5.16.2008

Gerência de risco sanitário requer equilíbrio

A retirada e o confinamento do Estado em funções mínimas, o protagonismo do mercado nas economias contemporâneas aponta para a centralidade de sua ação regulatória. A vigilância sanitária – altamente relacionada com o grau de desenvolvimento tecnológico e econômico e com a institucionalidade democrática de um país – representa uma das mais relevantes áreas de regulação estatal no campo social. Muitos países usaram esse campo de regulação estatal para transcender a área sanitária e englobar outros aspectos da economia, estratégicos para o desenvolvimento nacional ou para o bem-estar da população.

A regulação estatal sanitária é amplamente admitida e incorporada ao cotidiano da vida social em todos os países democráticos, pois cuida de eliminar ou diminuir os riscos aos quais a população é submetida e, do ponto de vista econômico, trata – como foi visto anteriormente – de superar falhas do mercado, ou seja, casos e situações em que as forças do mercado não são suficientes para garantir uma eficiente alocação de recursos e outros resultados desejados, tais como o acesso a bens essenciais, à qualidade, à segurança no consumo, ao ambiente limpo e assim por diante. O tipo de regulação estatal adotado é fruto de processos políticos – configurações de poder e de interesses na sociedade, incentivos a alguns participantes e assim por diante – mais do que de considerações a respeito da eficiência alocativa do mercado ou de idéias e considerações acerca do interesse público.

A regulação do risco sanitário desdobra-se em duas áreas principais:
i) atividades de pesquisa, que geram informações e conhecimentos para a concretização da avaliação do risco (análise do risco aplicada a casos específicos); e ii) atividades de administração dos potenciais perigos à saúde, que constituem a política de gerenciamento do risco sanitário na sociedade. A regulação do risco é atividade complexa em todas as sociedades, mas assume características próprias e diferentes conforme o grau de desenvolvimento tecnológico e democrático dos países.

Desde os anos 70, as agências – autarquias com autonomia administrativa e financeira – vêm sendo o tipo de órgão público mais utilizado para desenvolver a ação regulatória estatal do risco sanitário nos países mais desenvolvidos, em especial, nos Estados Unidos. As reformas da administração pública ou reformas de Estado, promovidas amplamente a partir dos anos 80 nos países mais desenvolvidos e também naqueles em desenvolvimento, contemplaram a criação de agências, regulatórias ou executivas, buscando especialmente o aumento de eficiência gerencial dos órgãos da administração pública, em particular, no campo regulatório.

A avaliação do risco constitui atividade central para as agências dos países mais desenvolvidos. A pesquisa, que culmina com a caracterização do risco de determinada substância à saúde humana, é geralmente processo complexo e oneroso, que exige altos investimentos em infra-estrutura e em pessoal qualificado. Entretanto, em grande parte das vezes, não apresenta conclusões definitivas, a não ser a longo prazo. O processo da pesquisa de avaliação do risco inclui etapas nas quais a indefinição científica prevalece e, para ter seguimento, exige inferências e definições onde entram também fatores extracientíficos, decorrentes de preocupações sociais, políticas e econômicas, embora baseadas na probabilidade estatística e na racionalidade científica.

A incerteza decorrente da caracterização não conclusiva do risco deve ser administrada por adequadas políticas de gerenciamento do risco, aplicadas pelas autoridades sanitárias segundo as necessidades de cada contexto social, cultural, econômico e sanitário.

Os países mais pobres, com baixo grau de atividades de pesquisa e desenvolvimento, contam com escassa atividade no campo da avaliação do risco e concentram sua ação na área de gerenciamento do risco. Nesse mister, em geral, tomam decisões e adotam políticas de gerenciamento do risco em ambientes de escasso nível de informação científica e de precariedade institucional tanto no aspecto técnico quanto de sustentabilidade política. Nessa situação, a ausência de informação científica específica e/ou as incertezas provenientes da avaliação de riscos deixam os argumentos econômicos e sociais como únicos critérios de decisão. Em lugares com democracia pouco participativa, a decisão pode considerar unicamente os interesses dos agentes econômicos mais poderosos, deixando-se os argumentos sociais do risco sanitário e do interesse coletivo em segundo plano. O patrimonialismo – característica das administrações públicas latino-americanas – completa um quadro de condições pouco favoráveis ao eficaz gerenciamento do risco na região.

A comunicação do risco é outra dimensão da regulação do risco sanitário que, apesar de importante para o aperfeiçoamento das relações democráticas entre os diferentes agentes sociais, é pouco trabalhada pelos agentes reguladores, inclusive, no Brasil. Ela concretiza a relação entre a avaliação do risco e a participação da sociedade, ou, em outras palavras, a relação entre produtores e usuários da informação científica relativa ao risco, com o objetivo de que a sociedade compreenda a informação disponível em cada momento histórico e possa realizar escolhas, sociais e individuais com a melhor informação possível.

Talvez pela dificuldade em lidar de modo adequado com as incertezas do conhecimento existente e com a necessidade de tomada de decisões, os gerentes do risco sanitário têm falhado visivelmente na função de compartilhar com a sociedade a tarefa de escolher a melhor decisão relativa aos riscos na área da saúde pública, o mesmo acontecendo na área da segurança do consumidor e na de qualidade ambiental.

Outro instrumento de gerência do risco, de aplicação preferencial em situações de incerteza científica, também é pouco conhecido e utilizado, em especial, nos países em desenvolvimento. Trata-se do princípio da precaução, que recomenda a atitude de restringir e de fazer uso controlado das novas tecnologias quando não há suficiente informação para afirmar sua inocuidade.

No caso dos organismos geneticamente modificados, por exemplo, alguns cientistas e reguladores de risco advogam o uso desse princípio, argumentando que a transferência de material genético é uma novidade tecnológica que pode trazer surpresas negativas, devido a sua propriedade de cruzar a barreira da espécie. Assim, o uso dessa tecnologia deveria ser restrito e controlado até que se obtivessem informações seguras no tocante às conseqüências que ela pode produzir sobre a saúde e o ambiente. O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) não se tem manifestado nesse debate, talvez pela falta de experiência acumulada na questão dos organismos geneticamente modificados (OGMs) tanto no campo da segurança alimentar quanto no campo dos experimentos com vacinas, medicamentos e ‘kits" para diagnóstico.

A quase ausência de processos de avaliação do risco nos países periféricos, em virtude de sua posição no ‘mapa da exclusão tecnológica’ mundial, bem como a baixa capacidade técnica e administrativa de seus sistemas de regulamentação sanitária, fez surgir a tendência à renúncia de prerrogativas por parte das autoridades sanitárias desses países, os quais aceitam, em graus cada vez mais abrangentes, a regulação estabelecida pelas agências dos países mais desenvolvidos – em particular, os Estados Unidos e os da Europa – deixando de exercer sua função regulatória plena e abrindo mão, inclusive, de um possível papel estratégico no desenvolvimento nacional.

Saudada por alguns – em especial, por economistas – como solução lógica para a realidade de escassos recursos públicos e para a agilidade da nova ação estatal necessária à concorrida globalização dos mercados, a renúncia de prerrogativas perpetua um círculo vicioso de dependência que se manifesta não somente no plano do conhecimento científico e tecnológico, mas também no plano político da democracia, da soberania e da governabilidade local.

Até mesmo países poderosos, como a Rússia, estão deixando de investir em sistemas de regulação sanitária e baseiam suas ações de gerenciamento do risco nas decisões emanadas por agências dos países centrais – especialmente, a Food and Drug Administration, nos Estados Unidos. Embora seja lógica a utilização das informações relacionadas à avaliação do risco produzidas nos países mais ricos, a política de não investir em suas agências regulatórias e de substituir a gestão local do risco pelas decisões adotadas naqueles países é questionável nos países periféricos. Felizmente, nos últimos anos, o governo brasileiro definiu-se por um caminho de investir na plena estruturação de sua capacidade regulatória.

A globalização do mercado trouxe a necessidade de revisão da forma e das funções do Estado – em especial, nos países periféricos, mais sujeitos a receber os impactos da globalização do que a produzi-los. Os objetivos e as diretrizes das reformas de Estado realizadas nos países centrais foram adotados acriticamente nos países periféricos, como, por exemplo, os latino-americanos, apesar de apresentarem história e problemas diferentes dos primeiros, bem como dessemelhante inserção no cenário mundial da ciência, da tecnologia, da produção e do comércio internacional.

O Brasil não foi exceção e, em suas duas etapas de reforma no aparelho do Estado, implementou o receituário fundado na redução do tamanho e do custo do Estado, na abertura comercial e na liberação de preços, além do ajuste fiscal e do emprego de instrumentos de mercado que visavam o aumento da eficiência do gasto público. A substituição do modelo burocrático de administração pública – embora precariamente implantado no país – pelo modelo gerencial, fundamentado nos controles ex post, foi a principal diretriz da reforma brasileira. Nesse contexto foi criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária que, incluída no Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, completa uma rede de instituições responsável pela implementação, no País, da regulação do risco sanitário relativa ao campo da saúde.

Essa rede tem a missão de efetivar a regulação do risco sanitário em moldes gerenciais, superando os entraves típicos da administração pública brasileira que, ao contrário do que afirma o Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado, não se localizam especialmente na existência de uma administração burocrática racional-legal. Pelo menos na área da vigilância sanitária, a formação de uma organização burocrática para a administração pública – pessoal qualificado, carreira, formalidade das relações e assim por diante – sempre constituiu um desafio para os seus dirigentes.

A informalidade, a indiferenciação do mérito dos funcionários e o estilo clientelista de fazer política, além do corporativismo, entre outros problemas, fazem parte do desafio de operacionalizar a nova Agência e o novo Sistema que, apesar do longo período de gestação, nasceram em ambiente de escasso debate técnico e político. Essas duas dimensões – a técnica e a política – segundo Lindblon (1980), são igualmente necessárias para elaborar políticas públicas mais eficientes nas soluções dos problemas sociais e para tornar o processo decisório mais sensível ao controle social. Enquanto o plano da racionalidade técnica demanda a análise de informações científicas, profissionais e de indicadores sociais e econômicos, a abordagem política exige a participação democrática dos grupos sociais interessados.

Paradoxalmente, no Brasil, os órgãos e entidades que fazem parte do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) não participaram do processo decisório que criou a Agência e formalizou o sistema em moldes legais. O processo de criação da ANVISA e do SNVS expressa a precariedade da consciência e percepção da interdependência, assim como da existência de interesses comuns e de laços de unidade entre os gestores do sistema, da mesma forma que entre estes e a cidadania organizada. Ficou evidente a dificuldade de conceber um modelo de regulação sanitária de forma participativa, em parceria com os diferentes níveis de governo envolvidos com a questão e com todos os segmentos sociais interessados.

Assim, por um lado, torna-se previsível que o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, enquanto modelo de coletivização da administração das externalidades próprias desse campo, padeça da carência de articulação, de cooperação e de ação coletiva na operacionalização das políticas nacionais de vigilância sanitária.

A criação das agências regulatórias, como a ANVISA, por outro lado, tem suscitado preocupações a respeito de seu controle social. Organismos independentes em termos administrativos e financeiros que conferem estabilidade aos seus dirigentes, as agências acumulam diversas vantagens, entre as quais aquelas de uma nova institucionalização, que detém conhecimento específico e especializado, além de horizonte de longo prazo de ação. Depois de nomeados, seus diretores, em todos os escalões, convertem-se em atores políticos de direito. Têm carreiras próprias e interesses institucionais que podem não ser congruentes com as necessidades sanitárias. Acumulam grande poder de negociação ao manejar poderosos recursos de informação especializada e de autoridade delegada.

Em geral, as agências formam o nódulo central de uma vasta rede temática que inclui pesquisadores acadêmicos, técnicos dos níveis subnacionais, representações dos consumidores, de interesses econômicos, de organizações profissionais e outros grupos sociais. Embora possa dialogar intensamente com esses grupos, a burocracia das agências detém a liberdade de escolher quais idéias e propostas vão adotar. As agências ainda detêm grande poder de discricionariedade e concentram os três poderes – executivo, legislativo e judiciário: elaboram legislações, fiscalizam e julgam os descumprimentos. Contudo, esses poderes são tradicionalmente separados nas sociedades democráticas exatamente para efeitos de equilíbrio.

Não submetidas ao voto popular e independentes das influências dos partidos, pelo menos teoricamente, as agências têm sua legitimidade mais relacionada à sua eficiência. Em verdade, a credibilidade é a chave de sua legitimidade, que é abalada sempre que elas mostram dificuldade em garantir o cumprimento das políticas regulatórias. Assim, uma fraca capacidade fiscalizatória retira sua legitimidade junto às entidades reguladas e à opinião pública.

Embora esses recursos de poder suscitem preocupações relacionadas ao controle social das agências, outro nível de argumentação pode ser invocado em favor de sua existência. A ANVISA, por exemplo, tem grandes e poderosos conglomerados econômicos entre as empresas e estabelecimentos regulados. Em muitos casos, são eles que detêm o conhecimento e a informação necessários à ação regulatória. Uma interlocução dessas empresas com um órgão de pouco poder de especialização e de precários recursos políticos desequilibra a relação e pode criar melhores condições de ‘captura’ dos técnicos da Agência pelos interesses particulares.

Entretanto, foi a grande concentração de poder, associada à opacidade administrativa e ao excesso de gastos com procedimentos ineficazes das agências americanas nos anos 60 a 80, que levaram ao surgimento do fenômeno da ‘captura das agências’ pelos agentes econômicos objetos de sua regulação, ficando esses órgãos envolvidos pelas empresas que deveriam regular, em detrimento dos interesses coletivos.

A doutrina do Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado argumenta que quanto maior for a autonomia e quanto mais descentralizadas e desconcentradas as ações com controles a posteriori, mais eficientes serão os serviços. Em contrapartida, maior será o risco de corporativismo, corrupção e clientelismo. Para os formuladores da política do Plano, entretanto, a solução para esse problema já estaria colocada: afora os mecanismos de controle interno e externo tradicionais – tribunais de contas, sistemas de controle interno – os controles democráticos realizados pelos parlamentos – principalmente, os partidos de oposição – e mecanismos tais como os conselhos formais e a imprensa seriam suficientes para o controle da administração gerencial. Em outras palavras, a administração gerencial da reforma brasileira pressupõe a existência de um regime democrático razoavelmente estabelecido, que, pelas suas instituições, faria automaticamente o controle necessário às agências.

A avaliação da suficiência desses controles quanto à atuação das agências – em especial, da ANVISA – não cabe no escopo deste trabalho. Entretanto, é legítimo o questionamento dos mecanismos sociais de controle propostos, tendo em vista que: i) são muito generalistas para serem aplicados às agências regulatórias, considerando a quantidade de poder que elas concentram e a natureza altamente especializada de seus objetos; e, ii) dependem de instituições políticas solidamente plantadas na cultura brasileira, o que contrasta com a fragilidade da organização política e dos recursos de poder político da maioria da população.

O modelo administrativo representado pelas agências foi implantado no Brasil em busca de respostas mais eficientes para o mercado e para a sociedade. Entretanto, parece que ainda não se chegou a uma equação satisfatória em relação ao controle social e à eficiência dessas agências. Tanto os controles relacionados à responsabilização e transparência administrativa (accountability), quanto os que analisam a eficiência das agências, configuram áreas que estão a exigir maiores e sucessivos estudos de sua eficácia.

O componente federal do SNVS foi completamente reestruturado com a criação da ANVISA em substituição à SVS/MS. A nova forma jurídica de autarquia especial e suas prerrogativas, o salto orçamentário, o elenco de cargos comissionados, a possibilidade de contratação temporária de pessoal, a autonomia administrativa e sua organização em moldes gerenciais, entre outros recursos, trouxeram a possibilidade de fortalecimento da ação federal. Esses recursos permitiram, ao componente federal, maior capacidade de execução de suas competências e de coordenação do Sistema, de comunicação, até mesmo de presença, dentro das suas competências, nas unidades federadas e, eventualmente, nos municípios, de forma mais organizada, por parte das gerências do nível federal.

Em contrapartida, os órgãos estaduais de vigilância sanitária, não passaram por transformação semelhante à que ocorreu no nível federal. Embora o levantamento realizado tenha explicitado um mosaico diversificado de condições e recursos, o que não recomenda generalizações, pode-se perceber que a grande maioria dos estados sofre de sérios problemas estruturais – em particular, na área de recursos humanos: suficiência, qualificação, salários, plano de cargos, carreira de fiscal e carga horária, entre outros problemas. A institucionalização atual das ações de vigilância sanitária nas secretarias estaduais não se coaduna com as competências e as funções que o Sistema reserva a esse nível de governo.

A natureza interdisciplinar da vigilância sanitária está a exigir, nos estados, nova configuração organizacional – na qual sejam contemplados os suportes nas áreas jurídica, de recursos humanos, laboratorial, informacional e de organização administrativa – que lhes dê a necessária eficiência administrativa no cumprimento de suas competências, notadamente, na dimensão fiscalizatória. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado contemplou apenas o nível federal do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Como este Sistema somente funciona com complementaridade entre os três níveis de governo, e os outros dois exibem muitos problemas, estes também precisam ser contemplados com reformas. Segundo as informações coletadas neste estudo, um volume maior de recursos e um nível mais elevado de autonomia de gestão seriam imprescindíveis para a efetiva mudança da qualidade administrativa do nível estadual, de forma a promover sinergia e não enfraquecer a melhoria que aconteceu no nível federal desse Sistema.

Entre as principais deficiências apontadas pelos dirigentes dos órgãos estaduais de vigilância sanitária, situam-se: i) a carência de recursos humanos especializados; ii) o espaço físico insuficiente ou inadequado; iii) falta de transporte; e, iv) salários baixos.

O assunto da carência de recursos humanos foi, de longe, o mais referido como o principal problema do nível estadual. Entretanto, a interpretação correta dessa questão não se deve restringir às medidas usualmente adotadas, que tendem a enfatizar o aspecto da formação, reciclagem ou especialização dos técnicos. É fundamental, além disso, conferir especial prioridade à questão crítica da necessidade de adequada inserção laboral dos profissionais da vigilância sanitária. Isto significa que, embora seja imprescindível a ação pelo lado da capacitação profissional, a situação exige providências urgentes no que tange à forma de contratação, à carga horária, às prerrogativas de uma carreira de fiscal e, principalmente, ao aspecto dos salários.

Pode-se constatar, nos limites da pesquisa realizada, um grau também baixo de inserção profissional em planos de carreira, que são inexistentes na quase totalidade dos estados. Apenas dois dos estados pesquisados mencionaram que está em estudo a adoção de planos estaduais para os servidores da saúde pública, apesar de ser unânime o reconhecimento desse ponto como o mais crítico nos sistemas estaduais. Os fiscais da vigilância sanitária não gozam das prerrogativas dos outros fiscais do Estado, tais como a proteção judiciária, um plano de cargos e gratificações por rendimento, entre outras.

Nos órgãos estaduais de vigilância sanitária foi referida também, em graus diferentes, uma administração política tradicional: alguns dirigentes apontaram que os casos mais críticos são decididos em instâncias superiores com a inclusão de critérios políticos.

Os Termos de Ajuste e Metas parecem representar a pedra angular da política da ANVISA para a estruturação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). O fundamento desses convênios é a interdependência entre os três níveis de governo na regulação do risco sanitário no Brasil: como autarquia autônoma, a ANVISA assinou um Contrato de Gestão com o Ministério da Saúde, em que constam os recursos repassados mensalmente pelo Ministério à Agência, assim como as metas anuais que esta deve cumprir. Entre as metas acordadas existem diversas que dependem de ações que não são executadas diretamente pelo nível federal, mas sim pelos estados e, eventualmente, também pelos municípios. Deste modo, a ANVISA depende, em certo grau, da eficiência da produção estadual, e/ou municipal para cumprir o seu Contrato de Gestão. O convênio, chamado Termo de Ajuste e Metas, tem o objetivo de repassar recursos para os estados se estruturarem e realizarem as metas nele acordadas.

Como foi visto antes, a transferência de expressivos recursos federais aos estados, subordinados aos convênios do Termo de Ajuste e Metas, traz, em tese, uma perspectiva otimista de mudança do quadro geral de precariedade estrutural dos órgãos estaduais, componente crítico do SNVS. No entanto, é questionável que apenas este tipo de providência seja suficiente para que o nível estadual, em sua diversidade nacional, realize as transformações estruturais necessárias ao adequado funcionamento do SNVS. Os convênios não estão contextualizados em um plano diretor de estruturação do Sistema; apenas definem compromissos específicos de ambas as partes, subentendendo que o resultado final será o reforço da infra-estrutura estadual e, conseqüentemente, do Sistema.

Para a maioria dos dirigentes dos órgãos estaduais de vigilância, o convênio está sendo percebido como possibilidade de obter recursos – que são escassos em sua esfera de governo – para serem aparelhados com a infra-estrutura necessária à plena execução das competências da vigilância sanitária estadual previstas em lei. Mas, em geral, também não manifestam consciência de unidade em termos de sistema.

Esses convênios, por um lado, podem ser vistos como tentativa de suprir a ausência de mecanismos de gestão partilhada e de coordenação política e técnica entre os níveis de governo identificada neste trabalho. Semelhante carência deixa os fluxos de decisão e ação desorganizados, com possibilidades de contestação hierárquica por falta de ação comunicativa e pela responsabilização difusa. Assim, o convênio atuaria como uma forma de criar vínculos e compromissos obrigatórios entre as partes. Entretanto, percebe-se um viés de subordinação dos governos subnacionais ao nível federal, tendo em vista seu poder financiador. Por outro lado, como o Sistema é complexo, envolve três níveis autônomos de governo, a especialização de recursos e aplica-se a realidades bastante distintas, verifica-se, igualmente muitos níveis de interferência política e pontos com poder de veto às ações de controle sanitário.

Outra grave incongruência é identificada no Sistema sob o ponto de vista de gestão: o poder formal de coordenação e decisão – portanto, de controle – está principalmente alocado em uma esfera de governo, o federal; entretanto, o poder e a detenção real da possibilidade de ação fiscalizatória está alocada em outra esfera, o estadual. O Termo de Ajuste e Metas pretende também articular essa fratura de poder, que coloca em risco a eficiência do Sistema. Entretanto, é legítimo questionar-se sobre a adeqüabilidade ou a suficiência desse instrumento para este fim.

A relação entre os níveis federal e estadual parece, portanto, estanque, mais dependente de performances pessoais do que de mecanismos formais e conduta fundamentadas em um corpo doutrinário, com princípios e paradigmas comuns, de compreensão e aceitação tácita por todos os envolvidos.

Outra questão crítica a ser considerada na estrutura do Sistema é a falta de independência orçamentária dos órgãos estaduais de vigilância sanitária. Em geral, seus dirigentes dependem de negociações políticas cada vez que necessitam de recursos para realizar suas atividades, embora estas estejam programadas e façam parte do orçamento aprovado. Ademais, a liberação desses recursos está sujeita a processo administrativo centralizado e demorado. Assim, as licitações, por exemplo, são morosas, dependentes de outros órgãos da administração estadual, o que retira a agilidade necessária a um órgão com função fiscalizatória.

Por sua vez, esse mesmo processo parece não causar problemas em alguns dos estados pesquisados devido ao acesso fácil dos dirigentes ao secretário de saúde e à agilidade do processo administrativo. Entretanto, o caminho da busca de soluções para tal assunto não pode fixar-se na dependência de atitudes mais abertas e/ou de melhor gerência por parte de algumas autoridades. Métodos de programação e de planejamento, flexíveis, eficientes e democráticos podem conferir autonomia orçamentária aos órgãos de vigilância sanitária sem prejuízo do controle dos recursos.

Em relação à suficiência de recursos organizacionais, tanto o orçamento quanto os próprios órgãos estaduais parecem não estar dimensionados conforme a economia dos estabelecimentos e entidades sujeitas ao regime de vigilância sanitária. A grande quantidade de estabelecimentos passíveis de controle ou o trabalho intenso de regulamentação, coordenação, cooperação, controle e avaliação junto às regionais de saúde e aos municípios, não encontra correspondência de estrutura de recursos para poder ser realizada a contento.

Se a diversidade de realidade sanitária e de recursos marca o conjunto dos estados, a situação revela-se ainda mais extraordinariamente heterogênea nos municípios. Os de pequeno porte são maioria – cerca de 91% dos municípios têm menos do que 50 mil habitantes – e apresentam mais dificuldades para realizar as ações básicas de vigilância sanitária. Entretanto, estes 91% abrigam apenas 37% da população, o que mostra que a maioria da população reside em municípios maiores, os quais, em geral, têm órgão de vigilância sanitária e realizam as respectivas ações. Na pesquisa antes mencionada referente ao PAB/VISA, viu-se que, na maioria dos municípios – principalmente, nos que têm mais de 10 mil habitantes –, as ações básicas de vigilância sanitária são efetuadas, muitas vezes, até na ausência de órgão formalizado com essa finalidade.

A instituição do PAB/VISA, como incentivo para que os municípios estruturem serviços de vigilância sanitária básica, ainda que signifique pequenos acréscimos aos orçamentos municipais, parece ter tido impacto positivo e importante na disseminação da necessidade da ação municipal nessa área, embora apenas 65,7% dos municípios tenham referido conhecimento desse tipo de recurso repassado pelo Ministério da Saúde.

Contrariamente aos estados, a maioria dos municípios maiores declarou que a criação da ANVISA – e, conseqüentemente, do SNVS – não trouxe nenhuma melhoria às ações de vigilância sanitária. Tal dado revela o isolamento das unidades municipais enquanto componentes do Sistema. A falta de unidade e de consciência a respeito do modelo coletivizado de administração do risco sanitário parece aqui se exacerbar.

Entre os principais problemas da vigilância sanitária municipal foram indicados, na ordem: i) a insuficiência de recursos financeiros: ii) a interferência política; iii) o número insuficiente de pessoal capacitado; e, iv) o desconhecimento da legislação. Assim como nos estados, a área de recursos humanos é percebida como estratégica para a melhoria das ações municipais. Do mesmo modo, não apenas a capacitação é vista como necessária, mas, principalmente, a inserção profissional e a criação e formalização dos cargos e das funções de fiscal, além do problema salarial. Este problema (re)aparece como um dos pontos mais críticos do SNVS.

Outro aspecto a considerar é a municipalização das ações de vigilância sanitária, referida como um dos principais programas dos órgãos de vigilância estaduais. Os municípios, componentes do SNVS, parecem estar recebendo, gradativa e sistematicamente, grande parte das tarefas antes de competência das vigilâncias estaduais. Entretanto, a pesquisa feita pelo Nescon/UFMG revela que falta estrutura básica à grande maioria deles. O desencontro entre os dados levantados e as informações no tocante a ações de vigilância sanitária repassadas ao Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SAI/SUS) evidencia também a dúvida sobre o que os municípios estão realizando efetivamente em termos de vigilância sanitária.

Não obstante o extensivo trabalho que vem sendo desenvolvido pelos órgãos estaduais para que os municípios assumam a execução de ações de vigilância sanitária, criando legislação e estrutura administrativa suficiente, a inserção dos municípios no SNVS, no momento, parece ser ainda mais frágil do que a dos estados. A pesquisa revela surpreendente grau de desconhecimento dos dirigentes municipais acerca do que acontece nas instâncias gestoras da política de saúde em relação à vigilância sanitária. Desse modo, pode-se inferir que a gestão da política nacional de vigilância sanitária desdobra-se precariamente em conhecimento e em ações concretas nos níveis mais periféricos do Sistema.

A falta de mecanismos formais e legais de coordenação – no plano horizontal, para a construção conjunta de políticas e programas; no plano vertical, para a eficiência da comunicação e da ação de cada estado com o nível central – sugere um arranjo organizacional/institucional de baixo grau de coesão e de compromisso estrutural entre as partes do Sistema.

O processo de incorporação das ações de vigilância sanitária pelos municípios, no entanto, merece análise mais aprofundada. Neste nível de governo, não tem sentido uma estruturação dos serviços de vigilância sanitária de forma fragmentada e desarticulada dos outros serviços, em especial, de outras ações de proteção à saúde. Mesmo com suas diferentes interpretações, a concepção de vigilância à saúde ou vigilância da saúde no nível dos municípios parece oferecer avanços conceituais, metodológicos e instrumentais que poderiam contribuir para a redefinição dos processos de trabalho e para a reorganização do modelo de serviços na área da saúde que constitui atualmente o principal desafio dos sistemas municipais de saúde.

Dessa forma, a existência de órgãos municipais de vigilância sanitária, principalmente, na imensa maioria dos municípios pequenos e médios, não seria imprescindível, pois as ações dessa área seriam promovidas no conjunto das práticas de ação social de diferentes extrações que transcendem o conhecimento e o modo tradicional de executar a prevenção e a assistência em saúde, o que pode significar ruptura no modelo assistencial tradicional e a construção de ação mais global de cada comunidade no tocante aos seus problemas sanitários.

No material utilizado pelos estados para a implementação do processo de municipalização da vigilância sanitária – recolhido nos estados pesquisados, com exceção da Bahia – não há referências a essa nova abordagem da vigilância da saúde. Em alguns órgãos estaduais de vigilância sanitária verificam-se indícios de esforços para integrar as ações de vigilância sanitária e as de vigilância epidemiológica com base na concepção de vigilância da saúde. Entretanto, parece ter ocorrido apenas uma aproximação dessas duas áreas no organograma administrativo com a criação de coordenadoria comum a elas, não se incorporando a concepção mais elaborada da vigilância da saúde.

No entanto, vale ressaltar, que a municipalização das ações de vigilância sanitária, mesmo exibindo os problemas aqui comentados, tem disseminado a necessidade de os municípios estruturarem-se e atuarem nessa área. Caso a maioria dos municípios, por exemplo, se prepare e execute as ações básicas de vigilância sanitária, o SNVS consolidará avanço importante em sua implantação. Para isso, uma reconceitualização da descentralização, fundada na sua interpretação como meio ou instrumental estratégico para que o SNVS atinja seu objetivo de reduzir ou eliminar riscos à saúde, parece ser imprescindível.

A descentralização deve ser pensada e executada de forma a permitir a suplementaridade às ações de cada nível de governo, principalmente porque há uma necessária divisão de trabalho entre eles na conformação do sistema. Todas as espécies de riscos regulamentados devem ser controladas pelo SNVS. Quando a unidade de execução preferencial não for competente ou suficiente para executar o controle necessário, as outras unidades devem agir suplementarmente. Como salientaram alguns dirigentes estaduais ao comentarem o processo de municipalização, a ação executiva da vigilância sanitária estadual deverá ser necessária por muito tempo ainda.

Da análise sobre o SNVS feita neste estudo, é possível extrair outras considerações que complementam a sua caracterização.

O arranjo do SNVS opera com vínculo fragilmente estruturado em termos de diretrizes, de gestão compartilhada, de consciência da interdependência e de laços de unidade nacional. Utilizando o esquema de Hochman (1998) – apresentado no Capítulo I – para mapear as possibilidades teóricas da administração dos efeitos negativos da interdependência sanitária, este estudo indica que o SNVS funciona com a mistura das três alternativas:

I – ação individual das unidades na solução de seus problemas e na defesa contra os efeitos externos causados pelas outras unidades. Esta ação é efetivada independentemente da realização da mesma ação pelas outras unidades, de qualquer arranjo de cooperação ou mecanismo de cooperação. O benefício é apropriado pela população no limite da autoridade respectiva e de sua jurisdição, significando uma relação autárquica entre as unidades. Os estados mais desenvolvidos movimentam-se nessa perspectiva. Um exemplo de ação desse tipo seria a legislação do estado de São Paulo e a determinação do Centro de Vigilância Sanitária que proíbe os alimentos portadores de organismos geneticamente modificados em seu território, medida não concretizada pelo nível federal e pela maioria das outras unidades federadas;

II – uma ação também individual, porém simultânea e coordenada, de todas as unidades para enfrentar os efeitos da relação de dependência recíproca. Assim, cada unidade agindo sobre seus problemas, impediria que eles atingissem as demais, da mesma forma que não permitiria que os problemas de outras unidades a alcançassem. Esta alternativa – que pressupõe compromisso e cooperação entre os envolvidos, estabelecidos ou não por meio de acordos ou convênios que normatizam as relações entre as unidades – é arranjo voluntário. A Câmara Técnica de Vigilância Sanitária do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde parece movimentar-se em busca dessa possibilidade;

III – a transferência da administração da interdependência para um organismo capaz de agir sobre todas as unidades envolvidas, que regulamente e implemente políticas de caráter compulsório, ocorre por meio da instituição do SNVS, sob a coordenação da ANVISA. Essa coletivização deve administrar os custos da imposição de externalidades de umas unidades sobre as outras. Sua autoridade tem poder coercivo, amplitude e centralidade territorial. A proposta contida na criação da ANVISA e do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária tem esse propósito de constituir o recurso da coletivização da administração da interdependência.

A autoridade do SNVS, entretanto, não deve confundir-se com a direção da ANVISA, embora isso aconteça na prática. Já foi mencionado que o Sistema carece de recursos formais de gestão compartilhada entre as unidades que o compõem. Enquanto gestor da vigilância sanitária no Brasil, o SNVS precisa de uma instância diretora colegiada formalmente constituída.

A compulsoriedade estabelecida legalmente deveria, em tese, neutralizar os problemas do surgimento de quatro categorias distintas no perfil de atuação estadual quanto ao compartilhamento da gestão do risco: i) o oportunismo – das unidades que buscam beneficiar-se pelas realizações das outras unidades; ii) a omissão – daquelas que operam por negligência; iii) a incompetência – das que se revelam inaptas à realização de suas atribuições; e, iv) a pobreza – das unidades que sofrem de extrema penúria de recursos operacionais.

O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária é precaríssimo em termos de instrumentos jurídicos que definam formalmente as relações e estipulem as sanções ou formas de superar a inação, a inépcia ou a falta de recursos de alguma unidade em cumprir com a sua parte de competências.

Portanto, o SNVS institucionaliza o resultado da coletivização possível da administração dos efeitos externos negativos da produção e circulação de produtos e serviços com potencial de risco sanitário no Brasil. As unidades-estado são coordenadas pelo nível federal e, ainda que detenham autonomia em sua jurisdição, participam compulsoriamente de um arranjo que precisa ser solidário para tornar-se eficiente. As unidades-município, que também desfrutam de autonomia em suas jurisdições, são coordenadas pelos estados e têm, em geral, uma inserção ainda incipiente ao SNVS, embora os municípios maiores – onde reside a maior parte da população brasileira – que vêm atuando há mais tempo nessa área, estejam melhor estruturados e possuam mais consciência da importância da execução das ações de vigilância sanitária.

No entanto, a operacionalidade do modelo parece corresponder a graus mais ou menos consolidados das três alternativas de ação antes comentadas, mais do que à operação de um sistema, com leve ascendência da alternativa autárquica. Isto quer dizer que, mesmo sendo resultado de um arranjo para a administração coletiva dos efeitos externos da produção e circulação de produtos e serviços de interesse sanitário, o modelo do SNVS opera com atitude preponderantemente individual de suas unidades, ainda distante de uma ação coletiva articulada e cooperativa, fundamentada na consciência da interdependência social, dos efeitos externos, da existência de interesses comuns e de laços de comunidade nacional.

Contribui significativamente para esta situação a fragilidade da legislação em configurar um modelo sistêmico, na medida que não regulamenta de maneira suficiente as relações entre as unidades na gestão do Sistema, parecendo-se, de fato, mais com uma estrutura do tipo ‘colcha de retalhos’ agregada ao longo dos últimos vinte anos e sem unidade de doutrina técnica e jurídica.

Desse modo, o modelo brasileiro de vigilância sanitária, apesar da compulsoriedade da participação das unidades federadas, funda-se antes na vontade das autoridades locais em agir de forma a providenciar uma articulação sólida e sistemática que efetive a coletivização da administração dos efeitos externos da precariedade de muitos dos estados. Em outras palavras, o SNVS permanece como arranjo quase voluntário.

Embora a decisão de participar da administração das externalidades seja compulsória pela instituição das leis já comentadas, cada unidade tem um grau de consciência dos problemas da área e de compromisso com a sua superação e calcula seus benefícios e o custo de vincular-se mais ou menos ao Sistema, de participar mais ou menos de sua operacionalidade. Nesse sentido, a noção de interdependência das unidades, junto à consciência das externalidades produzidas em cada unidade, aparecem como categorias chaves para a análise da estrutura e o funcionamento do modelo de vigilância sanitária brasileiro que, todavia, encontra-se em processo de mudança para alcançar maior efetividade em sua missão institucional.

O estudo realizado aponta os estados como o elo principal do Sistema não somente porque fazem o trabalho de articulação entre os outros dois níveis de governo, mas também porque detêm a carga mais substancial do trabalho de fiscalização do SNVS, especialmente, em média e alta complexidade. Os estados têm ainda que atuar estrategicamente com a imensa diversificação de realidades municipais, no sentido de garantir o controle sanitário necessário às populações.

Ainda que carente de substrato jurídico, técnico e administrativo e fruto de processo não planejado e participativo, este Sistema tem características de uma solução singular para o caso da regulação sanitária no Brasil. Um arranjo misto que: i) exige o entendimento e a ação racional entre os níveis de governo e os entes federados; ii) pretende eliminar as superposições e o desperdício de recursos, ao mesmo tempo em que garanta a proteção à saúde da população; iii) subentende que o objetivo comum deve superar as barreiras dos interesses divergentes no cenário da política nacional e local; e iv) aposta no entendimento acerca da complementaridade das ações dos três níveis de governo.

O SNVS, entretanto, padece de graves problemas que podem comprometer, de forma fatal, a sua plena realização. Sem um plano diretor estratégico para sua implementação, a política formulada pelos gestores das partes componentes constitui-se principalmente em negociar e definir transferências de recursos. Como as leis definem o que compete a cada um fazer, presume-se que o resultado final seja o funcionamento do Sistema, embora este esteja precariamente definido e apoiado em interpretação inadequada do processo de descentralização.

A fragilidade institucional do SNVS não afeta apenas a área do risco sanitário. Ela compromete a ação regulatória do governo tanto no plano interno quanto no externo, com repercussões negativas mesmo da área econômica.

A literatura a respeito da regulamentação internacional mostra que a institucionalidade interna – diferentes modelos ou arranjos de organização e de relação entre o legislativo e o executivo; as diferentes organizações da administração pública e funcionamento da burocracia civil; a força dos sindicatos; as regras eleitorais; o número de atores com poder de veto (jurídico, político, técnico, financeiro) – faz a diferença na mediação dos impactos das políticas internacionais sobre a política doméstica. A estrutura dos interesses internos, a natureza das instituições domésticas e a distribuição interna da informação são elementos cruciais que definem as possibilidades de negociação na arena da regulamentação internacional e nacional.

Essa institucionalidade diz respeito também a estruturas bem montadas nas áreas de informação, de documentação, de pessoal qualificado em comércio e direito internacional e em diferentes tecnologias, de recursos de comunicação e de deslocamentos ágeis e eficientes, de argumentação científica, de argumentação política, assim como de pesquisas nas áreas de importância estratégica para o bem-estar e o desenvolvimento da sociedade. Assim, a institucionalidade interna – política, jurídica, científica, tecnológica, administrativa e ética – solidamente estruturada em organismos públicos e privados, além de regulada por uma democracia qualificada, parece ser fator de importância chave no processo interno de tomada de decisões relacionadas com as pressões da internacionalização da economia e da globalização.

O SNVS – mais do que suas partes componentes – é uma dessas instituições que podem filtrar e moldar as demandas da globalização na constituição da política interna, sem deixar o País demasiadamente vulnerável aos movimentos diretos da atividade econômica mundial, atuando na defesa da democracia nacional e de uma regulação mais soberana. Nesse sentido, sua fragilidade institucional, ao lado da fragilidade geral das instituições brasileiras, é questão crítica.

Uma parte considerável dos países em desenvolvimento – pelo menos, na América Latina – já desistiu de construir essa institucionalidade no plano da regulação sanitária ao adotar a política de aceitar mais ou menos automaticamente os regulamentos e os controles realizados pelos países centrais. Esse fenômeno, que chamei de renúncia de prerrogativas das autoridades sanitárias, resulta da incapacidade de fazer operar os sistemas domésticos de regulamentação e controle sanitários, em vista da fragilidade das instituições científicas e técnicas e da tendenciosidade das instituições políticas nos países periféricos, às quais somam-se as pressões das empresas e dos movimentos internacionais de harmonização da regulamentação sanitária.

A renúncia é adotada para simplificar e agilizar os trâmites regulatórios a que estão submetidas as empresas, com o objetivo de criar vantagens competitivas para que permaneçam no país. Com a abertura alfandegária global, a produção não precisa mais ficar confinada às fronteiras nacionais; pode se localizar em qualquer lugar do mundo que ofereça vantagens adicionais aos produtores. Essa produção difusa dificulta o controle sanitário de tal forma que muitos países estão deixando de realizá-lo, validando o que os reguladores dos países centrais fazem mediante a justificativa de que estes são bem mais preparados para a tarefa de avaliação do risco sanitário. Entretanto, deixar de construir essa institucionalidade na área da regulação sanitária tem conseqüências bem mais amplas e desprepara o país para a mediação necessária de todos os efeitos da internacionalização – políticos, sociais, científicos ou econômicos – no plano doméstico da regulação sanitária.

Exercer papel importante nas mediações entre a política sanitária internacional e os interesses domésticos, no entanto, não depende apenas da eficiência técnica e política do SNVS. Como foi dito anteriormente, é a qualidade da institucionalização doméstica, em todas as áreas, que faz a diferença. Ademais, é incipiente a atuação do País na avaliação de risco, que é precisamente a atividade que gera o argumento mais legitimado no cenário internacional: o dado científico.

Assim, é imprescindível uma estratégia governamental que estabeleça a necessária articulação da vigilância sanitária brasileira com as demais interfaces da gestão do risco sanitário, como a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), o Ministério da Ciência e Tecnologia, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura, entre outros organismos, possibilitando a construção de uma política intersetorial efetiva e diminuindo a falta de coesão interna governamental nessa área.

Os processos internacionais de harmonização da regulamentação sanitária parecem ter aceitação tácita pelas autoridades sanitárias dos países menos desenvolvidos, independentemente das prioridades ou dos objetivos que esses processam tenham. Em geral, seguem uma lógica compatível com a versão ‘forte’ da globalização, que entende serem quase inexistentes as possibilidades de intervenção doméstica, deixando pouco espaço para a ação dos atores nacionais. Orientam-se também por uma lógica científico-reducionista, isto é, não questionam os fundamentos e a lógica da produção/produtividade e as conseqüências de natureza diversa, que extrapolam as avaliações econômicas de custo-benefício de curto prazo.

Uma das novas funções do Estado no contexto da internacionalização crescente da economia é a de gerenciar os conflitos entre as demandas por políticas internas e as pressões ou negociações internacionais. O gerenciamento do risco sanitário envolve essas duas dimensões. As negociações internacionais não podem ser a única fonte de argumentos ou mesmo o argumento principal para a determinação das políticas internas, que devem ditar ações voltadas às necessidades da realidade nacional ou regional. A insuficiência da institucionalidade científica nacional e a conseqüente fragilidade da avaliação de risco no País também não podem depletar a ação do gerenciamento do risco, especialmente porque o argumento técnico ou científico, apesar de ser principal, não é o único que deve ser tomado em conta.

Com exceção da harmonização efetuada no Mercosul, que tem objetivo próprio, derivado da intenção de construir uma união aduaneira regional, os processos de harmonização/regulamentação analisados têm determinantes não relacionados com necessidades sanitárias nacionais. Conforme destacam vários autores da área das relações internacionais, citados no Capítulo II, os países centrais, individual ou coletivamente, embora ajam guiados pelos cálculos de seus interesses, utilizam a linguagem do bem comum e justificam sua ação em nome da comunidade internacional. Os interesses particulares são traduzidos para a linguagem dos princípios universais em um esforço para persuadir os outros estados a aceitá-las. Assim acontece com os processos de harmonização dos regulamentos na área dos medicamentos, cosméticos e outros, além da área de alimentos.

Para os países periféricos parece ser necessário, em primeiro lugar, questionar a necessidade desses processos e sua importância na agenda de prioridades das respectivas agências regulatórias. Em segundo lugar, deve-se planejar a participação neles conforme uma estratégia de desenvolvimento da ação regulatória. Dito de outra maneira, é preciso calcular estrategicamente o custo e o benefício, escolher onde e como participar e preparar-se. A participação, por si só, não equaciona a marginalidade dos países periféricos nesses processos.

Esse gerenciamento de dois níveis – necessidades internas x pressões internacionais – embora realizado principalmente pelo nível federal do SNVS – ou seja, pela ANVISA – tendo em vista que o Governo Federal é o agente da interlocução com outros Estados-nação, manifesta-se também nos outros níveis de governo que podem se pronunciar, mesmo que as questões sejam nacionais e tenham dimensões que transcendam a área da saúde.

A velocidade dos avanços científicos e dos processos de produção e de trocas comerciais representa um desafio para a atualização da ANVISA e de todo o SNVS. Historicamente, o sistema de vigilância sanitária demora a adequar-se às novas demandas do processo produtivo de bens e serviços, mostrando-se incapaz de realizar, em tempo, a função de regulação do risco sanitário. Os organismos geneticamente modificados, por exemplo, já estão demandando regulamentações em seus derivados nas áreas dos alimentos, dos fármacos e das vacinas. A realidade da manipulação genética e dos problemas resultantes das novas e reemergentes doenças infecto-contagiosas traz também questões de difícil gerenciamento. Essa dificuldade de atualização dos agentes regulatórios pode ser percebida como um dos determinantes dos processos de harmonização ou de regulamentação internacionais, no sentido de que pressionam os países a assumir os regulamentos aprovados, que são mais atualizados.

Nesse sentido, a reforma da estrutura político-administrativa das partes componentes do SNVS, embora represente avanço importante para o sistema de regulação sanitária, não é suficiente. Para possibilitar que o SNVS se adapte ao SUS, como estabelece a sua proposta, a reforma deve avançar para uma mudança cultural significativa na forma de conceber e administrar a vigilância sanitária no Brasil. Um novo olhar e uma nova concepção da regulação do risco sanitário – apoiados em amplo e detalhado diagnóstico das necessidades sanitárias brasileiras – são essenciais para aproximar a ação do SNVS dos determinantes sociais do processo saúde-doença, contemplando a devida participação social.

As fragilidades do SNVS antes apontadas indicam uma urgente necessidade de sua revisão, fortalecimento e adequação às necessidades do País. As graves carências estruturais do nível federal – exibidas pela extinta Secretaria de Vigilância Sanitária – parecem estar sendo equacionadas com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que tem o estatuto de agência regulatória no plano da administração pública federal. Entretanto, as sérias carências dos outros níveis de governo – notadamente, aquelas dos estados – não sofreram intervenção de tamanho significado político-administrativo, ficando quase incólumes em suas precariedades. No caso do SNVS, as partes são dependentes entre si em termos de cumprimento de suas competências e, quando uma não funciona direito, a repercussão acontece em todo o Sistema.

Chama a atenção o fato de que o SNVS fundamenta-se em uma racionalidade de consenso, que deve ser buscado na dimensão da política, cujo processo de tomada de decisões é difícil e mais demorado. Se a proposta do modelo brasileiro de regulação sanitária fosse outra, de menor interdependência e de uma divisão não exclusiva das competências das três esferas de governo, as carências estruturais das unidades do sistema não seriam tão importantes, pois poderiam ser compensadas pelos sistemas dos outros níveis de governo. Uma análise sobre o tipo de pacto federativo existente em nosso país poderia ser bastante valiosa em termos de elucidar mais detalhadamente as dificuldades de uma ação cooperativa entre as unidades que compõem o SNVS.

A cultura de centralização no Estado, característica dos anos 70, quando foi elaborada a maioria das leis que regem a área da vigilância sanitária, foi amenizada com a legislação do SUS, que atribui bastante importância à participação social em sua gestão. Entretanto, essa diretriz não está traduzida na forma e especificidade que o campo da vigilância sanitária exige. Aos entes regulados ainda é atribuído um comportamento mais passivo, conferindo-se escassos canais e formas de envolvimento aos outros órgãos de representação social. No plano da doutrina regulatória diagnostica-se, desse modo, a permanência de uma visão tradicional na área de vigilância sanitária, que atribui principalmente ao Estado a responsabilidade pela qualidade dos produtos e serviços de interesse para a saúde.

Essa inadequação, aliada à fragiliadade da doutrina regulatória, também é um dos principais determinantes da baixa coesão do Estado na formulação e condução de uma política de regulação do risco sanitário, explicitada na fragmentação da ação entre os diferentes órgãos públicos envolvidos com o tema, mesmo no interior do SNVS. Além disso, essa doutrina privilegia o controle cartorial dos processos que envolvem o risco sanitário e não contempla adequadamente a relação do controle sanitário com a produção do conhecimento científico.

O estudo aqui realizado permite a conclusão de que, atualmente, o SNVS se encontra mal estruturado para enfrentar os problemas cotidianos da vigilância sanitária tanto no plano de sua arquitetura jurídica – que não normatiza a disposição e a ordem das partes do sistema – quanto no da disponibilidade de seus recursos organizacionais e operacionais – que não lhe permite principalmente a atuação eficaz, principalmente a fiscalizatória.

Além disso, o SNVS está distante do campo científico e desaparelhado para controlar a área de pesquisa e desenvolvimento, parte fundamental de suas competências, que o aproximaria da dimensão da avaliação do risco, substrato básico do gerenciamento do risco sanitário na sociedade.

Quanto à dimensão da participação social, o estudo da vigilância sanitária, desenvolvido sob a perspectiva dos processos normativos no plano internacional, fez ressaltar curiosamente a importância crucial da internalização no País, da visão regulatória da vigilância sanitária no plano cultural das comunidades, em particular, no nível local. Talvez pelo formato do arranjo assumido e de sua concepção regulatória, a vigilância sanitária não faz parte da cultura da vida social nacional.

O SNVS precisa de uma doutrina que mude a concepção tradicional da ação em vigilância sanitária e que faça com que a preocupação com o risco sanitário e a qualidade de vida seja incorporada pela sociedade às culturas locais, regionais e nacional. Um dos caminhos – talvez, o principal – para esta mudança cultural traduz-se na incorporação da sociedade, em todas as suas formas de representação, aos debates dos temas mais importantes à regulação do risco em cada local ou região, notadamente, os polêmicos assuntos típicos do avanço tecnológico contemporâneo. Em outras palavras, o controle sanitário deve transcender a ação dos órgãos públicos, que têm o dever de realizar a maior difusão da informação disponível a respeito dos riscos, ao mesmo tempo em que deve ouvir o mais detalhadamente possível a percepção popular acerca dos mesmos riscos e assumir a defesa intransigente da saúde coletiva.

No momento em que se verifica a tendência à deterioração cada vez mais crítica do ecossistema – que compromete o acesso aos bens mais básicos, como: água, ar e comida de qualidade – e que cresce a preocupação com o desenvolvimento ambientalmente limpo, vislumbra-se importância também cada vez maior para a área de vigilância sanitária e para sua ação articulada com outras instituições regulatórias governamentais e com a sociedade.

O desenho do SNVS – de responsabilidade compartilhada em competências exclusivas por níveis de governo – indica a necessidade de intenso trabalho político entre os gestores dos três entes federados e deles com a sociedade. Sem esse trabalho, que considere as percepções dos grupos sociais e as reivindicações, os direitos de autonomia e de legitimidade dos entes subnacionais e que promova nova concepção da vigilância sanitária no Brasil, o Sistema não efetuará as mudanças estruturais e culturais imprescindíveis para que tenha condições mínimas de ser eficiente, apesar das transferências de recursos por meio dos termos de ajuste e de outros instrumentos.

Uma nova cultura para a regulação sanitária deve ir além da consideração ’científica’ dos problemas, assim como a participação da sociedade deve ser algo mais do que a audição das vozes ativas e bem articuladas dos representantes das grandes corporações. Como afirma Leite (2000:82), referindo-se à querela dos alimentos transgênicos, o círculo vicioso das argumentações interesseiras de qualquer das partes somente pode ser rompido por meio de "um esforço generalizado de informação que permita a um número maior de pessoas e grupos ganhar voz nesse debate complexo, minado por toda a sorte de armadilhas retórico-científicas".

A educação científica do público deve ser parte fundamental da ação regulatória do SNVS, que não pode permanecer passivo quanto a esses temas e essa cultura de isolamento na tomada de decisões que afetam a vida cotidiana dos cidadãos.

A informação científica e a técnica detalhada são essenciais para o trabalho dos agentes do SNVS, mas sua linguagem e correta interpretação não são acessíveis à maioria dos grupos sociais e, em virtude disso, ensina pouco sobre a maneira de estar no mundo e perceber as novas tecnologias. Uma das tarefas principais do SNVS, de um lado, seria reunir as (complexas) informações técnicas e científicas necessárias a cada assunto e, de outro, apreender a percepção popular e a lógica empirista a respeito dos mesmos assuntos, considerando-as também legítimas, e realizar o que Santos (1996), em magistral construção, chama de reencontro entre a ciência e o senso comum. Em outras palavras, o conhecimento científico aprende com o senso comum e transforma-se em saber prático, em informações capazes de tornar o risco envolvido em cada assunto compreensível à população, a qual orientaria assim suas ações com nova qualidade. Desta maneira, o conhecimento científico é traduzido em saber prático e efetiva-se ao orientar as decisões cotidianas; o conhecimento vulgar, por sua vez, reconfigura-se e transforma-se em conhecimento e sabedoria de vida. A insistência com que se refere, no presente estudo, à importância da política de comunicação do risco, tem esse sentido de buscar outro paradigma de ação para o SNVS junto à sociedade.

Ainda é cedo para avaliar os resultados da política atualmente adotada para a implementação do SNVS. Entretanto, a análise feita recomenda que o questionamento concernente à adeqüabilidade do modelo de regulação sanitária adotado deve estar presente em todas as avaliações, as quais devem ser feitas de forma sistemática – sobre o caminho e a alternativa escolhidos sob pena da permanência da fragilidade institucional, da exclusão do mundo do mercado internacionalizado e da condenação da população aos efeitos de riscos alhures dimensionados.

Um plano diretor estratégico para a implementação do SNVS, debatido e negociado democraticamente – que contemple estratégias para a rede de laboratórios, para a gestão e qualificação de recursos humanos, para os sistemas de informação, entre outros problemas básicos – parece ser imprescindível.

Em paralelo à superação dos problemas básicos da estruturação do SNVS – tarefa gigantesca por si mesma – recomenda-se um esforço governamental no sentido da construção de novo paradigma de ação para a vigilância sanitária. Permanecendo com sua atual concepção doutrinária, o SNVS não se tornará o sistema adequado para tratar da regulação do risco sanitário relacionado às complexas questões das inovações tecnológicas contemporâneas, mesmo que seja amplamente aprimorado em termos de sua infra-estrutura jurídica e operacional. A mudança cultural precisa alcançar também a ação relacionada aos processos internacionais de regulamentação e o gerenciamento das repercussões do controle sanitário efetuado pelos outros países. Uma lógica crítica e uma ação estratégica precisam substituir a participação voluntarista e a aceitação tácita das tendências regulatórias internacionais.

Por fim, com base nas análises realizadas neste estudo, foram selecionadas algumas áreas de atividades que poderiam ter potencial relevante para uma mudança qualitativa da estrutura e da ação do SNVS, as quais são enumeradas a seguir, a título de recomendações:

articular e aprofundar o trabalho com as áreas de ciência e tecnologia, buscando o fortalecimento no trabalho com avaliação do risco. Tratar e incentivar a pesquisa nessa área, não somente nas de fronteiras científicas, e trabalhar em maior articulação com os órgãos de ciência e tecnologia, na qual o Brasil conta com relativa estrutura montada inclusive no campo da biogenômica e da biossegurança. Enquanto a área da vigilância sanitária não se aproximar daquela da ciência e tecnologia, ficará condenada ao gerenciamento do risco.

buscar formas de trabalhar intensivamente com a comunicação do risco; conhecer a percepção popular acerca do risco e conceber formas de reconfigurar a informação científica não somente para realizar a competência educativa do SNVS, mas também de modo a contribuir para uma mudança cultural das ações de vigilância sanitária. O SNVS sairá fortalecido quando a comunicação do risco for trabalhada melhor, pois ela constitui elemento fundamental para lidar com as questões contemporâneas do risco sanitário, amplamente interligadas com as questões ambientais, que interferem na qualidade de vida nas sociedades democráticas.

construir um plano diretor para estruturar o SNVS e uma estratégia para aumentar a sua eficiência fiscalizatória. A legitimação social e a política do Sistema estarão sempre ameaçadas se a função de fazer cumprir a legislação não se tornar eficaz. Tal estratégia, que deve contemplar dimensões legais, organizacionais, políticas e administrativas, precisa ser convertida em prioridade principal para todas as suas partes. Além da infra-estrutura antes referida (recursos humanos, suporte laboratorial, sistemas de informação e organização) básica para esta realização, destaca-se também, entre os quesitos mais importantes, uma direção colegiada para o SNVS, uma autonomia administrativa mínima para os gestores em todos os níveis, necessária ao gerenciamento ágil do risco sanitário, e apropriado e específico suporte de consultoria jurídica em seus quadros.

debater o processo e o conceito de descentralização. Na qualidade de conceito operacional principal da política de saúde, a descentralização precisa ser reinterpretada, no sentido de tripla mudança: i) inserção da vigilância sanitária nas novas propostas de organização dos serviços de saúde – principalmente, nos municípios – integrando-a à concepção da vigilância da saúde e contribuindo para sua concretização; ii) mudança na política de cooperação técnica usada na municipalização das ações de vigilância sanitária, no sentido de que estas ações não sejam apenas assimiladas pelo poder público, mas também incorporadas à cultura local; e, iii) um trabalho político incessante de interpretação do conceito de descentralização e da divisão de trabalho que ela envolve, buscando a racionalidade e a eficácia do Sistema em termos de cálculos de custo-benefício das alternativas e de proteção à população; esta revisão pode (re)considerar inclusive as competências de execução dos níveis federal e estadual por intermédio da implementação de auditoria técnica especializada.

realizar constantes avaliações sobre a estrutura e a concepção regulatória do SNVS, considerando sua performance real em termos de suas competências. O Sistema tem um desenho que segue as linhas gerais do SUS: este estudo sugere a necessidade de avaliação constante desse desenho, tendo em vista a natureza peculiar das atividades de regulação do risco sanitário – em especial, as de natureza fiscalizatória – e também a história de ineficácia do modelo do SNVS que, apesar de (re)formalizado pela legislação recente, não sofreu modificações fundamentais em relação a sua concepção, a suas carências e crônicas insuficiências. Essas insuficiências são mais críticas no nível estadual por este ser o componente-chave do Sistema, em razão da relevância de suas competências na divisão do trabalho e por sua função articuladora entre o nível federal e o municipal.

Ao que tudo indica, o sistema, defasado em relação aos acontecimentos, continua a funcionar basicamente como era nos anos 80, embora apareçam indicações de novos arranjos nos poucos estados que conduzem reformas administrativas locais.

O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, apesar de formalmente instituído pela Lei nº 9.782/99, sofre de grande carência de estruturação legal, administrativa e doutrinária. A concepção de sistema empregada na referida lei deve ser entendida como de senso amplo, pois, a rigor, o arranjo existente entre os três níveis de governo não configura um sistema.

Dentro da necessidade de melhor entender o modelo de regulação sanitária existente no Brasil, há grande espaço vazio no campo do estudo da vigilância sanitária. Certamente existem muitos outros problemas no Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, os quais não foram referidos ou devidamente explorados aqui.

Entre os temas que apareceram neste estudo como relevantes para serem aprofundados nessa área, pode-se apontar: i) as interfaces e superposições entre os sistemas de regulação no campo da saúde com aqueles da agricultura, do meio ambiente e da indústria e comércio (certificação e normalização); ii) a natureza do pacto federativo nacional e seus reflexos na operacionalização do SNVS; iii) os mecanismos de controle social das agências regulatórias; iv) o diagnóstico das necessidades e da política nacional em relação à avaliação, gerenciamento e comunicação de risco; v) a verdadeira natureza e a relevância social dos processos internacionais de harmonização da regulamentação sanitária; vi) os impactos e os conflitos que a regulamentação internacional traz em termos de uso do controle sanitário enquanto forma de barreira alfandegária; e, vii) os principais problemas de natureza sanitária que os produtos e serviços brasileiros encontram no mercado interno e externo.

O momento atual da vigilância sanitária no Brasil mostra um processo de reestruturação que percorre todos as partes componentes do SNVS: reformulação completa do nível federal, com a criação e estruturação da ANVISA e o seu Contrato de Gestão com o Ministério da Saúde; de reaparelhamento e reestruturação dos órgãos estaduais, inclusive os laboratórios centrais, fundamentado nos recursos e objetivos dos Termos de Adesão e Metas; e criação de estruturas legais e operacionais para a execução das ações de vigilância sanitária no nível municipal. O momento é valioso, pois essa reestruturação configura também um processo de transição – mudança há muito tempo buscada para a vigilância sanitária do País –, que pode potencializar a plena estruturação do projeto de construção da cidadania no espaço social da saúde na forma como está inscrito na Constituição e na proposta do Sistema Único de Saúde.

Entretanto, diagnostica-se falta de clareza no tocante à direção desse processo de transição da vigilância sanitária tanto em relação ao seu objetivo – onde se quer chegar – quanto às alternativas implementadas para atingi-lo – as estratégias políticas escolhidas. Não há um projeto – pelo menos, formalmente explicitado – para o SNVS e, desse modo, não há um plano integral de trabalho para modelar e dar concretude ao projeto. A relação da União com os estados é crítica para o Sistema e merece debate e revisão inclusive em termos da repartição do trabalho, assim como as relações entre os três níveis de governo com a sociedade. A transição parece seguir uma tendência inercial, buscando apenas a superação de deficiências crônicas dos níveis de governo constituintes do Sistema e responsáveis pela proteção da saúde da população brasileira.

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