca de 500 pessoas foram assassinadas em ações de policiais e grupos de extermínio. “O ano de 2012, segundo nossas estatísticas vivas e autônomas, conferidas com diversas fontes, foi o ano que os agentes do estado de São Paulo mais mataram civis desde 2000. Mais até do que o ano de 2006, muito embora lá tenham sido mais de 500 mortes em apenas 10 dias – o maior massacre da história contemporânea no Brasil”, afirma a nota do movimento Mães de Maio.

A segunda passeata pela paz em menos de um mês

As entidades da região do Campo Limpo e Capão Redondo organizaram neste domingo 24 a segunda passeata em pouco mais de um mês pedindo o fim da violência e a apuração dos casos recentes de chacinas na região. Políticos de diferentes partidos e movimentos sociais de várias tonalidades têm se unido em torno da causa: do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto à Força Sindical, passando por grupos ligados aos direitos humanos e à cultura.
Para as famílias é o momento de realizar a difícil tarefa de retomar a vida. Em meio à passeata, mais histórias tristes. “Eu sou socorrista do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Mesmo assim, no momento em que vi meu filho baleado, entrei em choque, não consegui ajudá-lo, fiquei paralisada”, contava, durante a manifestação, a mãe de uma das vítimas recentes. Socorrido pela polícia, o menino morreu de hemorragia no Hospital Municipal do Campo Limpo. “E uma vizinha ainda me contava que uma médica de lá dizia: ‘Olha aí, estão chegando os bandidos’.”
O pai de outra vítima conta que ficou indignado quando viu o nome de seu filho constando de uma lista da Secretaria de Segurança Pública a respeito dos mortos na onda de violência em outubro, como “sem registro profissional” e “com antecedentes criminais”. Ele agora é conhecido por circular com a carteira de trabalho do filho morto no bolso, mostrando-a aonde vá para que não restem dúvidas que maculem sua memória. A revolta que está armada na Zona Sul, hoje, é dos trabalhadores. “Vamos lutar por nossos direitos, porque o que a gente percebe, é que, se deixar pelo governo, vai ficar por isso mesmo”, declara, indignada, a tia de uma das vítimas.
Nesta segunda-feira 25 expira o prazo da prisão temporária dos seis presos pelo crime até o momento. Segundo a SSP, foi pedida a prorrogação da prisão, mas,até o momento, a Justiça não divulgou a resposta a esse pedido. Neste domingo, durante a passeata pela paz, o deputado Adriano Diogo disse ter tido informações de que pelo menos dois PMs poderiam ser soltos.

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