9.02.2015

Aids: desafio do tratamento persiste


O acesso a medicamentos para o tratamento de HIV e Aids continua sendo um grande desafio para a saúde pública mundial. Uma das principais batalhas é para derrubar o tratado de propriedade intelectual, que garante monopólios na comercialização de medicamentos. “Mas saúde não é comércio. É preciso lutar para mudar essa realidade”, esta é a opinião de Eloan Pinheiro, ex-diretora de Farmanguinhos, durante o debate sobre o documentário Fogo nas Veias, do diretor canadense Dylan Mohan Gray. O filme foi exibido para cerca de 120 pessoas, na Mostra Aids, evento promovido pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), e pelo Grupo Pela Vidda/São Paulo, na última segunda-feira (31/8), no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM).

O documentário mostra como as indústrias farmacêuticas defendem sua riqueza construída sobre o desastre humano. São inúmeras as manobras para bloquear o acesso de pacientes aos medicamentos antirretrovirais. Uma das estratégias foi a criação do TRIPs (sigla em inglês para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), assinado pelos países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC).

“A gente precisa aprender a viver mais como cidadão que realmente luta. Governos existirão, promessas existirão, leis de patentes podem ser modificadas. E o TRIPs tem que sair da OMC”, enfatiza Eloan, afirmando que, para isto acontecer, é preciso pressionar os governos. “Eu gostaria que tivessem mil ou duas mil pessoas aqui, mas eu acho que cada formiguinha pode multiplicar e formar um exército”, frisa.

O diretor do documentário, Dylan Mohan Gray, lembrou que, assim como no Brasil, o acesso universal à saúde é um direito humano garantido pela constituição indiana. No entanto, segundo ele, este direito só é aplicado esporadicamente. “A razão de gravar este documentário surgiu da ideia de que saúde é um direito humano fundamental. Quando comecei a gravar, nem estava pensando muito nesta questão HIV/Aids. Mas me dei conta de que se trata de seres humanos num sistema totalmente errado. Um sistema de saúde estremecido. Tal sistema aceita que um número incalculável de pessoas morram para que outros tenham lucro. É inaceitável”, enfatiza Gray, que demorou cinco anos para concluir o filme.

Um dos organizadores da mostra, Pedro Villardi, representante do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), explicou que a mesa de discussão foi montada em função do grande debate no Congresso Nacional sobre a lei de patente. Ele ressaltou que o corte de bilhões no orçamento destinado à saúde significa a redução de direitos ao acesso a medicamentos. Villardi lembrou ainda que 1996 foi considerado o ano-chave na assistência farmacêutica contra a Aids. “Pois no mesmo ano em que o país aprovou a lei de patente, o governo brasileiro se comprometeu em fornecer o acesso universal a medicamentos às pessoas que vivem com HIV/Aids”, salientou.

Representante da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), Felipe de Carvalho destacou o trabalho realizado em Farmanguinhos no período denunciado pelo filme. “Foi Eloan Pinheiro quem liderou a equipe de Farmanguinhos na produção dos primeiros antirretrovirais no Brasil, o que permitiu ao país pagar U$ 300 por paciente ao ano, ao invés dos U$ 15 mil, como era cobrado na ocasião”.

Protagonismo – Filmado a partir de 1996, o documentário mostra como o desenvolvimento de antirretroviriais mudou radicalmente a perspectiva de vida dos pacientes com HIV/Aids. Por outro lado, poucos tinham acesso devido aos altos preços cobrados pelas indústrias farmacêuticas, o que ocasionou milhões de mortes por falta de acesso ao tratamento.

Durante o período, mais precisamente em 1998, o Brasil viu Farmanguinhos produzir se primeiro antirretroviral, o AZT . “Na época, todo mundo em Farmanguinhos trabalhou para poder produzir antirretrovirais sem ter uma receitinha do bolo. Em pouco tempo nós produzimos zidovudina, estavudina, lamivudina e nevirapina. Lembro-me que todos, eu e meus colegas de Far, trabalhávamos dia e noite. Para isto, a gente teve que atuar com o coração. Foi o que aconteceu com a equipe de Farmanguinhos. Absolutamente todos colocaram a mão na massa e atuaram com o coração. Nós salvamos vidas, e eu me orgulho muito disso”, lembra a ex-diretora do Instituto.


O deputado federal Jean Willys (PSOL/RJ) compareceu ao debate e explicou como o financiamento privado de campanhas pode provocar impacto na saúde. “Eu defendo o financiamento público de campanhas. Sou contra o financiamento privado por conta desta realidade aqui (apresentada no filme). Os políticos eleitos em campanhas financiadas por empresas privadas, entre as quais indústrias farmacêuticas, vão operar para atender os interesses dessas corporações e não os da sociedade”, explica.

Patentes – Alguns desafios mostrados no filme continuam atuais. “A patente chegou ao nível de permitir abusos de uma situação de crise humanitária e de saúde.Um medicamento custa mais do que o ouro ou diamante. Se antes eram 10 mil dólares por pacientes, hoje tem medicamentos de 100 mil dólares. Em outras palavras, aquelas situações ainda existem e, se não fizermos nada, elas podem gerar crises iguais, ou piores, às ocorridas na época em que o filme foi gravado”, avalia Carvalho.

Outro fator abordado foi a falta de transparência, uma vez que as empresas cobram caro, mas não revelam o que realmente gastam. “Parte deste segredo tem a ver com o fato de que muitas dessas pesquisas vêm de universidades, e de recursos públicos. Então, não há o interesse da transparência porque vai se revelar de forma mais escancarada ainda como o sistema é injusto. Portanto, aumentar a transparência é super importante”, observa Carvalho.

De fato a transparência poderia ser uma aliada fundamental na negociação de preço. Segundo Eloan Pinheiro, o medicamento para hepatite sofosbuvir custa U$ 80 mil por paciente nos Estados Unidos. “E quem financiou a pesquisa para este medicamento foi o próprio governo americano. Essa nação é insana. A gente não pode permitir que o governo brasileiro pague U$ 7500, porque este produto pode custar U$ 200 por paciente. Isso é um crime contra o erário público. Isto eu gostaria, Sr. deputado (Jean Wyllys) que o senhor levasse para o Congresso.  O que a gente paga em preço de medicamentos para Aids, para hepatite e para câncer é um crime ao erário público. Isso não pode continuar acontecendo”, assinala Eloan.

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