ARTIGO -ARTIGO - NASCIMENTO, VIDA E PAIXÃO DA AIDS
01/12/2008
Cada vez mais a epidemia da infecção pelo HIV ocorrerá entre os pobres. Miséria e Aids completam-se bem, e romper o ciclo é muito árduo. TEMOS UMA idéia bem aproximada do nascimento da Aids como doença humana e como isso ocorreu: foi no começo do século passado, em pequenas aldeias da África, quando o vírus causador (vírus da imunodeficiência humana -HIV-1) passou do nosso primo, o chimpanzé, para o homem. O motivo foi o uso de carne de caça, quando os citados primos foram caçados e devorados, e o sangue entrou na corrente sangüínea da espécie humana. O HIV-2 apareceu da mesma maneira, a partir de seu hospedeiro natural, o macaco verde. Na África, na primeira metade do século 20, sem assistência médica, as complicações que acompanham a Aids eram rapidamente fatais e não diagnosticadas. Como a Aids espalhou-se pelo mundo? Pela globalização e pelos fenômenos socioeconômicos a partir da Segunda Guerra Mundial: com a descolonização da África e as fronteiras artificiais, surgiram beligerâncias entre as várias etnias africanas. Podemos discutir as razões e atribuir culpas, mas, do ponto de vista objetivo, a infra-estrutura do atendimento médico, que já era ruim, ficou pior. Além disso surgiram novos conflitos, havendo clara interferência estrangeira: mercenários de muitas proveniências andaram pela África e por certo tiveram relações sexuais. Igualmente após a Segunda Guerra Mundial, homens africanos tiveram que trabalhar longe de suas origens e se tornaram em usuários freqüentes e obrigatórios de prostitutas. Estabeleceu-se na África o curioso sistema de circuitos sexuais, possibilitando participação de parceiros freqüentes e sucessivos: muitos homens africanos têm parceiras em cada canto, que, por sua vez, não são monógamas. A Aids pode ter chegado às Américas por haitianos que foram trabalhar no Congo e retornaram com o vírus. Nessa época, ocorreram outros importantes fatos: a pílula contra a gravidez e a mudança de costumes que levou à liberação sexual. Inclusive o preconceito contra os homossexuais sofreu modificações importantes. Tudo isso foi muito bom, mas tornou a disseminação da Aids mais fácil. Vale acrescentar que, nesse período, houve expansão dos usuários de drogas de uso endovenoso. A descoberta do vírus em 1984 e o entendimento da maneira como ele age foram extremamente rápidos. Não conseguimos imaginar a catástrofe que seria a Aids se ela tivesse aparecido nos séculos 18 e 19. Felizmente, quando surgiu, as ferramentas da pesquisa microbiológica permitiram um célere progresso. Ingenuamente, porém, achamos que, descoberto o vírus, teríamos logo uma vacina. Ilusão total. Seguiram-se descobertas de medicamentos -muitos- capazes de tratar a infecção pelo HIV e dar qualidade de vida decente a quem foi contaminado e, se houver aderência ao tratamento, proporcionar expectativa de vida bem razoável. A Aids, porém, avança em terrenos novos. A doença não se propagou na Ásia como na África (em alguns lugares, de 30% a 40% da população está com o HIV), mas a infecção está se espalhando na Europa oriental. Na África, sobrevieram claros progressos. Contudo, no seu mais rico país, a atitude amalucada de dirigentes negando a ação do HIV e propondo remédios folclóricos, como ingestão de beterraba, prejudicou seriamente o combate à epidemia. Para onde vamos? Quando a Aids vai ser controlada, acabar e ter sua paixão? Podemos imaginar alguns cenários. Vacina, se algum dia tivermos, será para daqui dez ou 20 anos. Microbicidas de uso vaginal são uma esperança e, por enquanto, não passam disso. Há novos remédios úteis para o tratamento, e o arsenal terapêutico está sempre maior, se bem que tais produtos são caros. O atendimento fica, portanto, cada vez mais dispendioso, sem curar ninguém, porquanto só controla a replicação do vírus. Sem dúvida, a população está sendo educada, de modo que os mais instruídos protegem-se contra o vírus e não o adquirem. O problema é mudar condutas de pessoas com baixa escolaridade e controlar um dos impulsos mais fortes do ser humano, o sexual. Cada vez mais a epidemia da infecção pelo HIV ocorrerá entre os mais pobres, os menos educados, os de comportamento marginal, ou seja, exatamente as parcelas mais vulneráveis e de acesso mais laborioso aos recursos educacionais. Miséria e Aids completam-se muito bem -e romper esse ciclo é muito árduo. Biologicamente, a longo prazo, poderá ocorrer na espécie humana a seleção que se verificou entre os chimpanzés: o vírus conviverá com o hospedeiro sem causar, na maior parte deles, grandes desgraças. Mas não podemos descartar o aparecimento de alguma variante do HIV dispersável com maior eficácia e talvez de alguma maneira que ainda não exista hoje. Isso, sim, seria um legítimo pesadelo. No momento, é pura ficção científica. VICENTE AMATO NETO, 80, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. JACYR PASTERNAK, 68, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é doutor em medicina pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). - Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak -
Fonte: Folha de São Paulo
01/12/2008
Cada vez mais a epidemia da infecção pelo HIV ocorrerá entre os pobres. Miséria e Aids completam-se bem, e romper o ciclo é muito árduo. TEMOS UMA idéia bem aproximada do nascimento da Aids como doença humana e como isso ocorreu: foi no começo do século passado, em pequenas aldeias da África, quando o vírus causador (vírus da imunodeficiência humana -HIV-1) passou do nosso primo, o chimpanzé, para o homem. O motivo foi o uso de carne de caça, quando os citados primos foram caçados e devorados, e o sangue entrou na corrente sangüínea da espécie humana. O HIV-2 apareceu da mesma maneira, a partir de seu hospedeiro natural, o macaco verde. Na África, na primeira metade do século 20, sem assistência médica, as complicações que acompanham a Aids eram rapidamente fatais e não diagnosticadas. Como a Aids espalhou-se pelo mundo? Pela globalização e pelos fenômenos socioeconômicos a partir da Segunda Guerra Mundial: com a descolonização da África e as fronteiras artificiais, surgiram beligerâncias entre as várias etnias africanas. Podemos discutir as razões e atribuir culpas, mas, do ponto de vista objetivo, a infra-estrutura do atendimento médico, que já era ruim, ficou pior. Além disso surgiram novos conflitos, havendo clara interferência estrangeira: mercenários de muitas proveniências andaram pela África e por certo tiveram relações sexuais. Igualmente após a Segunda Guerra Mundial, homens africanos tiveram que trabalhar longe de suas origens e se tornaram em usuários freqüentes e obrigatórios de prostitutas. Estabeleceu-se na África o curioso sistema de circuitos sexuais, possibilitando participação de parceiros freqüentes e sucessivos: muitos homens africanos têm parceiras em cada canto, que, por sua vez, não são monógamas. A Aids pode ter chegado às Américas por haitianos que foram trabalhar no Congo e retornaram com o vírus. Nessa época, ocorreram outros importantes fatos: a pílula contra a gravidez e a mudança de costumes que levou à liberação sexual. Inclusive o preconceito contra os homossexuais sofreu modificações importantes. Tudo isso foi muito bom, mas tornou a disseminação da Aids mais fácil. Vale acrescentar que, nesse período, houve expansão dos usuários de drogas de uso endovenoso. A descoberta do vírus em 1984 e o entendimento da maneira como ele age foram extremamente rápidos. Não conseguimos imaginar a catástrofe que seria a Aids se ela tivesse aparecido nos séculos 18 e 19. Felizmente, quando surgiu, as ferramentas da pesquisa microbiológica permitiram um célere progresso. Ingenuamente, porém, achamos que, descoberto o vírus, teríamos logo uma vacina. Ilusão total. Seguiram-se descobertas de medicamentos -muitos- capazes de tratar a infecção pelo HIV e dar qualidade de vida decente a quem foi contaminado e, se houver aderência ao tratamento, proporcionar expectativa de vida bem razoável. A Aids, porém, avança em terrenos novos. A doença não se propagou na Ásia como na África (em alguns lugares, de 30% a 40% da população está com o HIV), mas a infecção está se espalhando na Europa oriental. Na África, sobrevieram claros progressos. Contudo, no seu mais rico país, a atitude amalucada de dirigentes negando a ação do HIV e propondo remédios folclóricos, como ingestão de beterraba, prejudicou seriamente o combate à epidemia. Para onde vamos? Quando a Aids vai ser controlada, acabar e ter sua paixão? Podemos imaginar alguns cenários. Vacina, se algum dia tivermos, será para daqui dez ou 20 anos. Microbicidas de uso vaginal são uma esperança e, por enquanto, não passam disso. Há novos remédios úteis para o tratamento, e o arsenal terapêutico está sempre maior, se bem que tais produtos são caros. O atendimento fica, portanto, cada vez mais dispendioso, sem curar ninguém, porquanto só controla a replicação do vírus. Sem dúvida, a população está sendo educada, de modo que os mais instruídos protegem-se contra o vírus e não o adquirem. O problema é mudar condutas de pessoas com baixa escolaridade e controlar um dos impulsos mais fortes do ser humano, o sexual. Cada vez mais a epidemia da infecção pelo HIV ocorrerá entre os mais pobres, os menos educados, os de comportamento marginal, ou seja, exatamente as parcelas mais vulneráveis e de acesso mais laborioso aos recursos educacionais. Miséria e Aids completam-se muito bem -e romper esse ciclo é muito árduo. Biologicamente, a longo prazo, poderá ocorrer na espécie humana a seleção que se verificou entre os chimpanzés: o vírus conviverá com o hospedeiro sem causar, na maior parte deles, grandes desgraças. Mas não podemos descartar o aparecimento de alguma variante do HIV dispersável com maior eficácia e talvez de alguma maneira que ainda não exista hoje. Isso, sim, seria um legítimo pesadelo. No momento, é pura ficção científica. VICENTE AMATO NETO, 80, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. JACYR PASTERNAK, 68, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é doutor em medicina pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). - Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak -
Fonte: Folha de São Paulo
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