7.03.2008

A hermenêutica e a propedêutica da vigilância sanitária

POR:LUIZ FELIPE MOREIRA LIMA
A hermenêutica , do grego ερμηνευτιχος , segundo Ramiz Galvão é “a
arte de interpretar o sentido das palavras, das leis, dos textos, etc.”, e a propedêutica, do grego προπαιδυειν, é “a introdução, prolegômenos de uma ciência; ensinar elementos”. Portanto, cabe identificar as leis, regulamentos e textos que caracterizam esta área do conhecimento e quais os métodos que devem ser ensinados para interpretá-los e aplicá-los.
É preciso buscar o fato singular que propicia a reflexão sobre o assunto e a
conseqüente formulação de teorias, práticas e regulamentos. Tal fato é a vontade do
homem de mitigar, por meio de artifícios, suas dores físicas ou existenciais. Mas se para atingir tal desiderato o remédio for pior do que o próprio mal não há sentido em fazê-lo, senão por desespero.
A hermenêutica da vigilância sanitária inspirou-se na ciência e a propedêutica
nos seus métodos e resultados. É uma realização moderna do pensamento e acompanhou o
desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade. No entanto, como se pode
verificar no dia a dia, a maioria da população tem ainda pouca compreensão sobre o
método científico e suas limitações, gerando por vezes obstáculos à sua aplicação.
Quando a sombra do desconhecimento e o seu conseqüente resultado, a desconfiança,
abatem-se sobre uma população abre-se um campo fértil para que alguns tirem proveito,
em geral pecuniários, deste estado de espírito. Os povos, mesmo os mais crédulos,
acabam percebendo que são vítimas de suas próprias deficiências e buscam proteger-se. A passagem da responsabilidade unicamente individual na escolha dos procedimentos
curativos para a coletividade acompanhou o desenvolvimento da ciência e suas aplicações tecnológicas e é também fruto da melhoria do padrão educacional das pessoas.
As comunidades terão uma vigilância sanitária organizada em correspondência
ao seu grau de desenvolvimento econômico e cultural. Hoje há tal multiplicidade de
situações no mundo, referentes à forma como a vigilância sanitária está estruturada, que dificilmente se poderá comparar as suas histórias.
Deixando o passado, hodiernamente aonde estão as raízes da vigilância
sanitária?
A preocupação ecológica
O uso de compostos químicos ( medicamentos) e produtos biológicos é uma
das maneiras de se mudar a realidade, alterando de forma previsível o resultado natural das interações biológicas. Para estabelecer a eficácia desta prática é obviamente necessário que se conheça a substância, quem, como, quando, onde e porque se a usará. A ponderação entre o dano conseqüente ao uso e o benefício obtido permite tal avaliação.
Não é tarefa simples obter informações fidedignas para estimar o risco de efeitos adversos.
O fundamento da avaliação de risco é a evidência científica mas, o conhecimento
científico não basta, pois há determinantes éticos, políticos e sócio-econômicos a serem considerados para se decidir ou não pelo uso de uma substância. São conhecimentos experimentais sobre mutagenicidade, carcinogênese, toxicidade fetal, teratogênese, além da epidemiologia das iatrogenias, uso abusivo e terapêutico das substâncias, eficácia dos tratamentos, qualidade das drogas, custos nos programas sociais entre tantos outros aspectos. A toxicologia no entanto não se restringe ao estudo dos produtos medicamentosos pois é de seu interesse qualquer efeito químico, físico ou biológico que possa trazer danos a animais e plantas
A ênfase no conhecimento toxicológico é relevante porque o critério de
aceitação das novas tecnologias vem passando por uma profunda mudança ideológica em
que se considera mais a "melhoria da qualidade de vida " do que somente "um aumento
da longevidade".
A preocupação com a proteção ao meio ambiente é uma reflexão sobre a
extensão dos danos que a atividade industrial e mercantil tem provocado em escala
mundial e que pode, por conseqüência, vir a afetar os próprios negócios. Não é entretanto uma posição hegemônica entre os estrategistas das economias centrais, visto que uma forte corrente liberal considera a natureza como uma serviçal da humanidade enquanto os ditos ambientalistas a vêem autônoma. Ao argumento ambientalista de que o crescimento econômico desordenado traz prejuízos ao meio ambiente, os que propugnam pelo livre mercado assinalam que, justamente os países mais ricos têm maior número de grupos, instituições e leis de defesa do meio ambiente e dentro de seu ideário consideram que os problemas domésticos de um país não devem ser regulados internacionalmente. De qualquer forma a poluição seria uma função inversa do desenvolvimento e não ao contrário, como se propala, pelo simples fato de que há uma crescente preocupação da
população politicamente ativa de países mais ricos dispostas a gastarem mais com a proteção ao meio ambiente, o que não ocorre em países com renda per capita menor. Outro poderoso argumento é a possibilidade do uso de restrições comerciais por motivos "ecológicos" estarem acobertando, na verdade, uma política de proteção comercial pois os
produtos de países onde existem padrões de qualidade inferiores ou nenhum gasto com a defesa ecológica alteram deslealmente a competitividade nos mercados. Os trabalhadores destes países mais desenvolvidos seriam prejudicados pela diminuição de seus postos de trabalho já que algumas empresas prefeririam se deslocar para estes paraísos antiecológicos.
Tal situação pode gerar uma onda de protecionismo que, em última instância,
seria mais prejudicial do que benéfica à causa ambientalista. É fundamental, portanto que se verifique , para cada caso de regulamentação sobre o meio-ambiente e comércio, a verdadeira intenção do ato (pode estar acobertando um protecionismo ao negócios locais) a coerência (podem estar sendo feitas exigências intempestivas ou excessivas para solucionar o problema), e a sua história, ( pode não estar baseada em dados científicos).
Neste último caso, na ausência de um critério uniforme de análise dos danos e riscos, cada um tenderia a impor a sua "verdade" (Bhagwati,1994). Há ainda um outro problema, o da reciprocidade, pois é mais injusto ainda pedir a alguém que fique mais pobre (deixando de produzir algo que lhe é essencial ) para que outro fique mais rico (não fazendo um sacrifício proporcionalmente igual).
Os ambientalistas estão por trás da idéia do "desenvolvimento sustentado" .
Isto baseia-se na presunção teórica - diferentemente dos liberais - que a quantidade de energia disponível para o crescimento não é ilimitada e portanto a economia não poderá crescer indefinidamente ( e por conseqüência a população ), sendo preferível uma economia estabilizada e o crescimento econômico medido em melhoria da qualidade de vida. Seria portanto necessário uma redistribuição da riqueza disponível fazendo-se um esforço pelo "desenvolvimento", mais do que para o crescimento puro e simples. Isto significa que as nações devem ser auto-suficientes em boa parte do que consomem,
ficando a especialização por conta das vocações, talentos e circunstâncias geográficas e históricas de cada povo. Caso não ocorra isto, que em outras palavras é a fixação do capital na região, um povo pode se ver na iminência de um empobrecimento acelerado e catastrófico quando sua mão de obra especializada e o capital fugirem para outros locais mais atrativos ( Daly,1994).
A estratégia dos ambientalistas é a do "Desenvolvimento global cooperativo",
idéia proposta por correntes do pensamento econômico dos países mais desenvolvidos,
inclusive o Banco Mundial. No caso, para os países com baixa renda per capita a ajuda
seria mais humanitária do que estratégica, os de média renda e desenvolvimento avançado os investimentos privilegiariam as relações comerciais e tecnológicas; com o ex-bloco socialista o progresso social e econômico e entre as nações ricas e industrializadas um programa para reestruturar a economia global. No âmago da proposição, a criação de uma sociedade mundial mais eficiente e ecologicamente responsável. Neste aspecto a ciência e a tecnologia desempenham papel fundamental, pois os objetivos de crescimento econômico, proteção ambiental, melhoria da saúde, controle populacional e fartura em alimentos, "dependem da habilidade dos países em absorverem e usarem a ciência e a tecnologia" (Ausubel, 1993).
Estas idéias estão nas raízes das políticas que vêm paulatinamente dominando
os modelos desenvolvimentistas atuais, enfatizando a "harmonia com a natureza,
utilização racional dos recursos não renováveis, tecnologias apropriadas e respeito às características bioregionais" ( Naess, 1973 ).
Destas considerações depreende-se que, qualquer que seja o resultado das
pesquisas sobre substâncias a serem utilizadas na melhoria da qualidade da saúde de um povo ou a criação de tecnologias, antes de aplicá-las, será necessário avaliar a relação entre danos e benefícios possíveis. De fato a avaliação toxicológica é um dos principais filtros antes da tomada de decisões sobre o que comporá o plano da estratégia em saúde. É importante ressaltar que a organização dos meios ( recursos materiais e humanos) para por em prática uma estratégia é uma etapa posterior à tomada de decisão sobre o que se fará e porque, portanto, o conhecimento científico é fundamental.
Estabelecendo uma estratégia. O que é estratégia ?
Na raiz etimológica está a palavra grega στρατεγο (estrátego) que
denominava os generais, ou seja, aqueles que comandavam os exércitos. A "estratégia" é, portanto:
"A arte ( militar) de planejar e executar movimentos e operações ( de tropas )
etc." (Cunha,1987)
"A arte militar de escolher onde, quando e com que travar um combate ou
uma batalha" ou, "Arte de aplicar os meios disponíveis com vista à consecução de objetivos específicos"; ou ainda, "Arte de explorar condições favoráveis com o fim de alcançar objetivos específicos" (Ferreira,1986).
A palavra "planejamento" só começa a ser usada no século XX, derivando-se
de "planejar" que surge no final do século XIX. A raiz etimológica é o adjetivo latino "planus" que significa "liso, plano, chato" ou, "claro, evidente, manifesto", ou ainda, "tornar evidente, demonstrar - planum facere".
Decorre que, a demonstração de como serão aplicados os meios disponíveis
com a finalidade de alcançar objetivos específicos, é o planejamento da estratégia ou, como se diz, o planejamento estratégico.
Para se poder traçar uma estratégia é necessário conhecer os elementos
assinalados na definição, a saber, os meios disponíveis e os objetivos específicos a serem alcançados.
Conhecer tais elementos significa ter informações fidedignas. Uma estratégia
bem sucedida requer o equilíbrio entre propósitos e ações.
Daí a importância do στρατεγο (estrátego) pois da sua judiciosa decisão
depende o sucesso da empreitada e o destino de muita gente.
Serão os estrategistas aqueles que deixaram pela história provas irrefutáveis de
seus feitos e foram consagrados pelos povos?
Talvez, mas os estrategistas modernos são os anônimos da burocracia, dos
interesses mercantis, das religiões e dos partidos políticos que se propõem a representar um povo e conduzi-lo a um destino. Empresa temerária, pois ninguém se submete com facilidade a propósitos distantes da sua cultura. As mudanças são conseguidas em razão das vantagens que podem proporcionar, impostas pela força, ou uma combinação destas duas circunstâncias.
A diversidade social, cultural e econômica, além de outras, deveria ser uma
preocupação indispensável nas conjecturas dos estrategistas contemporâneos. Por
conseqüência, o melhor estrategista é o que tem maior identidade social, cultural e
econômica com o povo.
Para o estrategista o povo não é uma abstração teórica. Ele ocupa um espaço
geográfico onde vivencia sua cultura, desenvolve a economia e organiza-se socialmente. O estrategista sistematiza este conhecimento no tempo. A história é o seu principal instrumento.
Não é tarefa corriqueira estabelecer uma estratégia, e mais complexa ainda
levá-la a termo.
Cabe, portanto, descobrir a quem o estrategista representa e, a seguir,
estabelecer qual o método mais adequado de compreensão da história.
O estrategista moderno representa quem o designa como tal e o permite dispor
dos recursos para levar adiante sua estratégia. A legitimidade do estrategista, antes que seja glorificado, depende do poder socialmente consentido. O usurpador, o ditador ou o déspota podem ter bons estrategistas mas dificilmente serão heróis de um povo subjugado.
O estrategista pode servir a qualquer poder mas o tratará apenas como um
elemento indispensável de sua estratégia. O alcance do poder é uma limitação da
estratégia.
Por tal raciocínio pode-se inferir que todo e qualquer poder necessita ter a seu
dispor tantos estrategistas quantos achar necessário para os seus propósitos. A
subordinação destes profissionais ao poder é absoluta, de tal modo que, excetuando-se
aqueles escolhidos para personificarem os heróis, todo o resto congrega-se numa
corporação anônima de amanuenses qualificados. Pois, o que estes funcionários devem
fazer é usar o saber que lhes foi ensinado e transmiti-lo para as novas gerações. Em última instância o que é permanente é o conhecimento, os estrategistas podem ser substituídos.
O conhecimento dos modernos estrategistas deve ser obtido a partir de
métodos que retratem acuradamente a realidade, independentemente das "vontades" do
poder.
Portanto, os estrategistas dependem do trabalho daqueles que coletam, reúnem
e analisam os fenômenos e fatos que ocorrem na história de um povo, em algum lugar e
época.
Conhecimento: " λογος " (logos); sobre: " επι " (epi); um povo: " δεμος
" (demos). Επιδεμολογος : epidemiologia.
O termo representa um propósito e a aplicação decorrente, um método de
utilização do saber. Através dele é possível ao estrategista estabelecer seu plano de ação e posteriormente avaliar o resultado.
Trata-se, neste caso, de ações que devem modificar a história num sentido
preestabelecido. Mas na maioria das vezes consegue-se mudar apenas parte da história.
A possibilidade de ação do epidemiologista está, desta forma, determinada
pela ambição do poder. O poder como expressão da necessidade. E é fundamental que
haja estas duas dimensões, do possível e do necessário, e que uma não prescinda da outra ou qualquer estratégia seria desesperada. Para o epidemiologista a falta de limites lhe revela o campo infinito do possível onde suas hipóteses nunca poderão ser provadas, assim ele não se tornará um elemento útil para o estrategista. Destarte, a vontade do poder em obter o que quer, meta derradeira do estrategista, só pode ser enunciada dentro do que é possível. Logo, a vontade, como necessidade maior, fora dos limites do possível, não se exprime senão como desespero; (DESPERO, sem esperança)..
O pecado mortal de qualquer estratégia será portanto a ignorância do possível
ou da necessidade, e por conseguinte o desespero. Muitas vezes, o desespero inconsciente, silencioso e fatal.
A ignorância se exprime no caso pelo desconhecimento
(DESCOGNOSCERE, IGNOTO, INCOGNITUS ), e reflete a ausência de método para
gerar o saber, pois que a ignorância não é uma qualidade do ser mas uma condição
temporal. O epidemiologista é quem pesquisa o método e o aplica. Não há caminho seguro senão o escrutínio das causas e efeitos das mudanças, feitas ou pretendidas, nos fatos e coisas onde ocorrerão as ações.
Enfim, o propósito das estratégias em saúde pública é mudar uma realidade
segundo uma vontade. Por conseguinte, deve-se delimitar o que é necessário e possível
para tanto.
BIBLIOGRAFIA
AUSUBEL, JESSE H. "2020 Vision".The Sciences; Vol. 33, Nº 6, Novembro/Dezembro de 1993.
BHAGWATI, JAGDISH. "The case for free trade". Scientific American; Vol. 269, Nº 5, Novembro de
1993.
BOUCHIER, DAVID. Radical Citizenship. New York: Schocken Books, 1987.
CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Nova Fronteira. 1987.
DALY, HERMAN E. "The Perils of free trade".Scientific American; Vol. 269, Nº 5, Novembro de 1993.
FERREIRA, A. G. Dicionário de Português-Latim; Editora Porto. 1990.
GALVÃO, RAMIZ. Vocabulário da língua grega. Garnier. 1994
NAESS, ARNO (in "Anarchy and Ecology" by Kirkpatrick Sale). Social Anarchism, Nº 10, 1985

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