O linguista Gustavo Conde faz uma breve análise semiótica da canção "O Que Será", de Chico Buarque de Hollanda e Francis Hime; Conde diz que "Chico Buarque tem um vasto recurso técnico para construir sua 'melodia de sentidos'" e que "isso está correlacionado com o fato de o compositor ser também um exímio escritor em prosa"; o colunista do 247 diz que "Chico é um dos maiores escritores brasileiros"; "Sua voz literária é consolidada, complexa, plena de desdobramentos temporais e narrativos".
Por Gustavo Conde - Não é trivial apresentar algumas canções de Chico Buarque de Hollanda ao vivo na iminência da prisão do líder mais popular do Brasil (e, segundo Manuela D’Ávila, do mundo). Mas, o Pocket Vol. 6 do dia 6 de abril acabou se materializando em formato de vigília.
A canção que abriu a nossa transmissão foi “O que será”, de Chico Buarque e Francis Hime composta no ano de 1976 para o filme “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, baseado no romance homônimo de Jorge Amado, com direção de Bruno Barreto.
A canção tem o codinome “À Flor da Pele”, que demarca a sensibilidade do eu cancional movido pela pergunta originária que lhe dá vida e sentido de ação: “o que será?”. A letra da canção tem um regime de rimas muito característico. Chico é um virtuose na arte da rima. Ele produz rimas internas, complexas, fragmentadas, que produzem um efeito de rara coesão semântica e melódica ao conjunto letra-canção. Vejamos a primeira estrofe de “O Que Será?”:
O que será, que será?
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
E gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
E gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza
Alcovas, trovas, tocas, bocas, becos, botecos, certeza natureza, é a sequência inicial que lança a massa sonora numa busca circular e infinita através dos versos que preenchem o vazio sintático da pergunta que rege o discurso da canção. O jogo de vogais abertas e fechadas também apresenta sutilezas de sentido: tocas é aberto e bocas é fechado, em sutil delicadeza que extravasa da palavra para a “coisa”.
Mas o jogo rímico avança para o regime das dicções: a leve alternância das tônicas fechadas e abertas não é aleatória e produz sensações: fechado, aberto, aberto, fechado, fechado, aberto, fechado, fechado. Esse padrão confere um faber deliberado que instaura um regime de acelerações e desacelerações interno à prosódia dominante e interno à própria cena narrativa que começa a se desenrolar.
Chico Buarque tem um vasto recurso técnico para construir sua “melodia de sentidos”. Isso está correlacionado com o fato de o compositor ser também um exímio escritor em prosa. Chico é um dos maiores escritores brasileiros. Sua voz literária é consolidada, complexa, plena de desdobramentos temporais e narrativos (“Leite Derramado e “Meu Irmão Alemão” são apenas dois exemplos dessa capacidade de narrar com absoluto domínio das formas gramaticais, ora alongadas ora compactas).
Da dicção literária, portanto, Chico vai buscar os eixos paradigmáticos que constituem o regime interno de sentido de seu tecido cancional: as palavras das rimas acima arroladas são formais e coloquiais. Alcova e trova têm cifras formais, enquanto becos e botecos têm a coloquialidade em essência.
Essa alternância também confere ritmo – um ritmo de sentido – e não é aleatória. Chico ainda produz mais um mecanismo interno de tensões: o verbo ‘andar’ é o motor da ação que prepara o mergulho nas localidades urbanas e tem funcionalidades diversas: num primeiro momento é verbo auxiliar (andam suspirando). Depois, desloca seu efeito metafórico (anda nas cabeças) para voltar a ser auxiliar de ‘acendendo’.
Finalmente, aparece o verbo ‘estar’ que consagra a função auxiliar que ‘andar’ lhe emprestou. É nesse momento que a verve de Chico impressiona: ele acelera o sentido de maneira brusca e violenta ao leitor-ouvinte com um ‘gritam’, um verbo pleno, contundente e de explosão semântica.
Uma aceleração, no entanto, que não dura uma fração de intervalo, pois o sentido e a melodia voltam a desacelerar para constituir um novo ciclo mais amplo e introduzir os outros blocos da canção-letra que são idênticos, senão pela expansão narrativa e lexical, aí a canção tomando seu corpo e tendendo ao tradicional infinito rítmico e melódico que caracteriza os ciclos da natureza e da própria canção popular.
Curiosamente, a gravação original incorpora esse infinito conceitual das canções, reduzindo o volume do áudio e desaparecendo no tempo e no espaço.
Chico Buarque de Hollanda é um gigante absoluto da canção e da literatura mundiais, assim como o excepcional Francis Hime que assina a melodia desta canção. Mas, a comparação mesmo é com Lula.
Dadas as circunstâncias dessa apresentação digital, regida em parte por um sentimento de vigília pela liberdade do nosso mais importante líder político e social, amigo de Chico Buarque, as letras e melodias ganharam uma cor política mais acentuada.
O mesmo talento de Chico para estabelecer processos narrativos e simbólicos pode ser encontrado em Lula. Lula estabeleceu a narrativa político-cancional brasileira. O jingle “Lula-lá” é uma consequência dessa conexão com o povo e com as musicalidades populares que emanam naturalmente de Lula. O jingle é, por assim dizer, uma extensão do ritmo de sentidos que Lula promoveu e promove em seus discursos e falas.
Lidar com esses tipos de talentos tão densos e conectados por uma apresentação fatidicamente agendada para o mesmo dia em que um desses “compositores” de sonhos estaria ameaçado por uma prisão arbitrária e violenta foi um desafio.
O vídeo do Pocket show da Resistência Democrática Vol. 6 com a música de Chico Buarque de Hollanda, no entanto, já entra para a história como a primeira vigília musical em tempo real sendo transmitida por um canal stream. Assistam.
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