1.05.2009

O CORAÇÃO NA HISTÓRIA


O CORAÇÃO NA HISTÓRIA

No mundo das imagens que acompanha a humanidade desde suas origens, assim como no mundo dos fenômenos físicos, parece existir uma ordem de caráter gravitacional, em que certos elementos desempenham um papel mais central que outros. Por exemplo, na constelação das imagens ligadas ao mundo físico ou inerte, este papel polarizador esteve sempre associado às imagens dos quatro elementos: fogo, terra, água e ar. Na constelação de imagens referentes ao homem, este papel preponderante recaiu quase sempre na imagem do coração.

Entre os antigos egípcios, o coração, que era designado por dois sinais hieroglíficos distintos, representando ora sua dimensão orgânica, ora sua dimensão moral e espiritual – que, aliás, não se contrapõem, mas se complementam – era identificado como órgão único da vida material e também como centro da vida espiritual. “É dele (do coração) que jorram as fontes da vida”, segundo um texto gravado em uma pirâmide do Alto Império. É por isso que no ritual de inumação e mumificação dos mortos era o único órgão preservado e, depois, recolocado no corpo. Como centro da vida moral, as ações humanas nascem do coração e lá também se depositam – para o bem, ou para o mal.

Perspectiva semelhante é encontrada entre os antigos semitas, particularmente os hebreus. Para eles, o coração não é somente o órgão indispensável para a vida do corpo: ele é também o centro de toda vida psicológica e moral, da vida interior. São inúmeras as passagens no texto bíblico em que o coração aparece não apenas como princípio da vida corporal, mas também como centro da vida espiritual.

Como centro das faculdades espirituais e da vida moral, o coração da Bíblia é também sede da sabedoria, da memória, da vontade, das disposições da alma (boas ou más), das paixões e sentimentos, dos desejos, da consciência. No sentido místico e religioso é pelo coração que Deus forma, instrui e fala com cada homem. É no centro dos corações humanos que Deus quer fazer sua morada; mensagem messiânica que se realiza no Pentecostes do Novo Testamento.



Essa tendência de concentrar todo o conteúdo essencial da vida psicológica e espiritual do homem no seu coração não foi, na Antiguidade, uma particularidade dos povos semíticos. A mesma perspectiva cardiocêntrica é observada entre os gregos antigos por meio de textos como os de Homero, Hesíodo e Ésquilo, em que o termo kardia remete a um universo de significados e ações que identificam a pessoa na sua integralidade. Tal como nas inscrições funerárias egípcias ou nas sagradas escrituras hebréias, o coração, o kardia helênico – e mais tarde o cor latino – aparece nos poemas épicos, líricos e nas tragédias não apenas como sede dos sentimentos e das paixões, mas da inteligência, dos pensamentos e ainda, como lugar de encontro com os deuses; lugar da inspiração divina. Pouco a pouco, entretanto, a partir do século VI a.C., justamente no momento em que se dá o aparecimento do pensamento filosófico na Hélade, o termo kardia começou a ser substituído por outros como nous ou psyché, que redundarão nos termos latinos mens e anima.

Nesse contexto, Platão parece ter sido o primeiro a destituir o coração humano de sua hegemonia central. Exemplo emblemático desse esforço, sua célebre teoria tripartite da alma, exposta no Timeu, começa por localizar a alma humana, em sua dimensão intelectual e imortal, na cabeça, especificamente no cérebro. Parte que se encontra mais afastada da dimensão telúrica e mortal, a cabeça apresenta-se como a extremidade de maior proximidade com o mundo celeste; mundo este identificado com o reino das idéias, dos arquétipos divinos, perfeitos e universais. É na cabeça, no cérebro, que se experimenta de maneira sensível a ação de pensar, atividade superior por excelência e definitória da essência humana – enquanto ser racional. Ao coração, e mais genericamente ao peito, Platão associa a “alma sensitiva” ou “emocional” ao princípio dos sentimentos e paixões como a cólera ou a coragem. Tal noção significou um divisor de águas na história das concepções sobre o coração humano, porém, não necessariamente uma ruptura em relação às tradições mais arcaicas.

No alvorecer da época helenística, Aristóteles retoma o problema do coração sob uma nova perspectiva. Considerando a psyché o princípio fundamental de toda vida orgânica, ele conclui que a alma intelectiva responsável pela faculdade específica do pensamento não se associa a nenhum órgão corporal em especial. Aristóteles desenvolve uma teoria da inteligência humana que refuta as atribuições do cérebro, tal como postulava Platão. Para Aristóteles, o coração é o órgão principal no corpo humano, já que é a partir dele que todos os outros se desenvolvem. Além disso, é produtor, o recipiente e o distribuidor do sangue, considerado por Aristóteles como o alimento do corpo. E, como os órgãos da percepção – os olhos, os ouvidos, a pele – estão ligados ao coração pelos vasos sanguíneos, as diversas sensações acabam por confluir no coração, onde as impressões do mundo exterior são coordenadas. Refutando Platão, que situava a coordenação dos sentidos no cérebro, Aristóteles define o coração como lugar responsável pela percepção e, ao mesmo tempo, como centro das emoções.

É interessante notar que a partir de Aristóteles a que-rela entre “cerebristas” e “cardialistas” se configura no interior da corrente filosófica e científica, deixando de ser uma discussão que opunha a filosofia às tradições arcaicas e religiosas. Desde o fim da Antiguidade, passando por toda Idade Média e chegando à época do Renascimento, o campo do debate filosófico em relação a esta querela se configurava pela oposição entre platônicos e neoplatônicos por um lado – que se não reforçam o papel do cérebro como órgão central do pensamento humano e tendem para uma acentuada espiritualização ou “descorporalização” da alma – e aristotélicos e estóicos, por outro – que insistiam no papel central e essencial do coração para a vida orgânica, psicológica e espiritual do ser humano.

No terreno estritamente médico, a importância de Galeno, fazendo eco à tradição hipocrática e platônica, defendendo não apenas a distinção das faculdades da alma, como também a localização do pensamento no cérebro, tenderia, a princípio, a pender a balança para o lado dos “cerebristas”. No entanto, na prática, pelo menos neste aspecto que concerne o entendimento emocional e psicológico do homem, a tendência aristotélica ou “cardialista” fez sentir seu peso, determinando o primado do cardiocentrismo durante toda a Idade Média até o alvorecer da Modernidade.

Ainda que as razões desta preeminência do coração como órgão fundamental e identificador da pessoa humana durante este longo período da história do pensamento ocidental sejam múltiplas e complexas, um dos fatores que mais contribuiu para isto foi a influência do cristianismo, tanto pelas sagradas escrituras diretamente, quanto pela teologia ou pela experiência espiritual. Apresentando-se como continuidade e ao mesmo tempo realização das promessas messiânicas presentes na antiga lei hebraica, o Novo Testamento reforça a importância do coração como órgão da pessoa psicológica e espiritual. É dele que provém a vida, os bons e os maus pensamentos, o amor, a fé e a esperança. Assim, em Santo Agostinho, se no âmbito de sua reflexão filosófica e teológica, o coração tende a ser entendido em um sentido metafórico enquanto imagem de alma ou espírito, na esfera mais existencial e mística de sua obra, particularmente em suas Confissões, o termo coração aparece com insistente freqüência, significando a intimidade mais profunda da pessoa, a palavra “pela qual se define a individualidade de nosso ser”.

É nas Confissões que a linguagem filosófica, essencialmente platônica, cede terreno e é substituída pela linguagem poética e bíblica, determinando, a partir daí, o desenvolvimento de duas linguagens que se projetam pela história do cristianismo: a linguagem da mística platônica e a linguagem da mística do coração, tal como será chamada mais tarde por São Tomás de Aquino. Ainda que esta mística do coração tenha encontrado no cristianismo do Oriente terreno mais fértil, sua presença não deixou de ser sentida no Ocidente, de forma mais tênue e difusa.

Ainda no século XVI europeu, é o coração e não o cérebro quem, nas imagens dos filósofos e médicos, aparece caracterizado como o centro não apenas da vida física e emocional, mas também da intelectual e moral – mesmo levando em conta que, muitas vezes, do ponto de vista teórico, esses filósofos e médicos se digam fiéis seguidores de Galeno. Do ponto de vista prático, portanto, o período medieval, assim como o Renascimento, não deixaram de ser essencialmente cardiocêntricos, inclusive este último, profundamente marcado pelas metáforas e analogias políticas entre o coração e o rei – o primeiro como soberano do corpo humano, o segundo como soberano do corpo social.

Mesmo na eclosão da chamada revolução científica, em princípios do século XVII, e no momento em que se esboçava o Moderno Método Científico, com a contribuição fundamental de Willian Harvey, nunca o cardiocentrismo esteve tão bem representado e defendido. Por meio de estudo rigoroso e metódico, Harvey estabelece as bases que permitiram ao espírito moderno transformar o coração numa “bomba biomecânica”, responsável pelo sistema circulatório, imbuído de responsabilidade vital no esquema fisiológico dos animais superiores. Porém, totalmente esvaziado de conteúdo psicológico ou moral, tal como a ciência o define hoje.

Por outro lado, na dedicatória da primeira edição britânica e ao longo de todo capítulo VIII do De Motu Cordis, desenvolve livremente as tradicionais analogias, estabelecendo um complexo paralelismo entre a figura do sol, do rei e do coração humano. Para Harvey, sua descoberta confirma antes e acima de tudo, com base científica observável e experimental, as antigas concepções nascidas da revelação e do gênio filosófico dos autores inspirados na Bíblia e em Aristóteles, sobre o papel central do coração para a vida física, psicológica, moral e espiritual do homem.

Ironicamente, será esta mesma obra imbuída de aristotelismo e de vitalismo que acabará por deflagrar o movimento intelectual que decisivamente realizará a destronização do coração enquanto órgão da pessoalidade. O primeiro passo neste sentido parece se dar a partir do debate que se estabelece entre Harvey e Descartes em torno do papel do coração na circulação do sangue e seus desdobramentos.

Apesar de ter perdido do ponto de vista científico, já que o desenvolvimento posterior da fisiologia cardiológica demonstrou ser correta a tese de Harvey, Descartes, por meio de sua “crítica racional”, acabou por vencer filosoficamente. Ou seja, procurando cobrar de Harvey uma coerência radical aos seus pressupostos empíricos e experimentais, Descartes demonstra a inconsistência de sua perspectiva vitalista, resquício, segundo ele, de “superstições míticas e fantasiosas”.

Dessa forma, ainda que equivocado do ponto de vista empírico-experimental, Descartes determinou a nova postura intelecto-racional que acabou por estabelecer as bases filosóficas da Nova Ciência. Ao determinar os critérios possíveis de interpretação, Descartes esvazia a obra de Harvey de conteúdo psicológico e moral, indicando os rumos do novo método que redunda na visão mecânica do homem e do universo. Uma vez depurado pela rigorosidade do método, a descoberta de Harvey poderá, a partir daí, ser retomada e desenvolvida num processo que culminaria na definição do coração como uma “bomba biomecânica”; tarefa levada a cabo pelos fisiologistas dos séculos subseqüentes.

Paralelamente ao processo de destronização ou esvaziamento do coração, surge um correspondente movimento de entronização do cérebro que irá ganhar o status de órgão da pessoalidade. Desde a segunda metade do século XVII, filósofos da matéria e da identidade pessoal, tais como Willis, Locke e Bonnet, começam a estabelecer as bases para a construção do sujeito cerebral, que será mais tarde consagrado pelas neurociências e pela cultura da inteligência artificial de nossa época.



Gallian é doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, docente e diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da UNIFESP e professor visitante na École de Haute Études en Sciences Sociales de Paris, França.

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