"Todo intelectual sério sabe que
Lula nunca foi 'socialista' na acepção clássica do termo e que isso é um
dado fantástico: não é preciso ser socialista para lutar pela igualdade
e pela democracia", diz o linguista Gustavo Conde, ao fazer perguntas
essenciais sobre o legado do ex-presidente Lula; "Qual socialista no
mundo foi tão exageradamente democrático, perdendo três eleições
majoritárias e, ainda assim, submetendo-se a mais um processo eleitoral?
Qual socialista no mundo acumulou 300 bilhões de dólares de reservas
internacionais? Qual socialista no mundo pagou uma das maiores dívidas
externas do planeta? Qual socialista no mundo emprestou dinheiro ao FMI?
Qual socialista no mundo criou um banco para fazer frente ao FMI?"
Dia pródigo para falar de Lula. Todo mundo só
pensa em Lula, seja para odiar, seja para amar. Eu tento pensá-lo como
um homem, um político, um estrategista, um formulador, um ex-presidente.
Sem ele, não existe história do Brasil de 1978 para cá. Odiar Lula é um exercício de preguiça intelectual. É importante
criticar todo e qualquer protagonista político mas com argumentos, não
com rótulos fáceis e chavões. Mas, se odiar é ruim, a leitura errada é pedagógica. Devidamente desconstruída, ela ilumina processos de interpretação. Nesse sentido, é possível reavivar uma clássica leitura equivocada de
Lula, a que o enquadra como "socialista". A esses sensíveis leitores é
licenciado lançar um olhar de estupefação, pois até a resposta retórica e
brincalhona de Lula nos anos 80 chegou a os ofender: "sou metalúrgico".
Explicar a piada talvez não seja uma opção, sobretudo uma piada tão
sofisticada. A origem política de Lula é o sindicato. Não tem nada de romântico,
nem de intelectual, nem de salvacionismo, nem de utopia. O socialismo é
que foi atrás de Lula, porque Lula o aceitou e o compreendeu melhor que
os próprios "socialistas", em grande medida. Qual socialista no mundo produziu uma política pública como a do
bolsa-família (que, mais do que sua função ética de levar comida na mesa
do pobre, ainda incendiou a economia, fazendo o país sair daquele
marasmo econômico da era FHC)? Qual socialista no mundo foi tão exageradamente democrático, perdendo
três eleições majoritárias e, ainda assim, submetendo-se a mais um
processo eleitoral? Qual socialista no mundo teve 258 milhões de votos ao longo de 40
anos de vida pública (e que, pasmem, continua liderando pesquisas de
opinião)? Qual socialista no mundo foi tão perseguido pela imprensa, pela elite, pelo racismo, pela justiça e pelo ódio? Qual socialista no mundo dialogou com tantas forças do tecido
democrático com tanta desenvoltura e resultados: empresariado,
movimentos sociais, entidades religiosas, sindicatos, imprensa,
organizações não governamentais, sociedade civil, estudantes? Qual socialista no mundo acumulou 300 bilhões de dólares de reservas internacionais? Qual socialista no mundo pagou uma das maiores dívidas externas do planeta? Qual socialista no mundo emprestou dinheiro ao FMI? Qual socialista no mundo criou um banco para fazer frente ao FMI? Não se trata de colocar o socialismo em xeque, mas apenas de
restituir alguma cifra de realidade ao argumento. Todo intelectual sério
sabe que Lula nunca foi "socialista" na acepção clássica do termo e que
isso é um dado fantástico: não é preciso ser socialista para lutar pela
igualdade e pela democracia. Lula é a prova de que a gestão pública não aceita a burocracia do
pensamento acadêmico como elemento irradiador de políticas. Isso não é o
papel de um líder histórico. Um acadêmico no poder é um desastre da
natureza. Cargos da dimensão de uma presidência de um país continental em
desenvolvimento não são um trampolim carreirista qualquer: trata-se de
uma responsabilidade que transcende as ambições chãs e desvirtuadas da
classe média, por exemplo. Compreender essa dimensão é tarefa hercúlea
para este segmento, cognitivamente falando. Essa leitura, no entanto e ainda que equivocada, é realizada por
"quase simpatizantes" de Lula, em última análise. Uma de suas
consequências é aparelhar o discurso conservador: ela municia os mais
viscerais detratores de Lula que usam o argumento da "traição ao
socialismo" como elemento gerador de contradições em todo o campo da
esquerda. Essa faixa 'pequeno-burquesa' fantasia que Lula deveria ter sido um
'simulacro' de Fidel Castro, que ele deveria ter "eliminado" seus
adversários políticos. Ora, ora, ora. Curioso ver como o caudilho autoritário não está em
Lula, mas em seus críticos – e na imprensa. Reclamam que Lula fez
alianças com coronéis, mas o que afinal eles queriam? Que Lula
expulsasse os coronéis do país? Os coronéis do PMDB? É isso que fica subscrito no pensamento radical de ambos os extremos
do espectro ideológico. A solução que eles eventualmente oferecem ao
embate político é 'eliminar' o adversário. É por isso que a democracia não é para os fracos. É por isso que a
democracia exige coragem e humildade ao mesmo tempo. É por isso que eles
não entendem a democracia, por assim dizer. Lula é uma esfinge para esses anti-analistas, mestres em diferentes
níveis na arte da não argumentação. Para eles, tudo é rótulo, tudo é
estereótipo, tudo tende ao sentido único. Eles pouco entendem o que é
racismo, quanto mais o que é política. A história, no entanto, não é uma donzela recatada e do lar. Ela não
segue a lógica primitiva dos seres não argumentativos. A história gosta
de conteúdo. Para a história, o golpe é só um elemento narrativo extremamente
poderoso. Um antissujeito, uma perturbação, um "tranco" semiótico que
prepara a retomada da progressão e dos protagonismos das personagens
principais. E uma personagem de narrativa histórica que se preze não pode ser
"transparente", visível a todo e qualquer observador. Ela exige uma face
enigmática, esfíngica, caso contrário anula-se o elemento de suspense. Tudo isso só para dizer - aos que insistem em não compreender Lula - a
seguinte dica de ano novo: continuem não compreendendo Lula. Ele se
alimenta da não compreensão de vocês.
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