Por
Marcos Nunes
Eu simplesmente não aguento
também mais essa conversa segundo a qual urge à esquerda fazer
autocrítica acerca de seus descaminhos, como se ela tivesse sido A
responsável pelo Golpe de Estado.
Cazzo, não foi! Por mais que
tenha se associado aos canalhas de sempre; por mais que tenha se
acanalhado no processo; por mais hesitações, tibiezas e enganos quanto
aos rumos para o país, a esquerda, e nesse caso específico, na verdade,
não a esquerda, mas o Partido dos Trabalhadores, cuja classificação
enquanto esquerda, de fato, é bastante discutível, por fim, por mais
“autocrítica” que o PT faça, e que os partidos aliados ao PT de corte
mais à esquerda façam, o Golpe de Estado é se inteira responsabilidade
daqueles que, cientes da impossibilidade de vencer eleições, conseguiram
compor, depois de mais uma década, uma frente Legislativa capaz de
depor uma presidente eleita, contando para isso com todo apoio do
Judiciário, da Mídia, e de uma classe média ressentida, que sempre se
julgou como integrante da classe alta, mas que, a partir dos governos do
PT, viu avançarem, cursos universitários à frente, as classes mais
baixas, os negros, os mestiços, os despossuídos, humilhados e ofendidos
de toda ordem.
Autocrítica, sim, mas vamos à História:
Tenho 56 anos; passei por todos os desgovernos militares, depois por Collor, Sarney, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma.
Jamais vivi período de melhores
expectativas políticas, econômicas, existenciais, do que a partir do
primeiro governo Lula. Antes, as perspectivas se limitavam dentro da
conhecida metáfora dos voos de galinha: Plano Cruzado, agora vai; Plano
Real, agora vai. E nunca ia. Porque nunca se forjou plano algum para se
ir a algum lugar senão se manter a submissão voluntária às forças
econômicas colonizadoras, imperialistas, dominantes. Jamais.
O Plano Real foi o último
engodo, e desde então mantenho meu único parecer sobre ele: criado não
só para eliminar a inflação (o que fez pautado nos arrochos se sempre:
fiscal – com brutal aumento de impostos; monetário – com supressão de
créditos no mercado, e salarial – com o achatamento salarial, a partir
do salário mínimo.
Em paralelo, o entreguismo de
quase sempre (à exceção da época de Vargas, um tanto da época de
Juscelino, e, pasmem, dos próprios desgovernos impostos pelo Golpe de 64
à frente), com privatizações e redução do estado à custa da ausência da
prestação dos serviços públicos essenciais, constitucionalmente postos
e, claro, à revelia dos mesmos direitos do cidadão insertos na mesma
Carta Magna de 88, escrita quanto, às classes dominantes, pôs-se um
Congresso composto com quadros capazes de redigir a lei fundamental sem
privilegiar excessivamente os velhos donos do poder, testas-de-ferro do
poder econômico imperialista mundial.
Mais uma vez com a mídia
trabalhando a favor de seus próprios interesses, irmanados com os
integrantes das classes dominantes, Fernando Henrique se reelegeu em
primeiro turno e, medida óbvia, acabou com a fantasia de dólar paritário
(que, aliás, era uma ponta-de-lança para quebrar a indústria nacional
através da importação indiscriminada, favorecida pela cotação ireeal),
enriquecendo assim os amigos mais próximos, e colocando sobre os ombros
dos cidadãos o peso esmagador da dívida pública.
E o país, por três vezes,
recorreu ao Fundo Monetário Internacional, com o que parou de gerir sua
própria política econômica, legando a Lula uma Terra Arrasada, aos
risos, pois julgavam que ninguém seria capaz de desmontar as armadilhas
que eles deixaram, incapacitando a gestão pública, deixando o país
sujeito aos piores desmandos do capitalismo financeiro internacional, e
seus sabujos em território brasileiro.
Eleito Lula, sabíamos que ele
poderia cumprir com, no máximo, uns 30% do que prometera em campanha. O
Congresso, como sempre, composto com maioria de forças reacionárias,
representava um entrave direto. E o Judiciário, como sempre, estava lá
para garantir os velhos privilégios de classe, à revelia da nação, cuja
razão é seu povo.
Lula veio no registro “Paz e
Amor”. Conciliatório, dava uma no prego, outro na ferradura. Não fugiu
ao fisiologismo, pois isso inviabilizaria por completo qualquer ação de
governo. Sim, comprou deputados e senadores, comprou juízes. Afinal, é
assim que se governa em todos os países do mundo, desde que se firmou
essa balela de Democracia Representativa: governos de coalizão compostos
a partir de favorecimentos, alguns menos, alguns mais ilícios, uns
poucos lícitos.
Porém, e principalmente, o
governo Lula, paulatinamente, foi desmontando o tripé que garantia a
imobilidade e servilismo do país: os arrochos monetário, fiscal e
salarial.
Aqui repito meu velho exemplo
pessoal: ao fim do governo Fernando Henrique, rumando à falência,
planejamos (eu e meus sócios) uma fuga para a frente, isto é, comprar,
através de financiamento (pois não possuíamos capital para tanto) uma
máquina industrial que nos permitiria avançar para mais segmentos de
mercado. Obviamente, não conseguimos o financiamento, pois esse não
existia. Vários bancos, entre estatais e privados, só o fariam fundados
em garantias que representavam cerca de quatro vezes o valor da própria
máquina. Não tínhamos nada para oferecer, e fomos nos aguentando.
Após a eleição de Lula, nada
fizemos, mas fomos surpreendidos com a visita de um gerente de
investimentos do Banco do Brasil, a nos oferecer o financiamento, sem
nenhuma garantia além da própria máquina, para sua compra. Disse-nos
candidamente o porque da mudança de critérios: “A política mudou”.
Pois bem, vejam esse caso
multiplicado com dezenas, centenas de milhares de vezes. Isso
significou: empresas investindo (inclusive em novas tecnologias),
empregando, depois vendendo, para em seguida investir mais, contratar
mais, vender mais, uma vez que, com o aumento do índice de emprego,
aumentou a massa salarial, e mais gente passou a consumir, além do que
os reajustes salariais acima da inflação foram recuperando
paulatinamente o poder de compra do trabalhador. Chegamos, assim, ao
círculo virtuoso do desenvolvimento, sempre negado pelas velhas
estruturas de poder, desinteressadas no desenvolvimento do país e de por
fim à miserabilidade de seu povo.
Em paralelo a isso, não
privatizações, mas construção de escolas técnicas e universidades,
aumento de fundos para educação básica e de segundo grau através do
FUNDEB. Os programas de Luz, Habitação Popular, Mais Médicos… e tudo o
que seria de conhecimento público e notório, se notória não fosse
(apesar de não tão pública assim, pelas razões que se seguirão) a
condição da mídia enquanto oposição (apesar do que um dia disse José
Dirceu, da Globo ser “o nosso canal de comunicação” – e como deve estar
arrependido por tê-lo dito!) a qualquer governo à feição de esquerda, a
começar pelo federal, de maneira a sonegar toda e qualquer informação
que pudesse produzir conhecimento do quanto mudou o país, e do quanto se
poderia fazer caso os representantes das velhas classes dominantes
fossem postos em seu devido lugar – no lixo da história.
Isso atiçou, também, a fúria dos
velhos privilegiados e seus sabujos, insatisfeitos em ter que partilhar
de seu mundo com os pobres em aeroportos, hotéis (ficou célebre o
muxoxo e uma nulidade social que afirmou não ter mais graça ir à Paris,
por risco de lá encontrar o porteiro de seu prédio…), restaurantes,
universidades públicas (e também privadas, graças ao FIES), e ver essa
camada de cidadãos avançar, concorrer com eles em concursos públicos e
na própria iniciativa privada.
O Golpe começou, como todos
sabem, na verdade, lá atrás, com o chamado “escândalo do mensalão”, o
“maior da república em todos os tempos”, na verdade o velho
toma-lá-dá-cá da política mundial. Isso constrangeu o primeiro governo
Lula a avançar menos do que ele poderia, sempre sujeito à mídia e ao
Judiciário. Mas, ainda assim, avançamos, criando musculatura também para
as velhas raposas da política brasileira, fundadas nos abusos de
empresas públicas, cargos políticos, ministérios à porteira fechada…
Não se cogitou muito, na época,
falar da Petrobras, por uma razão simples: levantar esse bueiro
revelaria todo o mau-cheiro oriundo de um passado bem próximo, a se
estender até à fundação mesmo da empresa.
O ambiente de negócios, vale
dizer mais uma vez, não abre mão dos processos de corrupção. Eles são
inerentes ao capitalismo, são apenas o lubrificante das relações de
dinheiro e poderes, porque não dizer, das relações sociais. Desde a
cervejinha do guarda até a polpuda comissão do senador, passando pelas
generosas contribuições ao Judiciário, favores especiais a executivos em
funções importantes (também comissionamentos, mas ainda fornecimento de
favores de todo gênero, desde a compra de um belo apartamento em um
balneário, a favores sexuais prestados por profissionais do ramo). Assim
são as coisas no universo do empreendimento, do empresariado. Quem não
sabe está muito mal informado, e quem sabe mas finge que não é
hipócrita, e sabe que pode lucrar mais com a corrupção denunciando,
justamente, a corrupção alheia.
Foi isso que passou a fazer a
mídia, associada aos velhos interesses, para minar paulatinamente o
governo, e permitir seu suave desembarque ao poder do Estado, com a
principal finalidade de auferir mais e mais comissionamentos indevidos,
as propinas, e enfraquecer em definitivo o aparelho estatal, pondo-o em
definitivo à sujeição dos ditames do chamado “mercado”, isto é, as
grandes corporações financeiras, industriais e do agronegócio.
Infelizmente, para eles,
escândalos e mais escândalos criados para minar a popularidade dos
governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores, resultaram em
tiros n’água. Lula se reelegeu, depois Dilma foi eleita e também
reeleita, e após a reeleição de Dilma Aécio prometeu, junto com seus
comparsas políticos, sabotar o executivo no campo Legislativo, até
impossibilitar o seguimento das ações do governo, pondo-o a serviço de
seus interesses.
Fizeram mais: com o auxílio nada
luxuoso do velho PMDB, há muito associado aos governos do PT por mero
fisiologismo, vislumbraram a possibilidade de um golpe institucional,
com amplo apoio da mídia e do Judiciário, para, enfim, como disse um
célebre senador canalha, “estancar a sangria”.
Com um falso pretexto, apenas
porque tinham os votos necessários, e o dinheiro para compra-los, é
claro, avançaram no processo de deposição da presidente, contando também
com os manifestoches de camisa da CBF só para dar um verniz de “apoio
popular” ao que fariam com ou sem apoio popular, à maneira que fazem
hoje, com um governo sem qualquer legitimidade, contrariando parecer do
próprio usurpador que, diante dos baixos índices de popularidade de
Dilma, dizia ser impossível assim governar.
Está provado o contrário: para
governar em uma democracia sem povo, basta chegar ao poder, e nele se
encastelar à revelia da nação, fixado apenas nos interesses externos
sobre o país, e na sabujice da classe dominante local, ampliada por uma
classe média que acha fazer parte do mesmo grupo, embora esteja, agora, a
pastar tanto quanto os demais brasileiros.
Diante do que, qual autocrítica a
fazer? Não ter rompido com a cadeia do fisiologismo parlamentar? Vamos
lá, provem como é possível viabilizar isso. Construir um partido de
massas sem financiamento de empresas que, obviamente, quererão
contrapartidas? Provem como é possível viabilizar isso. Fazer um cabo de
guerra com os interesses do capitalismo financeiro internacional e
vencê-lo contando com a sustentação de um povo constituído enquanto
nação? Ah, não me façam rir de nervoso!
Estamos, agora, sim, diante da
realidade da luta de classes, e com poucas (ou nenhuma) chances de
vencê-la. No seio da democracia isso não dará: mesmo que haja uma
vitória de um candidato mais à esquerda nas próximas eleições, seguirão
os mesmos constrangimentos à sua ação pelas matrizes acima já citadas
(Legislativo, Judiciário e Mídia manietados aos interesses econômicos
internacionais). E não adianta dizer que a esquerda “não soube construir
a consciência de classe entre os menos favorecidos”, como se isso fosse
possível em um ambiente de poder em que não há espaço para o
contraditório, como é provado sistematicamente pela mídia nativa, em que
fatos que não lhes interessam simplesmente não são divulgados e, quando
são, há todo um trabalho de desconstrução que prescinde de qualquer
debate.
Além disso, o Judiciário também
conspira contra os fatos, impondo decisões absurdas, colocando na cadeia
ladrões de galinha e deixando à vontade o trânsito de helicópteros
cheios repletos de cocaína, apartamentos com sacos contendo dezenas de
milhões de reais, contas milionárias na Suíça que, no dizer de um mau
caráter togado curitibano, “pelo menos não estão no Brasil comprando
eleições” (o que escancara a finalidade das ações judiciais presentes:
de um lado, aprisionar lideranças políticas; de outro, fechar a torneira
dos financiamentos de campanhas para o espectro político da esquerda –
nisso, recente parecer do TSE corrobora, dizendo que ricos podem gastar à
vontade em suas campanhas, os demais, terão que fazê-lo sob limites e
vigilância estrita do juiz eleitoral).
O Brasil joga um jogo de cartas
marcadas, viciadas, e nas mãos exclusivas, há séculos, de uma classe
dominante desinteressada pelos destinos do país, centrada em sua própria
condição de classe e poder, ciente de que, na hipótese remota de um
desastre qualquer (revolução popular? Ah ah ah, faz-0me rir!), poderá
seguir rumo à Miami, o paraíso dos endinheirados brasileiros de baixo
extrato cultural (isto é, 99% deles, como exemplifica Eike Batista, cujo
destino está ligado à delação de Lula, mas cuja prisão veio para
demonstrar que, no rol dos novos-ricos brasileiros, ele representa uma
figura non grata, por ter se misturado excessivamente – na verdade muito pouco o fez, pois nutre preconceitos de classe e raça, como todos os golpistas – com a canalha).
Então, queridos requerentes de
autocrítica, digam como roubar dos ladrões suas cartas roubadas. De
resto, não me encham mais o saco!
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