A socióloga Roberta Martinho, de 35 anos, percebeu que estava dependente dos calmantes quando, segundo ela, não conseguia sair de casa sem o remédio(Foto: Daigo Oliva / G1)
Uso de calmante entre jovens no Brasil supera o de maconha.
A exemplo dos Estados Unidos, onde tem sido frequente a morte de celebridades devido ao uso abusivo de medicamentos, a banalização do consumo de remédios já é um "problema grave" de saúde pública no Brasil.
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Corey Haim, o eterno rostinho juvenil de "Os garotos perdidos", morreu subitamente na semana passada aos 38 anos em circunstâncias que ainda não foram completamente esclarecidas. O ator estava com 38 anos e já havia declarado vício em calmantes à base de substâncias como o diazepam. O astro da música pop Michael Jackson e o ator Heath Ledger também são vítimas recentes desse tipo de dependência, que não é exclusividade de celebridades norte-americanas.
"Tinha medo de pensar em ficar sem. Fiquei desanimada de lutar pelas coisas, muito acomodada", conta Roberta Martinho, socióloga paulistana de 35 anos que durante cinco anos ingeriu calmantes diariamente e há cinco meses diz ter conseguido se livrar da dependência. "Me sinto livre agora. (...) Me sinto ótima, estou com um corpo ótimo, comendo bem, dormindo melhor, lidando com os meus sentimentos, lidando comigo de novo."
Em todo o mundo, o uso abusivo de remédios já supera o consumo somado de heroína, cocaína e ecstasy, de acordo com relatório do Departamento Internacional de Controle de Narcóticos, ligado à Organização das Nações Unidas (ONU). Só nos Estados Unidos, havia em 2008 6,2 milhões de pessoas dependentes de remédios - cerca de 2% da população norte-americana.
Segundo o médico Elisaldo Carlini, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (Cebrid), no Brasil o uso de calmantes entre estudantes supera o da maconha.
"Desde 1987, fazemos levantamento do consumo ilícito de drogas entre estudantes. No último que fizemos, aparecem primeiro o álcool e tabaco. Depois, vêm os inalantes, como cola de sapateiro e fluído de isqueiro, os benzodiazepínicos (calmantes), e depois maconha e anfetaminas (inibidores de apetite)", afirma.
O coordenador geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Godinho Delgado, classifica a situação como um desafio para as autoridades de saúde.
"É um problema grave no Brasil. (...) Acho importante abordar essa situação porque, para a saúde pública, as drogas ilegais, legais e prescritas podem apresentar danos comparáveis. Nós sabemos que, de todas as drogas, as mais danosas são duas legais, o álcool e o tabaco. E, entre as que não são ilegais, existe ainda o problema dos medicamentos que podem causar dependência."
De acordo com médicos consultados pelo G1 são três as principais classes de remédios que podem causar dependência: benzodiazepínicos (calmantes), anfetaminas (inibidores de apetite) e opióides (analgésicos).
Pedro Gabriel Godinho Delgado destaca que o grupo dos calmantes é o que mais preocupa a saúde pública atualmente. Um levantamento domiciliar de âmbito nacional sobre o uso de drogas psicotrópicas mostrou que, em 2002, 3,3% dos entrevistados já haviam consumido calmantes pelo menos uma vez na vida.
No levantamento seguinte, em 2005, passou para 5,6% do total de entrevistados (7.939 pessoas nas 108 maiores cidades do país). O aumento foi de 70%.
"O aumento do consumo se deve a dois fatores, um bom e um ruim. Tem a questão da ampliação do acesso ao tratamento, o que mostra que mais pessoas estão tendo acesso ao uso racional. E o ruim é que muito provavelmente esse aumento tão significativo se deveu ao uso não racional, ao uso nocivo", afirmou o coordenador geral da área de saúde mental do governo.
Um novo levantamento deve ser concluído até o começo do próximo semestre. "A nossa estimativa é de que ainda estamos em fase de crescimento desse consumo", disse Delgado.
Mais perigosos
O grupo dos opióides, ou seja, os analgésicos fortes, preocupa os médicos porque o tratamento é mais complexo devido aos efeitos mais graves da abstinência, conforme Pedro Delgado, do Ministério da Saúde.
"No Brasil existe uso abusivo desses remédios, mas é um problema menor do que na Europa e nos Estados Unidos. Tem prevalência maior entre profissionais de saúde talvez pela facilidade de acesso."
Segundo Carlini, da Unifesp, esse grupo de remédios pode provocar até a morte. "O grande problema dessas drogas é que elas são altamente tóxicas e podem produzir overdose. A principal causa de intoxicação e morte na Europa é por heroína e morfina", conta.
No Brasil, o Sistema Nacional de Informações Toxico-Farmacológicas (Sinitox), da Fundação Fiocruz, estuda os casos de intoxicação por meio de medicamentos. Os dados mais recentes são de 2007, quando 34 mil pessoas se intoxicaram por conta de remédios. Naquele ano ocorreram 90 óbitos em razão dos medicamentos.
A pesquisadora Rosany Bochner afirma que a maior parte dos casos de intoxicação por medicamentos é motivada por tentativa de suicídio. Depois, os acidentes domésticos. Os casos de intoxicação por abuso são poucos, esclareceu, acrescentando que nem sempre as estatísticas comprovam a realidade. "Quando aparece [por abuso] são os benzodiazepínicos. (...) Mas os dados que temos são só uma ponta. Tem muitos médicos que não fazem a notificação."
Os benzodiazepínicos deixam a pessoa grogue. As pessoas ficam mais calmas, dormem mais do que devem e têm dificuldade de exercer funções psicomotoras de precisão, como dirigir um automóvel."
Para Carlini, não é só a intoxicação que ameaça a vida de quem abusa de calmantes. “Os benzodiazepínicos deixam a pessoa grogue. As pessoas ficam mais calmas, dormem mais do que devem e têm dificuldade de exercer funções psicomotoras de precisão, como dirigir um automóvel. Há uma relação clara entre acidentes de trânsito e dirigir com ação de benzodiazepínicos.”
Culpa dos médicos?
A dependência em medicamentos também é favorecida pelo comportamento de profissionais que atendem nos consultórios.
"Estou cansada de ouvir mulheres que tomam antidepressivos prescritos por seus ginecologistas. (...) As pessoas vão procurar remédios médicos para emagrecer e saem com fórmulas que têm ansiolíticos e outras substâncias que interferem no funcionamento psíquico", afirma a psicoterapeuta e membro do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas Mônica Gorgulho.
Para ela, os médicos que fazem atendimentos rápidos para prescrever a medicação também erram. "Dá muito trabalho acertar o medicamento na dose certa para a necessidade de uma pessoa específica. Esse é um processo que dura muito tempo. O início do uso de um psicotrópico é difícil, o médico tem que ter uma formação, uma atualização permanente. Isso dá muito trabalho. Não é todo médico que está disposto, e não é todo médico que está super bem informado."
Culpa dos pacientes?
Já o coordenador Científico do Grupo de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da USP, Arthur Guerra de Andrade, destaca que a dependência ocorre muitas vezes porque o paciente não segue as recomendações.
"Geralmente, o abuso de remédios começa com uma situação que o próprio médico passa ou um familiar começa a fazer uso, e aí o marido ou a esposa começa a usar, mas não de uma forma médica, de uma forma própria. (...) É uma expectativa milagrosa, uma expectativa mágica sobre o remédio. Os pacientes não têm paciência em tomar [da forma correta], em ter outras condutas, em ter alternativas que possam ser mais naturais, como terapia, exercícios, namoro."
Qualquer um compra uma receita ou remédio em qualquer canto. Na internet, pode-se comprar remédio controlado, qualquer tipo de medicação. Existem também profissionais negligentes, que vendem receita sem acompanhar o paciente."
Facilidade de aquisição
Para o psicólogo e coordenador do Instituto Olhos da Alma Sã, em Goiânia, Jorge Antônio Monteiro de Lima, um dos culpados pelos casos de dependência pode ser a facilidade de se obter os medicamentos: "Qualquer um compra uma receita ou remédio em qualquer canto. Na internet, pode-se comprar remédio controlado, qualquer tipo de medicação. Existem também profissionais negligentes, que vendem receita sem acompanhar o paciente. Hoje você compra uma receita controlada por R$ 50, R$ 60."
Lima destaca que há casos ainda de pessoas que migram das drogas ilícitas para as lícitas para serem mais aceitas. "Como a droga lícita é aceita pela sociedade, tem muita gente que migra para ela por uma questão de aceitação social. Ela não é estigmatizada socialmente. Um estudante de medicina viciado em dolantina, por exemplo."
Ele destaca, no entanto, que não se pode considerar o remédio um "vilão". "Não podemos sacrificar o remédio, pois há muitos pacientes que precisam deles, como os que sofrem de esquizofrenia. O remédio não é o vilão. O vilão é o mau uso do remédio."
Mais controle
O coordenador de Saúde Mental do governo, Pedro Delgado, aponta três saídas para amenizar o problema: conscientizar a população, capacitar o médico e controlar melhor a propaganda que as indústrias fazem para os médicos e que acabam, na avaliação dele, influenciando na prescrição dos remédios.
"O governo tem contato direto com as associações médicas, e, na área dos benzodiazepínicos, por exemplo, a sociedade de psiquiatria preza a questão da formação continuada dos médicos. Uma força contrária que é a indústria farmacêutica tem influência sobre os profissionais, o que vai um pouco na contramão do uso racional. (...) Já há controle da propaganda por parte da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], mas precisa ser aperfeiçoado. O ministério defende um controle maior sobre os métodos de propaganda da indústria farmacêutica", afirma.
Quem controla a propaganda de remédios no Brasil é a Anvisa. A agência informou que desde o ano passado já vigora uma resolução que regula o contato entre médicos e indústrias e estabelece limites para essa relação.
A decisão da prescrição de um medicamento é ato soberano do profissional da saúde e o Sindusfarma tem certeza de que ela está balizada pelos compromissos éticos deste profissional."
O vice-presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo (Sindusfarma), Nelson Mussolini, disse ao G1 que é "equivocado afirmar que a classe médica se deixa influenciar pela indústria farmacêutica na prescrição de medicamentos".
"As informações prestadas pela indústria farmacêutica aos médicos têm a única função de atualizá-los sobre o lançamento de novos medicamentos e/ou novos tratamentos. A decisão da prescrição de um medicamento é ato soberano do profissional da saúde e o Sindusfarma tem certeza de que ela está balizada pelos compromissos éticos deste profissional com seus pacientes e a comunidade", acresentou Mussolini.
G1.com
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