Diretor de Farmanguinhos escreve para todos da Fiocruz
Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2007.
À Comunidade de Manguinhos,
Apesar da forte indignação inicial com o conteúdo de matéria de O Globo de 25/02/07 sobre preços de "medicamentos" que Farmanguinhos compra, mantive igualmente forte desejo de manter a serenidade na resposta que por dever de gestor público devo dar ao O Globo e à sociedade em geral. Por isso levei 72 horas para me manifestar formalmente.
Inicialmente, gostaria de afirmar que, mesmo me orgulhando do trabalho e resultados que obtive nesse meu primeiro ano de gestão à frente de Farmanguinhos, não me considero imune a críticas e sugestões e sempre estarei pronto a retificar ou reparar meus atos quando eu estiver errado ou tiver prejudicado alguém mesmo sem dolo.
Espero que o O Globo tenha a mesma atitude, pois tanto para a instituição que ajudei a recriar há mais de 30 anos, quanto para minha reputação como administrador público, o prejuízo de tal matéria, até pelas chamadas na televisão desde o dia anterior, ultrapassam a medida normal de divergências ou o simples dever jornalístico de apontar supostas falhas da administração pública.
A matéria de domingo em questão tem "lead" e manchetes extraídos de denúncia de representantes comerciais brasileiros de indústria chinesa que se sentem prejudicados pela atual política de compras de Farmanguinhos. Diga-se de passagem que são cidadãos brasileiros que respondem a processo por fraudes em licitações para fornecimento de anti-retrovirais, o que foi divulgado pelo O Globo em matéria no qual colaborou o mesmo jornalista que assina a matéria do domingo (anexamos ao final a transcrição da matéria em questão). Isso não tiraria a eventual justeza de sua denúncia, mas seria melhor ter sido dado conhecimento ao público.
Passaram em branco, também, informações que prestei na sexta-feira, dia 23, por escrito, como as correções feitas na tabela enganosa que dá origem às manchetes acusatórias. O jornalista coloca na tabela os valores do pregão de Farmanguinhos, sabendo que não seriam esses os praticados, informando em letras miúdas ao pé da página os mesmos. Os valores de aquisição foram:
Farmanguinhos: Zidovudina = R$ 1084,80 (valor real) e não R$ 1257,14 / kg.
Farmanguinhos: Lamivudina = R$ 812,00 (valor real) e não R$ 1008,48 / kg.
Então: como calcular prejuízo ou quanto "gastou a mais" se foi calculado com um valor superior ao que foi contratado?
Do mesmo modo, o jornalista sabia que os valores do pregão da FURP não correspondem ao preço total que custará à FURP o kg do princípio ativo, pois ao pé da tabela transcreve que o preço em dólar exclui os "gravames" e, sem os mesmos, o converteu para reais. Esses gravames são taxas e outras despesas para internalizar no país os princípios ativos do importador, ou seja, o nacional tem que incluir na oferta no pregão todos os gastos com impostos, armazenagem, transporte, etc. para entregar na fábrica e para o importado esses custos são eliminados da oferta do pregão, pagando o importador (o laboratório público) separadamente os mesmos, de modo a dar injusta vantagem competitiva ao importado contra o nacional.
Solicitamos à ABIFINA, qual seria o custo final com tais gravames o kg dos mesmos produtos para as quantidades e valores de aquisição pela FURP publicadas na tal tabela de O Globo. O Dr. Nelson Brasil estimou os custos finais que são apresentados abaixo.
FURP: Zidovudina = R$ 894,02 (custo final estimado) e não R$ 772,23 (qual taxa de dólar?)
FURP: Lamivudina = R$ 604,00 (custo final estimado) e não R$ 520,08 (qual taxa de dólar?)
Portanto, é falso como diz a primeira página de O Globo de 25/02/07 que "O Farmanguinhos, laboratório da Fiocruz, gastou até 94% a mais do que outro laboratório público". No caso, a estimativa da diferença de preço máxima seria de cerca de 35 %, mas como sabia o jornalista, propicia que haja ganhos reais pela customização do princípio ativo de modo que o preço final do produto que produzimos fica mais baixo. Ou seja: "O prejuízo estimado de 7,3 milhões" é uma elucubração completamente infundada.
Na seqüência da matéria em pauta, há uma razoável aderência ao que informei a despeito da falta de conhecimentos técnicos, como por exemplo, a confusão entre medicamentos e princípios ativos e omissões que não permitem que o leitor tenha uma visão abrangente do trabalho que está sendo realizado em Farmanguinhos em busca de maior eficiência da máquina pública, da redução de preço dos medicamentos entregues ao Ministério da Saúde e da garantia da qualidade aos que usam nossos produtos.
Não há palavras vazias. Para comprovar minhas afirmações de maneira bem clara, estou anexando cópia de expediente que remeti ao Ministério da Saúde no início do corrente ano, informando que, em conseqüência das novas medidas que promovemos em Farmanguinhos, fomos capazes de reduzir custos e, com os mesmos recursos recebidos, estar aptos a fornecer ao DST/Aids volume de medicamentos 15% maior no primeiro semestre de 2007 e 25% maior no segundo semestre. Como, então, estamos dando prejuízo para o programa de AIDS do Ministério da Saúde? Na verdade, em 2007 daremos "lucro", pois, em decorrência das aquisições segundo os novos procedimentos, estamos fornecendo um incremento de medicamentos no valor de mais de R$ 10 milhões.
No mesmo jornal de domingo, em matéria não assinada, O Globo procura desmerecer a importância do trabalho que estamos fazendo na fábrica de Jacarepaguá. Não fala da área de penicilínicos que está em franca atividade e que a transferência da linha de produção em via seca foi inaugurada em dezembro - ato noticiado pelo O Globo na coluna do ilustre jornalista Ancelmo Goes. O Globo está como esteve então, convidado a visitar a fábrica e constatar o nível das nossas atividades em prol da saúde dos brasileiros.
A capacidade potencial da fábrica só poderá ser atingida em mais dois anos, caso se considere a transferência dos laboratórios de pesquisa, atualmente no Campus de Manguinhos. Porém, não é isso que limita a nossa produção hoje, e, sim, a grande diminuição de demanda do Ministério da Saúde face à descentralização dos recursos para compras de medicamentos para estados e municípios, como se depreende da tabela a seguir.
Como vemos, é falsa a ilação do cabeçalho da página 19 da matéria: "Ainda sem fábrica, Farmanguinhos terceiriza".
PRODUÇÃO CONTRATADA E PRODUÇÃO REALIZADA NOS ANOS 2004-06
Para superar tal limitação de demanda, de modo a ganhar escala e permitir a venda de produtos a outras esferas públicas bem como à exportação para ações de solidariedade', serão necessárias mudanças na estrutura jurídica de Farmanguinhos, que estão em estudo.
Nesta mesma matéria, afirma-se que aumentamos a terceirização e, em conseqüência, que os recursos financeiros que anteriormente eram destinados à pesquisa passaram a empresas privadas. É falso! Na tabela acima vemos que mesmo em processo de mudança de fábrica, a proporção de unidades farmacêuticas produzidas com alguma etapa de terceirização foi em torno de 20% em 2006, quando no ano anterior, 2005, foi superior a 40%. E mais: nunca, na história recente, Farmanguinhos pesquisou e concretizou mais desenvolvimentos tecnológicos, graças ao esforço e competência de seus quadros técnicos, do que em 2006. No ano passado foram publicados 81 trabalhos em revistas indexadas, contra 36 em 2005. Em 2006 foram concedidas cinco patentes no exterior e uma no Brasil, contra zero em 2005. Em 2006 foram depositadas 12 patentes no exterior contra zero em 2005. E, para finalizar, cabe observar que, apesar da diminuição do aporte financeiro de mais de 30% em 2006 em relação a 2005, foi possível, a despeito das dívidas resgatadas de produção, aplicar em pesquisa e desenvolvimento R$ 9,4 milhões, praticamente o mesmo de 2005 - R$ 10 milhões, além de transferir mais de R$ 20 milhões à Fiocruz, como retribuição ao suporte em infra-estrutura e pesquisa.
É por estar convicto de que estamos trabalhando em Farmanguinhos com seriedade, seguindo uma linha que contempla a assistência farmacêutica de qualidade para a população brasileira, com uma clara visão econômico-social do Brasil e de que todas as ações "denunciadas" foram feitas dentro da mais estrita legalidade, sugeri que o O Globo promova debate acerca dos problemas da produção pública de medicamentos no Brasil, convidando o Diretor da FURP e dos outros laboratórios oficiais. Nesse debate seriam discutidos os problemas de produção decorrentes de uma interpretação distorcida da lei das licitações e da certificação de fornecedores, como também uma proposta de Lei das Compras Públicas cujo projeto já avança no país.
A lei hoje não nos obriga a comprar pelo menor preço, mas, sim, comprar o serviço ou produto mais conveniente à administração pública pelo menor preço. O prejuízo para o erário, os pacientes e a economia do Brasil vem sempre de não comprar certo, e em geral decorre dos constrangimentos que sofre o administrador público.
O O Globo voltou ao assunto, dia 27 de fevereiro, criticando o não cumprimento da legislação sanitária no que diz respeito à certificação de Boas Práticas de Fabricação. Não está correto. Em 23 de fevereiro, o autor da matéria de domingo recebeu documentação comprobatória das exigências do edital e dos documentos apresentados pelos licitantes vencedores, conforme atesta sua assinatura no protocolo. Nosso edital exigia que os licitantes deviam apresentar o certificado de boas práticas de fabricação ou o resultado satisfatório da inspeção sanitária, embora isto não seja exigência legal e, sim, mais uma atitude de zelo de Farmanguinhos. Uma das empresas vencedoras tinha o BPF em dia e a outra apresentou o resultado da inspeção sanitária como satisfatória. Por isso as duas propostas foram aceitas pelo pregoeiro de Farmanguinhos. Aliás, ambas as empresas são reconhecidas por serem sólidas e bem instaladas pela ABIFINA e foram recentemente inspecionadas pela equipe técnica de Farmanguinhos.
Mais ainda, no quadro OPINIÃO na mesma página, a editoria volta a afirmar que houve uma diferença de "até 94%" nos gastos com medicamentos comparando Farmanguinhos - Furp. É falso conforme já mostramos antes, mas o jornal é renitente. A diferença é de, no máximo, 34% e se justifica pela falta de isonomia tributária entre quem produz no Brasil e quem importa. Mas aumenta também nossa eficiência gerando ganhos por diminuir as rejeições primárias, re-processamento e perda de rendimento industrial, causados pela má qualidade da matéria-prima adquirida sem acompanhamento de produção do farmoquímico.
Sobrou ainda de O Globo de ontem o desconforto pela afirmação de que "Esse tipo de protecionismo e de reserva de mercado já patrocinou muitos negócios obscuros.", já que em nenhuma das ações de Farmanguinhos há protecionismo ou reserva de mercado.
De fato, o que Farmanguinhos promove é uma política de compras que privilegia em primeiro lugar a qualidade e a customização das matérias-primas do nosso parque industrial, objetivando eficiência, garantia de qualidade e diminuição do preço de entrega ao Ministério da Saúde. Para isso é preciso o acompanhamento por Farmanguinhos da produção dos princípios ativos. É claro que essa política acaba por promover mais empregos e desenvolvimento econômico do Brasil do que a simples importação, injustamente favorecida do ponto de vista competitivo por falta de isonomia tributária entre produtores nacionais e importadores nas licitações públicas.
Quanto aos negócios obscuros, eles podem tanto ser feitos protegendo empresas nacionais, como favorecendo importadores, como sabe o O Globo, pois já cobriu as ações dos "fraudadores" que agora falam contra nossa política de compras de princípios ativos.
Para concluir, quero acreditar que a maioria dos equívocos descritos seja fruto de uma dificuldade técnica de jornalistas para entender a matemática dos processos fabris, mas ainda assim espero do O Globo uma mais correta avaliação dos fatos e uma saudável e adequada reparação espontânea, em busca do que estou remetendo uma nota de apenas uma lauda para publicação conforme solicitaram e continuo aberto a um franco e amistoso diálogo.
Eduardo Costa
Diretor de Farmanguinhos/Fiocruz.
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