6.13.2019

A casa caiu para Moro.

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Feche os olhos e imagine por um instante que você detém os poderes de uma divindade. Você narra a partir de um ponto de vista privilegiado, que consegue discernir com clareza incomparável a complexidade da realidade e sua conexão com a normatividade. Suas decisões não fazem mais do que refletir os fatos de forma perfeita e acabada, sem qualquer nível de distorção: são simples meios de exteriorização de uma convicção que jamais conhece qualquer falibilidade. Essências são extraídas de coisas e pessoas com incomparável facilidade: realidade e alteridade se curvam diante de seu método de revelação da verdade.
Você é firme e obstinado em seu propósito. Enviado pelos céus e movido por energias extraídas do além, sempre mantém os olhos fixos no grande prêmio e jamais se desvia da trajetória inicialmente delineada. Para você, a magistratura é sacerdócio; uma profissão de fé conduzida pelo mais nobre dos propósitos: extirpar o mal do mundo, em nome do bem da sociedade.

Sua vida é cruzada. Seu ritual é uma prática continua de zelo pelo bem comum. Senhor de todas as certezas, lorde de todos os soldados, você faz do trabalho diário um empreendimento de enfrentamento constante contra o mal. Higienizar o país é seu destino e o triunfo, algo certo e inevitável. Palavra da salvação: toda honra e toda glória, agora e para sempre.
Você é objeto de louvor alheio. As pessoas ostentam seu nome em camisetas, adesivos e cartazes. Seu estandarte tremula de Norte a Sul do país: você é reconhecido como salvador e extrai energias de seus devotos. Obtém deles forças para intensificar ainda mais o combate contra o inimigo. Seu poder cresce a cada dia que passa. Ele faz de você uma divindade onipotente e, logo, capacitada para erradicar a maldade que aflora no mundo. Não é de se estranhar que você aprecie cada vez mais a atenção que lhe é dada. Opinião pública e opinião publicada parecem ter por você uma irrefreável paixão, absolutamente profunda e massivamente sedimentada. Você se sente tocado por ela e faz questão de manifestar seus sentimentos para todos que incansavelmente o bajulam. Nem por um instante sequer você considera que possa estar equivocado. Que alguém insinue que você atua como veículo para difusão de ódio é logicamente uma leviandade.
Mais do que um mero mortal, sua existência transcendeu o plano terreno: as regras aplicáveis aos demais não valem para você. Continuamente estimulado e jamais coibido, você saboreia a delícia do poder ilimitado que lhe é conferido. De fato, você acredita que um juiz pode voar: nem mesmo o céu é limite para a sua audácia. Sua vaidade atinge patamares gigantescos: nem mesmo a segurança de seus próprios devotos parece lhe importar. Você propositalmente desconsidera qualquer limite normativo ou ético que possa comprometer o fim que lhe é caro. Utiliza sem o menor pudor os meios que lhe são conferidos para divulgar a irrecusável verdade de sua palavra. Caso venham a ocorrer, danos colaterais não serão nada mais do que perdas aceitáveis para a consecução da meta perseguida. Sua onisciência não permite qualquer vazio. O interesse público lhe é transparente: não pode ser nada além de um reflexo de sua própria vontade, que, ao final, subjugou completamente a realidade.
E assim seria, se ele, o limite, não promovesse uma alucinada reviravolta no roteiro previamente estabelecido por sua santidade. De forma inesperada, uma vertigem democrática surge no horizonte para usurpar o frágil solo moral no qual assentava sua autoridade, destruída como castelo de cartas por um relâmpago de legalidade.
Sua onipotência não era mais que delírio e devaneio. Complexo de grandeza e abuso de autoridade. Possível prática de crime e flagrante ilegalidade. O destino parece ter lhe pregado uma terrível peça: suas razões não são mais do que pálidos reflexos de uma contaminada subjetividade. Vitimada pela própria arrogância, cai por terra a insustentável identificação com o bem da sociedade. Tragédia até então impensável. Quem dizia que falava por todos falava por si mesmo: refém da própria e indevidamente atribuída discricionariedade.
Resta o lamento dramático e a entrega narrativa da própria dignidade, corroída pelo esforço impossível de legitimar uma indefensável ilegalidade. Esgotada sua serventia, desvelada a humanidade, resta a você o papel de cordeiro: passível de ser sacrificado no altar do próprio autoritarismo, ainda que mostre incredulidade diante dessa possibilidade. Talvez a sorte seja generosa e você apenas caia na obscuridade. Lamento de um Moro, Moro das lamentações. Equivocado até o final, ainda lhe escapa a ideia de impessoalidade. A Tragédia de um Moro é a morte metafórica de uma pseudodivindade. Que ela descanse em paz. A democracia agradece.

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