Medicina & Bem-estar
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A ciência começa a testar de que maneira sonhar pode ajudar no tratamento de pesadelos, dor crônica, estresse, doenças mentais como a esquizofrenia e até aprimorar o desempenho esportivo
Cilene Pereira (cilene@istoe.com.br)
O paulista
Bruno Henrique do Carmo, 32 anos, sempre teve pavor de água. Um dos
temas recorrentes em seus pesadelos eram tsunamis, afogamentos. O terror
permaneceu até que um dia teve um sonho diferente. Sonhou que estava em
alto-mar, mas, em vez de sucumbir ao medo, teve a clareza de perceber
que estava apenas sonhando. “Resolvi aproveitar a liberdade de fazer o
que quisesse”, lembra. “Mergulhei e nadei”, recorda-se. Depois do
episódio, Bruno perdeu a aversão à água. Pesquisador da área de
neurociências do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, em Natal, ele agora aproveita as praias da capital
potiguar, surfa e veleja.
O tipo de sonho que Bruno teve se chama
sonho lúcido. Nele, o indivíduo sabe que está sonhando e pode até
interferir no roteiro se desejar. O fenômeno é conhecido da ciência há
tempos, mas nos últimos anos ganha atenção crescente. Isso porque ele
apresenta um expressivo potencial para ajudar no tratamento de diversas
condições – assim como foi decisivo para que Bruno perdesse o medo da
água. Hoje, há centros de pesquisa pelo mundo avaliando sua eficácia
contra pesadelos e dor crônica, entre outras enfermidades, e como um
instrumento de promoção da melhora no desempenho motor e esportivo.
Contra os pesadelos, o objetivo é usar a
consciência de que se está sonhando para interferir no conteúdo e mudar a
história de forma a trocar o que dá medo por algo que conforta. No
Instituto de Consciência e Pesquisa do Sono, na Áustria, esse trabalho
vem sendo feito há sete anos. Os primeiros pacientes tinham pesadelos
recorrentes, sem causa aparente. Depois, juntaram-se a eles vítimas de
estresse pós-traumático, condição marcada por sonhos aterrorizantes a
respeito do trauma que motivou o estresse. “Temos resultados
significativos com os dois grupos”, disse à ISTOÉ a pesquisadora
Brigitte Holzinger, uma das fundadoras da Associação Austríaca de
Pesquisa em Sono.
Os resultados da Áustria aproximam-se dos
obtidos em outras partes do mundo. Na lista das melhores práticas para o
tratamento dos pesadelos, publicada no “Journal of Clinical Sleep
Medicine”, um dos principais no campo da medicina do sono, a terapia do
sonho aparece com uma recomendação positiva. “Ela pode ser considerada
uma opção”, explicou à ISTOÉ Sanford Auerbach, da Universidade de Boston
(Eua) e um dos coordenadores das orientações.
Boas evidências do potencial dos sonhos
lúcidos também são encontradas na área das habilidades motoras e
performance esportiva. O que se quer é melhorar a precisão do chute, do
arremesso, por exemplo? Use o sonho lúcido para treinar os movimentos.
Um dos primeiros a apontar os benefícios da estratégia foi Daniel
Erlarcher, da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Um de seus
trabalhos demonstrou como ter consciência do sonho auxilia na
coordenação. Ele selecionou 40 voluntários, metade dos quais com
histórico de ter sonhos lúcidos espontaneamente. Todos deveriam jogar
moedas em um recipiente e tinham 20 chances de fazer isso. Os sonhadores
foram orientados a tentar sonhar que acertavam a jogada. No dia
seguinte, os sete indivíduos que conseguiram treinar durante o sonho
mostraram melhor performance. “Ensaiar durante o sonho tem impacto
positivo na performance real”, afirmou Erlarcher à ISTOÉ.
CIÊNCIA
Dresler (à esq.), da Alemanha, mapeou o que ocorre no
cérebro durante os sonhos. Sérgio, do Brasil, quer criar
métodos para induzir esse tipo de experiência
Dresler (à esq.), da Alemanha, mapeou o que ocorre no
cérebro durante os sonhos. Sérgio, do Brasil, quer criar
métodos para induzir esse tipo de experiência
Seu colega Tadas Stumbrys, também de
Heidelberg, está ampliando as investigações. “Constatamos que o sonho
lúcido pode melhorar o desempenho no esporte”, contou à ISTOÉ. Seus
levantamentos revelaram que 5% dos atletas utilizam conscientemente esse
poder. Dados semelhantes foram levantados por Melanie Schadlich, na
mesma universidade alemã. Em uma pesquisa preliminar feita com os que
costumam ter sonho lúcido e os utilizam para aprimorar as habilidades na
música e nos esportes, ela colheu depoimentos interessantes. Muitos
relataram que treinar no sonho os ajudou a realizar movimentos que antes
não eram capazes de executar.
Nos EUA, o pesquisador Mauro Zappaterra, da
Universidade da Califórnia, registrou o primeiro caso do mundo de
alívio da dor crônica com o auxílio do sonho lúcido. O paciente, chamado
apenas de Mr. S., sofria dores terríveis após uma cirurgia feita em
1991. Ao longo dos 22 anos seguintes, Mr. S. foi submetido a diversos
tratamentos. No dia 2 de março de 2013 ele teve o sonho que interrompeu
esse sofrimento. Consciente de que estava sonhando, ele viu formas como
se fosse o DNA. E procurou entender o que estava vivendo. “Pareceu que
meu cérebro desligou e foi ligado novamente”, contou. Quando acordou, a
dor havia ido embora. Ela reapareceu 20 dias depois, mas com a metade da
intensidade. Hoje, ele mantém o controle com medicação – menos do que
antes – e terapia. Os cientistas não sabem ao certo o mecanismo que
levou ao alívio. “Acredito que o trabalho multidisciplinar feito nos
dois anos anteriores ao sonho tenha remodelado seu sistema nervoso. E o
sonho funcionou como uma poderosa experiência de cura após todo o
trabalho prévio”, disse à ISTOÉ Mauro Zappaterra.
A possibilidade de tirar proveito do sonho é
objeto de estudo de Peter Morgan, do Departamento de Psiquiatria da
Faculdade de Medicina da Universidade de Yale (EUA). “Esse recurso pode
ter benefícios para uma variedade de condições físicas e mentais, na
maioria das vezes como terapia coadjuvante”, afirmou à ISTOÉ. No Brasil,
a psiquiatra cearense Natália Mota pesquisa o assunto no Instituto do
Cérebro, em Natal. Um dos aspectos é a relação entre o sonho lúcido e a
esquizofrenia. Entre os raciocínios que motivam a investigação está o de
que, talvez, seja possível usá-lo para ajudar o paciente a perceber
quando tem uma alucinação. “Teoricamente, se ele é treinado e fica apto a
identificar quando está sonhando, talvez fique habilitado para saber
quando está tendo uma alucinação”, explica a médica.
Acredita-se ainda que, a contar pelos
resultados obtidos até agora na melhora das habilidades motoras, é
possível que os sonhos sirvam como um meio útil para auxiliar na
reabilitação física após lesões e acidente vascular cerebral. “Os exames
de imagem cerebral mostram que a prática motora durante os sonhos ativa
as mesmas regiões cerebrais acionadas na vigília”, disse o cientista
Tadas Stumbrys.
Há também o aprendizado sobre a própria
consciência e o crescimento emocional que pode advir disso. Um dos que
estão empenhados em descobrir como funciona o estado de lucidez durante
os sonhos é o cientista Martin Dresler, do Instituto Max Planck, na
Alemanha. Ele acaba de publicar um trabalho no qual descreve um mapa do
que ocorre no cérebro durante esses sonhos. “Aprofundaremos os estudos
para explorar mais os circuitos neurais envolvidos”, adiantou à ISTOÉ.
Diante de todo esse potencial, há esforços
para encontrar maneiras de facilitar a ocorrência do sonho. Há técnicas
que ajudam a ter esse tipo de experiência (leia quadro abaixo). Mas os
cientistas pesquisam outras formas. É o caso do pesquisador Sérgio Mota
Rolim, do Instituto do Cérebro, em Natal. “Queremos construir um
dispositivo para induzir o sonho lúcido”, conta. Na J.W.
Goethe-University Frankfurt, na Alemanha, a cientista Ursula Voss
descreveu na revista científica “Nature” como fez isso por meio da
aplicação de suaves estímulos elétricos em pontos do cérebro. “Acho que
qualquer pessoa pode ter um ou mais desses sonhos”, disse Ursula à
ISTOÉ.
Colaborou Mônica Tarantino
Colaborou Mônica Tarantino
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