Em um Estado Democrático de Direito, quais são os alcances e limites da polícia?
por Wálter Maierovitch
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Fernando Frazão/ABr
A polícia
civil do Rio de Janeiro, no exercício da sua função de polícia
judiciária, preparou um relatório de cerca de 2 mil páginas sobre ações
violentas de infiltrados em manifestações populares de protestos e a
contar de outubro de 2013. Trata-se de relatório sigiloso que serviu de
base ao Ministério Público Estadual para denunciar 23 indiciados, todos
eles com prisões cautelares decretadas e a maioria foragida. Os réus
reclamam por não ter acesso ao documento, e têm razão, porque o sigilo
compromete a garantia constitucional da ampla defesa.
Esse relatório especifica, consoante
vazamentos à mídia, a formação de uma organização criminosa do tipo
“bando armado” e comprometedora da paz pública (artigo 288 do Código
Penal). Ainda mais, esse bando, formado não só por encapuzados (black
blocs), contaria com cúpula de governo, hierarquia entre os membros
associados e com as comunicações e as ordens transmitidas a distância,
por meio de internet. Suas ações teriam resultado em concretos danos
aos patrimônios público e privado, na morte de uma pessoa com emprego de
explosivo, lesões corporais diversas, vandalismos e quejandos: existe
menção a uma ordem não cumprida de se incendiar, com emprego de
gasolina, a sede da Câmara Municipal. A denúncia restou recebida pelo
juiz natural da causa e os 23 denunciados, com prisões preventivas
impostas, viraram réus em ação penal pública incondicionada.
Com efeito, para macular a imagem do Brasil, colocar o
governo Dilma Rousseff em incômodos internacionais e transformar a ação
penal em questão política e não criminal, a advogada Eloísa Samy, e
outros dois jovens com ela denunciados processualmente, tentou sem
sucesso obter asilo político no consulado uruguaio. Isso como se
estivéssemos no tempo do Estado Novo ou sob o império do Ato
Institucional nº 5, épocas de suspensão da garantia do habeas corpus.
O certo é que
vivemos num Estado Democrático de Direito, e ações penais e prisões,
ilegais ou abusivas, podem, pelos constrangimentos gerados, ser
trancadas e levantadas por habeas corpus. Esse remédio heroico apareceu,
pela primeira vez, no nosso Código de Processo Penal de 1832 e
ingressou, para ficar em constituições posteriores, na primeira
republicana de 1891. Sua origem, de fato, remonta à Magna Carta de 1215.
Por outro lado, os processos criminais são regidos por princípios e
garantias constitucionais, como ampla defesa, contraditório, juiz
natural e não de exceção etc. Donde absurdo o pedido de asilo político
feito pela advogada Eloísa Samy.
Agora e fora dos autos processuais, grupos de ativistas
acusam as autoridades brasileiras de manipular a Justiça a fim de, com
prisões determinadas pelos juízes e ações policiais arbitrárias e
violentas, inibir manifestações de rua constitucionalmente admitidas. No
momento, até os asfaltos pisados das ruas das passeatas de protestos
sabem do despreparo e abusos das polícias militares e da fúria dos black
blocs, que se apresentam como adeptos de uma tática de protesto e não
como criminosos, ou seja, associados na promoção de vandalismos,
agressões físicas, morte e confrontos com as forças de ordem. E os black
blocs foram, pela violência, os que inibiram uma maior participação
popular.
Conclusão isenta de paixões: as manifestações não
pacíficas são ilegítimas e os abusos policiais ocorrem quando cerceiam
as manifestações ordeiras ou excedem os limites da defesa social.
Fora isso tudo, é de se lamentar o último
factoide criado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. A deputada Janira
Rocha (PSOL) está sendo investigada, em tese, por crime de
favorecimento pessoal. Nada mais absurdo em momento algum, e quando
esteve no Consulado do Uruguai para acompanhar a advogada Eloísa Samy e
os dois outros réus, colocou obstáculos, atrapalhou ou auxiliou, como
diz o tipo penal, “a subtrair-se à ação de autoridade pública o autor de
crime”.
Os policiais não estavam presentes quando
a deputada saiu do Consulado do Uruguai na companhia dos denunciados e
deu carona a eles até suas casas. Na verdade, um factoide, uma vez que
os policiais, portadores de ordens judiciais de prisão preventiva,
passaram pelo consulado e, mesmo sabendo das presenças, deixaram o local
antes da saída dos denunciados. Pelo jeito, a polícia ainda não teve
tempo de procurar a estes nas suas residências.
Pano rápido. Como bem observou o
jornalista Octávio Guedes, os denunciados, pertencentes à chamada classe
média, estão a exercitar legitimamente o direito pleno de defesa, de
petição (reclamação), e de pleitear habeas corpus, mas a mesma sorte não
tiveram, poucos dias atrás, três jovens pobres, dois deles presos e
sumariamente assassinados por policiais militares do Rio, como está
sendo amplamente divulgado pela mídia carioca.
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