"É surpreendente, isto sim, que a Presidente do Conselho
Nacional de Justiça vá à imprensa, não para admoestar magistrados que
ultrapassam a linha do bom senso em suas atitudes e decisões, mas para
se dirigir com dedo em riste ao Presidente do Senado Federal", diz o
ex-ministro da Justiça, Eugênio Aragão; para ele, a ministra Cármen
Lúcia errou ao sair em defesa do juiz que ordenou a batida policial no
Senado Federal
A liturgia do cargo público não é mero exercício de
vaidade e de ego. Ela é um marco do republicanismo, que determina ser o
exercício de função pública uma atividade impessoal. Quem está investido
nela não deve a enxergar como um galardão adquirido em razão de
qualidades pessoais, mas precisamente porque foi chamado a servir ao
público. A liturgia lhe serve de proteção, para qualificar a função e
não a si.
Juízes, por exemplo, lidam diariamente com conflitos. Ao
decidirem sobre uma causa, tornam um dos litigantes vencedor e outro
perdedor. Aquilo que pode significar, para o magistrado, apenas um
número em sua estatística de produção mensal, na alma do perdedor pode
ser uma catástrofe pessoal. O que o leva a não ir às vias de fato com
aquele que vê como seu malfeitor? É a aura da liturgia que inspira o
respeito necessário a criar uma barreira de blindagem relativa.
Quando, porém, autoridades se comportam como
moleques, como moleques serão tratadas. Se adotarem discurso e
comportamento de botequim, não poderão se queixar quando começarem a
voar garrafas e sopapos.
Temos assistido quase diariamente comportamentos fora do script
litúrgico por parte de magistrados, a começar por alguns do andar de
cima. Têm sido muito cúpidos em dar entrevistas, falar fora dos autos,
opinar sobre tudo e todos. Têm adotado posturas controvertidas e, por
vezes, até mesmo político-partidárias em discursos públicos, seja nos
tribunais ou fora deles.
A desfaçatez de mudar ostensivamente de opinião,
conforme o momento político e o alvo das ações jurisdicionais, chega a
causar náusea àqueles que assistem a esse circo quase cotidiano. Esse
tipo de atitude cai bem em conversa de bar, onde a inconsequência regada
a álcool tudo permite, tudo perdoa, mas não no exercício de função
pública.
Dos magistrados se espera autocontenção e não
exibicionismo. Infelizmente há, entre nós, magistrado que se fez notório
e não é um bom exemplo de autocontenção.
A despeito de gozar de exclusividade para cuidar
só de um universo de processos supostamente conexos, decretada por seu
tribunal, aparentemente em virtude de sobrecarga que esse universo
representa, esse juiz tem viajado Brasil e mundo afora para dar
palestras, receber prêmio de bom-mocismo e participar de talk-shows.
Tem tido tempo de sobra para difundir seu moralismo
obsessivo sobre os fins da persecução penal de “corruptos”, a ponto de
virar super-herói de uma parte desorientada da sociedade, cuja bronca
turva sua visão sobre o crítico momento político vivido pelo País. Para
fugir das garrafadas e dos sopapos, anda com séquito de seguranças e
deles vive cercado no trabalho e em casa. Torna-se, assim, personagem
controvertido, agente de disseminação de incertezas, ao invés de se
limitar a oferecer segurança jurídica a seus jurisdicionados.
Isso não é vida de juiz. Mas, ainda que não faça
sentido, no sadio senso comum, essa imagem distorcida que se oferece de
um magistrado, tem sido exemplo para muitos outros de sua corporação,
que também querem compartilhar desse espaço de afago público a egos
jurisdicionais.
Para tanto, assinam até abaixo-assinado de defesa do
colega premiado de bom-mocismo, quando se torna alvo de críticas mais ou
menos acerbas. Alguns foram às manifestações “contra a corrupção”
convocadas para derrubar governo, manifestam-se cheio de emoção em
perfis de Facebook e, depois, deram provimento liminar para impedir posse de ministro de estado.
Num ambiente desses, a reação de veemente indignação pública do Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, contra o “jabaculê” determinado nas dependências daquela Casa Legislativa por juiz de primeiro grau de Brasília, não deve causar surpresa.
Expressou nada mais que seu protesto institucional contra
aquilo que entendeu ser um abuso de magistrado incompetente para tanto,
pois o alvo da diligência da polícia judiciária eram agentes da polícia
legislativa que tinham procedido a varreduras eletromagnéticas em locais
de trabalho e residência de Senadores que seriam alvos de investigação
criminal.
Essas varreduras tinham sido determinadas pela
administração do Senado a pedido dos próprios Senadores alvejados. Se as
varreduras foram pedidas por estes e se entenda que elas constituem
embaraço a justiça, em tese são os Senadores objeto da escuta ambiental
que deveriam ser questionados sobre a iniciativa. Isso, evidentemente,
atrairia a competência do foro por prerrogativa de função que é o
Supremo Tribunal Federal.
Tanto mais é surpreendente, isto sim, que a Presidente do
Conselho Nacional de Justiça vá à imprensa, não para admoestar
magistrados que ultrapassam a linha do bom senso em suas atitudes e
decisões, mas para se dirigir com dedo em riste ao Presidente do Senado
Federal, com discurso não menos surpreendente de se ver como
destinatária de cada crítica que se faça em tom mais ou menos
contundente a magistrados que procedem de forma, no mínimo,
controvertida.
O Conselho Nacional de Justiça é órgão de controle
externo da magistratura e tem, também, uma atuação correcional em
relação a estes. Não deve a dirigente do órgão se confundir com aqueles
que deve disciplinar, pois assim fazendo, reforça os desvios de conduta e
se porta feito porta-voz de uma corporação e não de uma instituição.
Não é mais novidade para ninguém que certos padrões de
comportamento de elevado risco para o governo das instituições no País
têm fundo corporativo. É mostrando os dentes que as mais poderosas
categorias do serviço público se alavancam para negociar vantagens.
Não é à toa que suas associações de classe são recebidas
nos gabinetes parlamentares e em órgãos de gestão financeira do
executivo com tapete vermelho, água gelada e café, enquanto aos
servidores comuns e mortais só resta a via da greve e das manifestações
públicas.
Não é à toa que essas categorias musculosas estão
no topo da cadeia alimentar do Estado brasileiro, recebendo ganhos
desproporcionalmente superiores a outros servidores que exercem suas
funções com igual ou maior denodo e risco pessoal que Suas Excelências.
Trata-se de grave distorção no sistema de remuneração do setor público
brasileiro, que em nada contribui para sua eficiência.
Ao invés de querer colocar limites aos reclamos do
Presidente do Senado Federal, a Senhora Presidente do CNJ faria melhor
em dar sua contribuição para a contenção de atitudes de risco dos
magistrados e buscar diálogo entre poderes para impor ordem ao sistema
remuneratório do serviço público federal.
O melhor caminho para isso seria a desvinculação de todos
os ganhos de servidores daqueles de atores que estão em posição de puxar
o trem e gastos com aumentos a seu favor: Presidente e Vice-Presidente
da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal
Federal, Deputados e Senadores.
Norma constitucional deveria vedar essa vinculação
e dispor que o teto do serviço público (excluídos o dos atores
políticos mencionados) fosse estabelecido pela Lei de Diretrizes
Orçamentárias e o ganho de cada categoria devesse guardar proporção, com
base nos vetores de risco e complexidade, com as demais, de sorte que
não se admita que um general de exército ganhe brutos em torno de 14.000
reais mensais, um professor titular de universidade receba cerca de
12.000 reais, quando um jovem membro do ministério público seja
remunerado com quase 30.000 reais no mesmo período.
Para articular essa revolução de ganhos, que seja capaz de
neutralizar condutas de risco de categorias por prestígio, é
fundamental o consenso entre os poderes da República, para constituir o
SINAGEPE – Sistema Nacional de Gestão de Pessoal, integrando os três
poderes e, aos poucos, as administrações estaduais e municipais através
de matriz única de ganhos, quiçá regionalizando-a e submetendo-a a um
fundo solidário de compensação de debilidades financeiras dos entes que
compõem a Federação.
Só assim se coloca cada agente do Estado em seu quadrado.
Zela-se pelo controle universal de gastos de pessoal e se moraliza a
atuação dos diversos atores nos três poderes de modo a se estabelecer,
no Brasil, pela primeira vez, um “Berufsbeamtentum”, um funcionalismo profissional como existe em outras economias mais fortes deste planeta.
* Eugênio José Guilherme de Aragão: Ex-Ministro da Justiça e Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
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