6.12.2009

Animação suspensa - Hibernação



Você já passou pela sensação de querer se desligar um pouco? Talvez sua vida estivesse tão complicada que você gostaria de entrar num estado de hibernação, para depois retornar quando tudo estivesse melhor. Ou então optar for ficar congelado enquanto a cura para sua doença não chega?

No filme “Vanilla Sky” (uma refilmagem americana do original espanhol), o protagonista opta pelos serviços de suspensão animada com “sonhos lúcidos” oferecidos por uma firma de biotecnologia, após sofrer um acidente que deforma sua face. Assim, permanecerá em suspensão animada até um futuro quando a tecnologia de reconstrução facial esteja mais avançada. Mas algo dá errado com seus sonhos, e ele tem de chamar a assistência técnica…

Diversos animais são capazes de, literalmente, desligar seu organismo por um tempo utilizando uma flexibilidade metabólica. Assim, conseguem reduzir o metabolismo e os batimentos cardíacos dependendo do ambiente em que se encontram. Essa flexibilidade tem, obviamente, um custo evolutivo, pois essas espécies acabam por ficar vulneráveis durante essa suspensão. Mas e no caso de humanos? Seria possível quebrar esse dogma médico? Relatos de casos isolados de indivíduos que treinaram mente e corpo durante anos para chegar nesse estágio podem ser encontrados na internet. Seria isso fato ou ficção?

Abre tus ojos
No começo de 2001, Erika Nordby, um bebê de apenas 1 ano de idade, saiu engatinhando de sua casa no Canadá durante uma noite gelada de 0 grau Celsius. Quando sua mãe a encontrou congelada, duas horas depois, o coração de Erika tinha parado de bater, sua respiração cessado e sua temperatura corpórea tinha abaixado para 16oC (a temperatura fisiológica do corpo humano é 37oC). Erika foi levada as pressas ao hospital, onde foi ressuscitada e hoje não tem nenhuma sequela do incidente.

Em outubro de 2006, Mitsutaka Uchikoshi, 35 anos, adormeceu enquanto escalava a montanha gelada Rokko, nos arredores de Kobe, Japão. Ele foi considerado morto ao ser resgatado, 24 dias depois do ocorrido, com a temperatura corpórea de 21oC, sem pulsação, sem comida ou água. Entretanto, ao chegar ao Hospital Geral da Cidade de Kobe, algo fantástico ocorreu: Mitsutaka acordou. Mais impressionante ainda, ele não havia sofrido nenhum dano cerebral.

Em maio de 1999, a esquiadora norueguesa Anna Bagenholm ficou submersa em águas geladas por mais de 1 hora, sendo considerada clinicamente morta. Sem batimentos cardíacos, sem respiração e temperatura corpórea de 13oC, ela foi ressuscitada poucas horas mais tarde no hospital (Gilbert, M e colegas. “The Lancet”, 2000).

Tanto o bebê quanto o japonês e a norueguesa foram capazes de driblar a morte entrando em um estado conhecido como animação suspensa, no qual a maquinaria vital reduz sua atividade ao mínimo necessário, mas sem parar completamente. Esse estado é comparável à hibernação em alguns mamíferos e, em geral, é acompanhado de redução da temperatura corpórea ou hipotermia. O estudo desses casos isolados fez especialistas concluir que, em condições especiais, o homem também poderia hibernar.

Ainda que a hipotermia não esteja sendo explorada por completo na medicina, já são conhecidos os benefícios de diminuir a temperatura abaixo de 37 graus Celsius em casos de parada cardíaca na recuperação das funções vitais, evitando danos no sistema nervoso centr

Ovo podre
Essa capacidade de flexibilidade metabólica entre a vida e a morte através da hipotermia chamou a atenção de Mark Roth, pesquisador do Centro de Estudos do Câncer Fred Hutchinson, em Seatle, EUA. Ele queria encontrar uma forma química (consequentemente mais rápida e prática) de induzir o estado de animação suspensa.

Roth refletiu que outra maneira de reduzir a atividade metabólica em mamíferos seria restringindo o consumo de oxigênio (hipoxia). Foi então que ele teve uma ideia, enquanto assistia a um documentário sobre escavações em cavernas no México. Trabalhadores das minas mexicanas tinham de utilizar máscaras constantemente, para se proteger do gás sulfídrico ou sulfeto de hidrogênio (símbolo químico: H2S). Em altas concentrações, esse gás pode matar em minutos, pois bloqueia os receptores de oxigênio das células, que não conseguem mais absorver o oxigênio.

Daí veio a sacada de Roth: o H2S é um produto do metabolismo celular que está naturalmente presente no sangue e só apresenta riscos vitais em altas doses. Se administrado em concentrações mínimas, o H2S teria, em princípio, o potencial de reduzir profundamente a demanda de oxigênio, a ponto de diminuir o metabolismo celular e proporcionar um estado de animação suspensa. Para quem acha que nunca respirou gás sulfídrico, ledo engano… A grande maioria de nós já teve a chance (infelizmente) de sentir o cheirinho desagradável de ovos podres.

Voltando ao Roth, ele imediatamente resolveu expor seus camundongos a baixas concentrações de H2S e foi capaz de induzir até 6 horas de hibernação reversiva. Seus resultados foram publicados na prestigiosa revista “Science” (Blackstone e colegas, 2005) e uma fila de investidores veio bater na porta do seu laboratório. Em pouco tempo, havia acumulado 10 milhões de dólares para financiar seus próximos experimentos.

Pílulas de hibernação
Muito mais do que uma curiosidade biológica, a manutenção do estado de animação suspensa em humanos tem o potencial de ser uma poderosa ferramenta clínica. Desde a publicação original em 2005, a empresa farmacêutica americana Ikaria (nome inspirado na ilha grega cujas fontes sulfurosas foram associadas à medicina regenerativa) reformulou o H2S em líquido injetável que está sendo utilizado nos primeiros testes clínicos.

As aplicações de dessa tecnologia extraordinária podem ser imensas. Imagine se pudéssemos induzir o estado de hibernação em um acidentado enquanto esperamos o socorro que não chega? E soldados em batalha, será que teriam mais chances se ganhassem mais tempo durante o transporte? Ou então para manter pacientes na fila dos transplantes enquanto esperam? Carregaríamos no bolso pílulas de hibernação assim como carregamos aspirinas. Parece ficção científica nos dias atuais, mas talvez não em 50 anos. Lembre-se disso da próxima vez que cheirar ovo podre!

Espiral
Globo.com - G1

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