7.30.2018

Hepatites Virais





Julho Amarelo
O que saber sobre as principais hepatites virais, da A à C

por: Cristina Targa Ferreira; Themis Reverbel da Silveira

As hepatites virais são doenças causadas por diferentes agentes etiológicos, de distribuição universal, que têm em comum o hepatotropismo. Possuem semelhanças do ponto de vista clínico-laboratorial, mas apresentam importantes diferenças epidemiológicas e quanto à sua evolução. Os últimos 50 anos foram de notáveis conquistas no que se refere à prevenção e ao controle das hepatites virais. Os mais significativos progressos foram a identificação dos agentes virais, o desenvolvimento de testes laboratoriais específicos, o rastreamento dos indivíduos infectados e o surgimento de vacinas protetoras.
Enfrentar o importante problema de saúde pública que constituem, no Brasil, as doenças transmissíveis endêmico-epidêmicas, continua sendo um grande desafio. Entre essas doenças salientam-se as Hepatites Virais, cujo comportamento epidemiológico, no nosso país e no mundo, tem sofrido grandes mudanças nos últimos anos. A expansão da cobertura vacinal no que se refere à Hepatite B, a mais efetiva detecção por parte dos Bancos de Sangue do vírus C e a substancial melhoria das condições sanitárias, entre outros, foram fatores decisivos que muito contribuíram para esta modificação. As condições do nosso país: sua heterogeneidade socioeconômica, a distribuição irregular dos serviços de saúde, a incorporação desigual de tecnologia avançada para diagnóstico e tratamento de enfermidades, são elementos importantes que devem ser considerados na avaliação do processo endemo-epidêmico das hepatites virais. O número de pacientes infectados é incertos, relacionado geralmente a alguns Estados e municípios brasileiros, e o esclarecimento dos agentes causadores das hepatites, cuja identificação requer técnicas laboratoriais complexas de biologia molecular, é realizado de maneira insuficiente. Por outro lado, "a progressiva integração entre as instâncias gestoras dos programas de vigilância e controle das doenças com grupos de pesquisa e desses com os serviços" e a disponibilização de bancos de dados nacionais mais confiáveis apontam para novos e melhores caminhos1.
O Ministério da Saúde criou, em 5 de fevereiro de 2002, o Programa Nacional para a Prevenção e o Controle das Hepatites Virais (PNHV), que deverá contribuir para aprimorar o conjunto de ações de saúde relacionadas às hepatites2,3. Três importantes projetos de avaliação epidemiológica das hepatites virais foram propostos: 1) Projeto Sentinela de Gestantes – para 40.000 mulheres em idade fértil; 2) Projeto Sentinela das Forças Armadas – para 8.000 recrutas; e 3) Inquérito Domiciliar Nacional – para 65.000 pessoas entre cinco e 39 anos de idade. No Projeto Sentinela de Gestantes realizado pela Coordenação Nacional de DST/Aids serão realizados testes para sífilis, HIV, Hepatite B e Hepatite C em maternidades de todo o país. O Projeto Sentinela das Forças Armadas, também organizado pela Coordenação Nacional de DST/Aids, irá avaliar jovens entre 17 e 22 anos para sífilis, HIV, VHB e VHC. O terceiro estudo, planejado por CENEPI/FUNASA, será um inquérito em todas as capitais brasileiras, onde serão avaliadas as hepatites A,B e C. A partir dos dados colhidos nesses projetos, a realidade das hepatites virais no Brasil poderá ser melhor avaliada e as ações de prevenção e assistência às pessoas doentes poderão ser melhor planejadas.
A grande importância das hepatites não se limita ao enorme número de pessoas infectadas; estende-se também às complicações das formas agudas e crônicas. Os vírus causadores das hepatites determinam uma ampla variedade de apresentações clínicas, de portador assintomático ou hepatite aguda ou crônica, até cirrose e carcinoma hepatocelular. Considerando que as conseqüências das infecções são diversas, na dependência do tipo de vírus, o diagnóstico de hepatite, nos dias atuais, será incompleto, a menos que o agente etiológico fique esclarecido.
Para fins de vigilância epidemiológica, as hepatites podem ser agrupadas de acordo com a maneira preferencial de transmissão em fecal-oral (vírus A e E) e parenteral (vírus B,C,D); mas são pelo menos sete os tipos de vírus que já foram caracterizados: A, B, C, D, E, G e TT, que têm em comum o hepatotropismo. Uma das principais características que diferenciam esses vírus é a sua capacidade (ou incapacidade) de determinar infecções crônicas; outra é a possibilidade de ocasionar comprometimento sistêmico relevante (como a glomérulo-nefrite do VHB e a crioglobulinemia do VHC). Os vírus A, B, e C são os responsáveis pela grande maioria das formas agudas da infecção. Mas, apesar do crescente uso de técnicas laboratoriais cada vez mais sensíveis, cerca de 5% a 20% das hepatites agudas permanecem sem definição etiológica4. Nas hepatites fulminantes, essa porcentagem torna-se ainda maior.
A condição sine qua non para se definir estratégias no controle das hepatites virais é que a amplitude do problema seja (re)conhecida. A vigilância epidemiológica das hepatites no nosso país utiliza o sistema universal e passivo, baseado na notificação compulsória dos casos suspeitos. Embora o sistema de notificação tenha apresentado melhoras, ele ainda é insatisfatório. As principais questões a serem investigadas, e que podem contribuir para o melhor controle das hepatites, estão relacionadas à definição dos diferentes tipos de vírus e das doenças que determinam. Não há dúvida que o diagnóstico precoce de infecção pelos VHB ou VHC traz benefícios para os pacientes, permitindo escolher o momento mais adequado para iniciar um eventual tratamento da forma crônica da doença. No entanto, é sabido que a identificação de portadores assintomáticos de doenças infecciosas crônicas é muito difícil e onerosa. Por outro lado, a incorporação de técnicas novas para auxiliar na propedêutica e terapêutica das hepatites virais elevou muito o custo da assistência médica.
Neste artigo será feita uma revisão sucinta das hepatites A,B e C, as mais freqüentes no nosso país, e das estratégias preferenciais para a prevenção dessas doenças. Os aspectos terapêuticos não serão abordados.

Hepatite Viral A
Trata-se da infecção causada por um vírus RNA classificado como sendo da família Picornavirus, transmitida por via fecal-oral e que atinge mais freqüentemente crianças e adolescentes. O vírus A é a causa mais freqüente de hepatite viral aguda no mundo. Conforme estimativa da Organização Pan-americana de Saúde, anualmente ocorrem no Brasil cerca de 130 novos casos por 100.000 habitantes, e o país é considerado área de risco para a doença. A análise da prevalência dos diversos tipos de hepatite no Brasil, em 2000, mostrou que o vírus A continua sendo o principal causador da doença, representando 43% dos casos registrados de 1996 a 2000. A faixa etária na qual o diagnóstico foi mais freqüente foi dos 5 aos 9 anos de idade3.
O vírus tem distribuição universal e é transmitido basicamente pela via fecal-oral. A água e os alimentos contaminados com fezes com vírus A são os grandes veículos de propagação da doença. Água contaminada pode provir de esgotos e, de alguma maneira, entrar em contato com os alimentos. Sabe-se que o vírus A pode sobreviver longos períodos (de 12 semanas até 10 meses) em água e que moluscos e crustáceos podem reter e acumular o vírus até 15 vezes mais do que o nível original da água.
A transmissão é mais comum quando há contato pessoal íntimo e prolongado dos doentes com indivíduos suscetíveis à infecção. Observa-se a presença do vírus A no sangue e nas fezes dos indivíduos infectados duas a três semanas antes do início dos sintomas e, nas fezes, por cerca de duas semanas após a infecção. Conseqüentemente, os maiores fatores de risco são o convívio familiar, especialmente com crianças menores de seis anos, a alimentação preparada por ambulantes e os agrupamentos institucionais (militares, creches, prisões). De uma maneira geral, em cerca da metade dos casos de hepatite A não se identifica a fonte de contágio. A disseminação está de acordo, diretamente, com o nível socioeconômico da população5. Clemens et al.6 analisaram a soroprevalência da hepatite A em aproximadamente 3.600 indivíduos, entre 1 e 40 anos de idade, em quatro diferentes capitais do país, e obtiveram uma soroprevalência geral de 64,7%. O padrão foi muito heterogêneo, sendo alto na região Norte (92,8%) e Nordeste (76,5%), enquanto endemicidades menores foram observadas no Sul e Sudeste (55,7%). A soroprevalência de anticorpos anti-HVA atingiu níveis superiores a 90% somente em coortes mais velhas, com isso indicando um padrão de endemicidade intermediária. O grupo socioeconômico mais baixo foi, nas quatro regiões, o mais atingido. No Norte houve alta soroprevalência de anticorpos anti-HVA na infância, tanto na classe socioeconômica baixa quanto na alta. Essa diversidade de soroprevalência de anti-HVA representa um problema importante de saúde pública. Crianças, adolescentes e adultos jovens soronegativos têm um risco similar ao de viajantes para regiões de alta endemicidade, pois estão sob risco permanente de exposição. Em Israel, Dagan7, em um estudo bem conduzido, evidenciou variações regionais de endemicidade relacionadas à idade, grau de educação, condições de higiene e de saneamento básico. Nas regiões pouco desenvolvidas as pessoas são expostas em idades bem precoces, sobretudo através das formas assintomáticas ou anictéricas da doença.
A gravidade do quadro clínico está diretamente ligada à idade do paciente. Icterícia costuma estar presente em < 10% das crianças com idade inferior a seis anos, em 40-50% daquelas com mais idade e em 70-80% dos adultos. Nos pacientes que não desenvolvem icterícia, os vírus comportam-se da mesma maneira, disseminando-se no meio ambiente, antes do diagnóstico ser suspeitado. Esse é um dos motivos porque o isolamento do paciente, e de seus contactantes, costuma ser uma medida pouco eficaz para conter a disseminação da doença.
A doença é autolimitada e considerada benigna. Deve ser ressaltada, porém, a existência de "formas atípicas" da hepatite e que, dada a sua alta incidência, é a principal causa de insuficiência hepática aguda (hepatite fulminante) em nosso meio. Em estudo recente realizado em seis países latino-americanos, observamos que o vírus A foi responsável por aproximadamente 40% dos 90 casos de insuficiência hepática aguda, em crianças (dados não publicados). Entre as chamadas "formas atípicas" da hepatite A, as mais importantes são: a) colestática – quando há predominância das manifestações obstrutivas, com icterícia e prurido intenso de longa duração; b) polifásica, bifásica ou recorrente – nos casos de retorno das manifestações clínicas e/ou laboratoriais após a aparente cura do processo; e c) a associada a alterações extra-hepáticas graves, como pancreatite e aplasia de medula, por exemplo. Estas formas "atípicas" não progridem para a cronicidade, mas podem acarretar dificuldades de diagnóstico e, não raro, de orientação terapêutica.
Considerações sobre a prevenção da Hepatite A
O VHA é relativamente resistente ao calor, éter ou ácido. É inativado pela formalina (1:4.000 a 37 graus por 72 horas), por microondas, pela utilização de cloro (1 p.p.m por 30 minutos) e por irradiação ultravioleta. Para prevenir a disseminação do vírus há necessidade de rigorosa higiene pessoal dos doentes e adequada desinfecção dos banheiros utilizados pelos pacientes e de brinquedos (nas creches, por exemplo), lembrando que o VHA pode permanecer na superfície dos objetos por semanas. Os indivíduos com hepatite não devem preparar alimentos para outras pessoas, e durante a fase aguda da infecção devem ficar afastados das comunidades.
Muitos relatos, de diferentes países, mostram que a melhoria nas condições sanitárias de uma determinada população reduz a prevalência da doença. Em particular, o suprimento de água segura, a longo prazo, diminui a prevalência da hepatite A. A disponibilidade de água tratada nos domicílios é uma medida eficaz para o controle da doença. Com essas melhorias, os indivíduos passam a entrar em contato com o VHA em idades mais avançadas, quando, ironicamente, há aumento das formas ictéricas de hepatite e, inclusive, o aparecimento mais freqüente de complicações. Por essa razão, ao lado das medidas sanitárias, a vacinação contra o VHA deve ser estimulada como um meio efetivo para o controle da doença.
O fato de ter sido descrito apenas 1 sorotipo do vírus A, embora diferenças genotípicas tenham sido encontradas, facilita o controle da hepatite A através da vacinação. Nos últimos anos foram desenvolvidas vacinas contra hepatite A, tanto de vírus vivos, atenuados, quanto de vírus inativados. O valor da vacina na proteção à doença é grande. São vacinas altamente imunogênicas e seguras, que produzem 95% a 100% de soroconversão em indivíduos saudáveis. Há comprovação do seu valor, através de estudos populacionais em várias partes do mundo. É capaz de evitar a disseminação da doença durante surtos, protegendo também os contactantes domiciliares. Os efeitos colaterais são de pouca importância, e geralmente ocorre dor apenas no ponto do inóculo. A inoculação deve ser feita na pré-exposição viral, em pessoas com risco aumentado: viajantes para zonas de média e alta prevalência, crianças de áreas endêmicas, homens que fazem sexo com homens, receptores de fatores concentrados de coagulação, pacientes hepatopatas crônicos e usuários de drogas injetáveis.
Em Israel, após estudos econômicos bem conduzidos, foi determinada em 1999 a vacinação em massa da população8. Em 1995, a incidência anual era de 41 casos por 100.000 habitantes; em 2002, as taxas foram inferiores a 5 por 100.000 indivíduos. Com isso, Israel tornou-se o primeiro país a instituir um programa nacional de imunização contra a Hepatite A. Nos EUA, a vacinação foi liberada para crianças com mais de 2 anos, mas nas regiões com alta prevalência do vírus A admite-se que a melhor idade para vaciná-las é antes de entrarem em contato com o VHA. Estudos feitos por Linder et al.9 mostraram o declínio dos anticorpos maternos no 1º semestre, a utilização da vacina concomitante com DTPa e a resposta positiva à vacina contra hepatite A de lactentes com anticorpos maternos positivos, justificando a vacinação no primeiro ano de vida em regiões de alta prevalência de VHA. A utilização de vacinação universal abre, evidentemente, a perspectiva de erradicação da hepatite A no mundo.
No Brasil, a vacina, que é de custo elevado, ainda não foi incorporada no calendário de vacinação do Ministério da Saúde, mas está disponível para grupos especiais nos CRIES. Estão licenciadas as vacinas HAVRIX (SmithKlineBeecham) e VAQTA (Merck Sharp Dohme), que são apresentadas em concentrações diferentes, sem correspondência entre as diferentes unidades adotadas. A soroconversão das duas vacinas alcançam níveis de 100% quando se utiliza o esquema convencional de duas doses. As apresentações da vacina HAVRIX são 720 (0,5 ml) e 1440 (1ml), devendo-se fazer o reforço entre 6 e 12 meses após a primeira dose. A vacina VAQTA é apresentada em duas formulações: uma pediátrica/adolescente (2 a 17 anos), que contem 25 U de antígeno do VHA em 0,5 ml, e outra para adultos (>17anos), com 50 U de antígeno por dose de 1 ml. É administrada IM, no deltóide, em duas doses, com um intervalo entre elas de 6 a 12 meses. Esquemas de dose única das vacinas contra hepatite A (tanto Havrix quanto Vaqta) já tiveram sua eficácia demonstrada, facilitando sobremaneira a sua administração.
Em estudo recentemente concluído em Porto Alegre, a resposta à vacina inativada HAVRIX em dois grupos de crianças e adolescentes, com Síndrome de Down e com cirrose, foi plenamente satisfatória10-12. A vacina mostrou-se altamente imunogênica e bem tolerada, com taxas de soroconversão de 100% e de 97%, respectivamente.
Deve ainda ser lembrada a possibilidade de combinar a proteção contra VHA e VHB em uma mesma vacina, que é a TWINRIX, (SmithKline Beecham), em esquema de três doses (0,1 e 6 meses), indicada particularmente para adolescentes e adultos não imunes. Recentemente, avaliamos a resposta da vacina combinada (contra hepatite A e B) em crianças e adolescentes, em esquema de apenas duas doses, e os resultados foram muito bons13.
O uso da Gamaglobulina imune comum (GIC) está sendo, na maioria dos casos, substituída pela vacina contra a hepatite A. A proteção que confere é por curto espaço de tempo (no máximo seis meses) e a sua eficácia depende do teor de anticorpos existente na preparação. Quando a imunoglobulina é utilizada antes da exposição ao VHA, ou logo após (6-7 dias), há proteção contra a doença clínica em cerca de 80-90% dos casos. Não impede a infecção, mas atenua as manifestações clínicas. Pode ser empregada para indivíduos contactantes de alto risco, dentro de no máximo uma semana do contágio, ou ainda em situações epidêmicas. Após 14 dias, no entanto, o valor do seu uso é nulo. A dose adequada é 0,02 ml/kg de peso, intramuscular ou, quando se deseja proteção por mais de três meses, a dose é maior: 0,06 ml/kg, que deve ser repetida se a exposição se mantiver.
Em resumo, está bem demonstrado que a doença pode ser erradicada através de melhores condições de saneamento e de vacinação em massa, e que para se organizar adequadamente o conjunto das ações de saúde é necessário ampliar a notificação e melhorar a vigilância dos casos de hepatite. Consideramos aconselhável que os dados colhidos incluam:

  • Controle dos fatores de risco para infecção
  • Monitoramento das tendências epidemiológicas
  • Identificação e avaliação das epidemias
  • Identificação e avaliação dos surtos de fontes comuns
  • Controle das oportunidades perdidas de vacinação
  • Avaliação do impacto dos programas de vacinação
Hepatite B
O vírus da hepatite B está classificado na família HepaDNA. Devido à sua alta especificidade, o VHB infecta o homem, que constitui o reservatório natural. O risco de desenvolver doença aguda ictérica aumenta com a idade do paciente, inversamente à possibilidade de cronificação. Quando os recém-nascidos entram em contato com os vírus B há 90% de chance de se tornarem cronicamente infectados; quando a infecção ocorre aos cinco anos, a possibilidade cai para 30-50%, sendo a taxa reduzida para 5-10% se a infecção ocorre em adultos. A infecção pelo vírus B é considerada alta onde a prevalência do AgHBs+ é superior a 7% ou a população evidencia infecção prévia (Anti-HBc IgG+) em taxa superior a 60%. São considerados de endemicidade intermediária aqueles locais onde a prevalência de infecção se situa entre 20 e 60% (Anti-HBc IgG+) e o AgHBs+ entre 2 e 7%. As áreas com AgHBs+ < 2.0% são definidas como de baixa prevalência, sendo pouco freqüente, nessa circunstância, a infecção neonatal14. Nessas regiões, os grupos de risco para VHB serão definidos, fundamentalmente, pelo comportamento individual e social: profissionais da área da saúde, homossexuais masculinos, usuários de drogas intravenosas, prostitutas, pacientes em hemodiálise.
A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo já tiveram contato com o vírus da hepatite B (VHB), e que 325 milhões tornaram-se portadores crônicos14. Em termos mundiais, as taxas de prevalência da hepatite B variam amplamente, de 0,1% a taxas superiores a 30%, como as verificadas em países asiáticos. Considerando que muitos indivíduos infectados são assintomáticos e que as infecções sintomáticas são insuficientemente notificadas, a freqüência da hepatite B é, certamente, ainda subestimada. O Ministério de Saúde estima que, no Brasil, pelo menos 15% da população já esteve em contato com o vírus da hepatite B e que 1% da população apresenta doença crônica relacionada a este vírus2,3. Os estudos epidemiológicos sobre hepatite B no Brasil são escassos e, em geral, ocuparam-se de grupos populacionais específicos. A análise de base populacional feita no município de São Paulo detectou portadores crônicos em 1,02% (AgHBs +)15. Há áreas consideradas de alto risco, como no oeste do Paraná e em certas regiões da Amazônia. De acordo com Bensabath e Leão16, apesar da desigualdade das notificações, as taxas referentes à mortalidade por hepatites, na região Amazônica, são mais altas do que no resto do Brasil. A partir de 1989, quando foi iniciada a vacinação em massa de crianças com menos de 10 anos, na Amazônia Ocidental, foi observada uma queda significativa na mortalidade. De uma maneira geral, a soroprevalência revela percentuais variáveis de AgHBs de 1,9% a 13,5%, e de 10,4% a 90,3% para o anti-HBs16.
O estudo de soroprevalência da hepatite B que realizamos em quatro capitais brasileiras mostrou uma taxa geral de 7,9% de anti-HBc positivo. A mais alta prevalência foi observada na região Norte, com taxas significativamente mais elevadas no grupo de baixo nível socioeconômico e entre adolescentes16. A transmissão do vírus B se faz através de solução de continuidade (pele e mucosas); relações sexuais; exposição percutânea (parenteral) a agulhas ou outros instrumentos contaminados; transfusão de sangue e hemoderivados; uso de drogas intravenosas; procedimentos odonto-médico-cirúrgicos, quando não respeitadas as regras de biossegurança; transmissão vertical e contatos domiciliares. Em outro estudo, que realizamos para avaliar a soroprevalência das hepatites A e B na América Latina, foi observado um dramático aumento na positividade de anti-HBc entre os adolescentes a partir de 16 anos, nos cinco países analisados além do Brasil17.
Sabe-se hoje que o VHB circula em altas concentrações no sangue e em títulos baixos nos outros fluidos orgânicos, e que é aproximadamente 100 vezes mais infectante do que o HIV e 10 vezes mais do que o VHC18. O sangue e os outros líquidos orgânicos de uma pessoa portadora do VHB já podem ser infectantes duas a três semanas antes de aparecerem os primeiros sinais da doença, e se mantêm assim durante a fase aguda. Atenção especial deve ser dada aos portadores crônicos que podem permanecer infectantes por toda a vida. Em geral, quando a hepatite B é adquirida no período perinatal, há enorme possibilidade de cronificação, decorrente da tolerância imunológica própria dessa fase da vida. Casos de hepatite fulminante, no entanto, foram descritos em lactentes, quando ao mesmo tempo há passagem de Anti-HBc e de Anti-HBe da mãe para os filhos. Há, nesses casos, uma resposta imunológica exacerbada e, quando ocorre o desaparecimento dos anticorpos maternos, as células citotóxicas, sensibilizadas ao AgHBc e ao AgHBe, poderão destruir, de maneira fulminante, os hepatócitos infectados. As crianças do sexo masculino têm maior risco de desenvolver doença hepática crônica. Ao analisar a história natural da infecção que ocorre por transmissão vertical, alguns elementos chamam a atenção: a) geralmente os pacientes são assintomáticos; b) o clareamento do AgHBs é raro (< 2%) nos primeiros anos de vida; c) a negativação do AgHBs é de apenas cerca de 0,6% ao ano; e d) na maioria dos casos de hepatocarcinoma, o VHB foi adquirido por transmissão vertical. Mas as crianças também se contaminam na infância através de transmissão horizontal, por contato interpessoal, ou através da contaminação com líquidos corporais que contenham o agente, tais como: lágrima, suor, sêmen, urina, secreções de feridas e, ainda, o próprio leite materno19.
Considerações sobre a prevenção da Hepatite B
O conhecimento adequado sobre a freqüência do vírus B e a implementação de estratégias indicadas para a sua prevenção exigem métodos complexos de vigilância epidemiológica. Além da prevalência geral na população, devem ser avaliados os indivíduos que constituem grupos de risco e, ainda, aqueles que apresentam diferentes condições patológicas tais como: infecção peri-natal, hepatites agudas e crônicas, portadores assintomáticos do vírus B, cirróticos e pacientes com carcinoma hepatocelular20.
Todas as gestantes devem ser avaliadas no exame pré-natal (3º trimestre) em relação aos marcadores do vírus B. Em 407 gestantes avaliadas nos anos 1998-1999, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a prevalência do AgHBs foi baixa, de 0,73% (dados não publicados). A vigilância da infecção perinatal deve incluir, além da identificação das mães infectadas com o VHB, os testes pós-vacinação dos lactentes nascidos de mães com AgHBs positivo. Estes testes, realizados nos lactentes após a vacina contra hepatite B, têm também a finalidade de identificar aqueles não-respondedores e que requerem re-vacinação. Há muitos anos se questiona se o aleitamento materno tem um papel importante na transmissão da hepatite B. Marcadores virais como o AgHBs, e mesmo partículas de DNA-VHB, já foram isolados em amostras de leite materno e de colostro. Por outro lado, a freqüência reduzida da identificação do agente viral nestas circunstâncias tem um significado relativo. Há situações que estão relacionadas à amamentação, como as fissuras nos mamilos, sangramentos e exsudato de lesões nas mamas que podem facilmente expor o recém nascido ao VHB21.
Através da monitorização dos indivíduos recentemente infectados pode-se ter informações críticas para identificar com segurança surtos de Hepatite B. Embora pouco freqüentes, há descrição de surtos em hospitais, envolvendo transmissão de pacientes a pacientes, através de equipamentos contaminados, frascos de medicamentos multi-uso e transplantes de órgãos, entre outros22.
No que se refere à vigilância de hepatopatias crônicas, o marcador AgHBs positivo é de grande valor. Pode ser identificado, virtualmente, em todos os casos de hepatite crônica, facilitando o encaminhamento para centros de referência de diagnóstico e tratamento e, ainda, possibilitar a imunização de contactantes. A especificidade do AgHBs é alta quando utilizado para avaliar pessoas com sinais e/ou sintomas de hepatopatia. No entanto, a probabilidade de ser um resultado "falso positivo" não é desprezível quando o exame for utilizado em indivíduos assintomáticos e/ou sem qualquer fator de risco. Nesses casos é necessária a confirmação por outros marcadores sorológicos (AgHBe, antiHBc) ou por biologia molecular (DNA-VHB). A identificação de pessoas com infecção crônica pelo VHB através de um diagnóstico precoce pode reduzir a transmissão continuada da infecção, e o tratamento antiviral diminui o risco de evolução para a cirrose e para o carcinoma hepatocelular. A possibilidade de morbidade adicional, causada por outro agente etiológico (HVA, por exemplo), pode ser controlada através da vacina contra a hepatite A .
Imunoprofilaxia pré-exposição
A vacinação contra o VHB é a maneira mais eficaz na prevenção de infecção aguda ou crônica, e também na eliminação da transmissão do vírus em todas as faixas etárias20,23,24. As estratégias utilizadas para eliminar a transmissão viral são constituídas por quatro componentes:

  • prevenção de infecção perinatal, através de triagem materna e de profilaxia pós-exposição dos recém-nascidos de mães AgHBs +;
  • vacinação contra hepatite B de todas as crianças, visando prevenir a infecção na infância e em idade mais avançadas;
  • vacinação dos adolescentes que não foram protegidos;
  • vacinação de indivíduos pertencentes a grupos de risco.
A vacinação contra a hepatite B de recém-nascidos e menores de 1 ano já foi implantada, com sucesso, nos serviços básicos de saúde do nosso país. Mais recentemente, uma das metas do Ministério da Saúde é vacinar jovens com menos de 20 anos. A redução da transmissão sexual está sendo enfrentada em trabalho conjunto com a Coordenação DST/Aids em campanhas de esclarecimento e distribuição de preservativos. Para as populações específicas, com grau elevado de risco (homens que fazem sexo com homens, presidiários, prostitutas, usuários de drogas ilícitas) urge que sejam promovidas campanhas com distribuição de material informativo. No entanto, mesmo entre os profissionais de saúde, podem ser necessárias medidas para esclarecimento sobre as hepatites virais: um estudo recente realizado por nós, em Porto Alegre, para avaliar o grau de conhecimento de ginecologistas e obstetras sobre hepatite B foi preocupante19.
A vacina contra a hepatite B é extremamente eficaz (90 a 95% de resposta vacinal em adultos imunocompetentes), não apresenta toxicidade e produz raros e pouco significativos efeitos colaterais23,25. As doses recomendadas variam conforme o fabricante do produto. É feita IM (não pode ser feita nos glúteos) e, seguindo o esquema clássico, com intervalo entre as doses de zero, 1 e 6 meses. Há outros esquemas de vacinação mais rápidos para certas circunstâncias23-25. A gravidez e a lactação não são contra-indicações para o uso da vacina. A administração da série completa das doses da vacina é o objetivo de todos os esquemas de imunização, mas níveis protetores de anticorpos se desenvolvem após uma dose da vacina em 30% a 50% de adultos saudáveis, e em 75% após duas doses14,23. Inúmeros estudos, nacionais e internacionais, já mostraram que a vacina contra o VHB apresenta bons resultados também para a proteção de grupos de risco: homossexuais promíscuos, hemodialisados, pacientes imunodeprimidos, usuários de drogas etc
A vacinação de indivíduos imunes ao VHB ou daqueles que já foram vacinados não aumenta os riscos dos efeitos adversos da vacina. Em populações com taxas altas de infecção e/ou de cobertura vacinal, se o estado de imunidade de um indivíduo adulto é desconhecido, podem ser realizados testes sorológicos antes de se usar a vacina e, assim, reduzir custos. O mesmo, porém, não deve ser feito nas áreas de baixa endemicidade e/ou com crianças e adolescentes.
Não há razão para se determinar a resposta laboratorial de anticorpos à vacinação em crianças, adolescentes e adultos sadios. No entanto, para grupos de risco, imunocomprometidos e para os profissionais de saúde, está indicada a avaliação do anti-HBs4. Quando não há resposta adequada, após a primeira série de vacinação, grande parte dos profissionais responderá a uma outra dose de vacina. Para um indivíduo ser considerado "não respondedor" o resultado do anti-HBs deve ser negativo dentro de seis meses após a terceira dose da vacina. Cerca de 5% das crianças não respondem à vacinação, sendo que a resposta dos recém-nascidos, com menos de 2 kg, à vacinação ainda não está bem estabelecida.
Profilaxia pós-exposição
Imunização ativa, passiva ou ativo-passiva, em curto período de tempo após a exposição ao VHB, pode efetivamente prevenir as infecções. Quando a vacina anti-VHB é aplicada nas primeiras 12-24 horas após a exposição ao vírus, a eficácia é de 70%-90%3,4,14,26. A associação de vacina e Gamaglobulina hiperimune (HBIG) apresenta níveis semelhantes de eficácia25,27. Para os indivíduos que não respondem à vacina, é importante lembrar que uma dose de HBIG pode significar 70%- 90% de proteção, quando administrada dentro de sete dias de exposição percutânea. A utilização de HBIG também é de valor após contato sexual com indivíduo com hepatite B aguda, se administrada até duas semanas após a relação27,28. Para recém-nascidos de mães AgHBs + é obrigatória a vacinação associada à HBIG. Deve ser aplicada IM, na dose de 0,06 ml/kg peso corporal, e se a dose calculada ultrapassar 5 ml deve-se dividir a aplicação em duas áreas diferentes. Maior eficácia na profilaxia é obtida com o uso precoce (dentro de 24 horas após o nascimento ou após o eventual acidente). Não há benefício comprovado na utilização da HBIG uma semana após o contágio.
Nos EUA, segundo o CDC14,20, a idade das pessoas infectadas aumentou, sendo que, no período compreendido entre 1982 e 1988, era de 27 anos em média, e passou para 32 anos entre 1994 e 1998. Esta variação foi atribuída aos resultados da vacinação de adolescentes e de adultos jovens, e das mudanças comportamentais.

Hepatite C
Embora o vírus C (VHC) seja transmitido por contato direto, percutâneo ou através de sangue contaminado, em percentual significativo de casos não se identifica a via de infecção. Pertence ao gênero Hepacivirus da família Flaviridae, e seu genoma é constituído por uma fita simples de RNA. Há uma grande variedade na seqüência genômica do VHC. Os diferentes genótipos foram reunidos em seis grupos principais e vários subtipos, por Simmonds e colaboradores29. Há uma distribuição geográfica diferenciada em relação aos genótipos do VHC. No Brasil, os mais freqüentes são: 1, 2 e 330,31.
Não se conhece, com precisão, a prevalência do VHC no nosso país; há relatos feitos em diversas áreas que sugerem que, em média, ela esteja entre 1% a 2% da população em geral30,31. Os indivíduos considerados de risco são aqueles que receberam transfusões de sangue e/ou hemoderivados antes de 1992, usuários de drogas intravenosas, pessoas com tatuagens e piercings, alcoólatras, portadores de HIV, transplantados, hemodialisados, hemofílicos, presidiários e sexualmente promíscuos. Nos Estados Unidos, durante os últimos cinco anos, 60% das 25 a 40.000 pessoas que se infectaram com o VHC, o adquiriram pelo uso de drogas injetáveis20,32.
Como as notificações não são completas é impossível detalhar quais são os principais fatores de risco para a nossa população. Em inquérito realizado pela Sociedade Brasileira de Hepatologia para analisar a "Epidemiologia do vírus C no Brasil"30 foi observada prevalência de anti-VHC em pacientes com doenças hematológicas, pré-doadores de sangue e hemodialisados, entre outros. Os resultados podem ser observados nas tabelas abaixo:
Deve ser salientado que, nesse inquérito, foi observada uma importante diferença na taxa de positividade em politransfundidos, antes e depois de 1991. As cifras foram 27/150 (18,00%) e 1/72 (1,38%), respectivamente. Com exceção dos hemofílicos, as taxas mais altas verificadas foram entre os presidiários: 222/480 (46,20%)30.
Alvariz31, em estudo retrospectivo de 1594 pacientes com positividade do anti-HCV (Elisa 2 e/ou 3), avaliados entre 1975 e 2003, descreve uma prevalência de 44,8% infectados por transfusão de hemoderivados, 4,5% por drogas EV e 47% dos pacientes infectados por via ignorada. A maioria dos pacientes pesquisados nesse grupo(91%) era portador do genótipo 1 do vírus da hepatite C.
Figueiredo e colaboradores33, revisando a literatura, encontraram que a freqüência do VHC é baixa em profissionais da área de saúde, porém esse grupo pode ser considerado como de risco para contrair a hepatite C. No Brasil, Ozakik e colegas34 não encontraram VHC positivo em dentistas analisados.








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