Criado por Dilma em 2013, como uma resposta coerente aos imensos protestos ocorridos no primeiro semestre daquele ano, o Mais Médicos atende 63 milhões de brasileiros e tornou-se um dos mais bem sucedidos programas sociais em vigor no país depois da chegada do condomínio Lula-Dilma no Planalto. O índice de satisfação da população beneficiária, residente em áreas carentes e pontos remotos, fica próximo do absoluto.
Num máximo 10, a nota média é de 8,7, contra 6,6 na situação anterior. Ouvidos em pesquisa coordenada pela Universidade Federal de Minas e pelo IPESP (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Economicas), junto a 14.179 pacientes, 227 gestores e 391 médicos, apurou-se que 95% dos usuários se declaram satisfeitos, 87% dizem os médicos são mais atenciosos, e 82% afirmam que encontraram soluções melhores ou muito melhores para seus problemas de saúde durante a consulta.
A ameaça a sobrevivência do Mais Médicos encontra-se no artigo 16 da Lei 12.871, que criou o programa, e reflete a única vitória obtida por seus adversários naquele ambiente de cerco que o governo enfrentou durante os protestos de junho de 2013. Aliando-se ao PSDB, ao DEM e demais siglas conservadores, as entidades médicas conseguiram impor um limite de sobrevivência do programa -- o período de permanência no programa de médicos formados no exterior, sejam brasileiros ou não. Fixou-se um prazo limite de três anos para que eles pudessem servir ao Mais Médicos munidos apenas do diploma de formação em sua escola de origem. Após esse período, diz a lei, tornou-se obrigatório fazer um exame de revalidação para que pudessem seguir atuando no país. Caso contrário, seriam obrigados a optar entre deixar o Brasil ou abandonar a medicina. Parece uma medida bem intencionada, e até ciosa do ponto de vista da atenção aos pacientes, mas não é.
Num país onde a oferta de médicos por habitante está vergonhosamente abaixo das necessidades da maioria da população e mesmo do padrão autorizado pela renda per capta, a viabilidade econômica do Mais Médicos se apoia na presença de 18 240 médicos que atuam fora do mercado convencional da profissão. A experiência de outros países e mesmo o bom senso mostra que nem todos se dirigem para atuar nos pontos de extrema pobreza movidos por um puro espírito solidário e altruísta, ainda que estes fatores sejam reais em casos numerosos e dignos de admiração. Os efeitos práticos da mudança em curso, caso o artigo 16 seja mantido, é fácil de entender.
Ao contrário do que ocorre hoje, quando só estão autorizados a atuar como profissionais do Mais Médicos, com o exame de validação eles estarão autorizados aingressar no mercado de trabalho convencional da medicina brasileira, que tem aqueles atrativos que se pode imaginar: salários mais altos, um conforto material típico de classe média e uma vida nos bairros relativamente bem equipados das grandes cidades brasileiras. Caso sejam obrigados a fazer o exame de validação, terão a porta aberta para deixar o mundo dos brasileiros carentes para disputar um lugar ao sol no mercado da medicina brasileira, cuja dinâmica combina um atendimento privado que atinge 20% da população, em grande parte subsidiado pelas garantias oferecidas pelo Estado através do SUS. Não estamos falando de um pequeno número de doutores.
Embora o recrutamento inicial desse prioridade aos profissionais brasileiros, apenas um terço 18.240 médicos que atuam no programa são brasileiros ou têm registro no país, contra 12 966 com registro profissional no exterior -- ou porque são estrangeiros de nascimento, como ocorre com 11 429 de nacionalidade cubana, ou porque foram estudar no exterior.Caso o artigo 16 seja mantido, uma parcela considerável será devolvida ao mercado de trabalho convencional, promovendo o esvaziamento gradual do atendimento. Entre julho e dezembro deste ano, vencem os limites de permanência sem validação de 7 000 estrangeiros, ou 38% dos médicos do programa. Uma nova leva vence nos semestres seguintes e assim por diante, com resultados previsíveis para a população que vive nos pequenos municípios e bairros mais pobres e distantes, onde, conforme já admitiu ACM Neto, insuspeito prefeito de Salvador, "médico cubano é mais conhecido do que Ivete Sangalo."
A ideia de que é preciso assegurar a sobrevivência permanente do Mais Médicos é antiga, mas se consolidou depois da divulgação do documento Ponte para o Futuro, que tem servido de bússola para nortear os rumos de um possível governo Michel Temer. Examinando ideias daquele documento, cuja prioridade máxima reside no corte de gastos públicos, o secretário Hêider Aurélio Pinto, responsável pelo Mais Médicos no Ministério da Saúde, escreveu o artigo "A Saúde e o SUS: como ficariam num pós-impeachment", publicado há pouco no 247. No texto, lembra a preocupação absoluta de Temer com redução de gastos, a ponto de falar em "acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas", além de falar em "estabelecer um limite para despesas de custeio inferior ao crescimento do PIB, através de lei." O secretário também recorda um projeto de privatização escancarada da Agenda Brasil proposta pelo PMDB no Senado, favorável a "cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda. Considerar as faixas do Imposto de Renda de Pessoa Física." O suiço Eduardo Cunha também entrou nesse debate em 2014, através de um Projeto de Emenda Constitucional.
Há três anos, quando o Mais Médicos foi lançado, Dilma recuperava-se da formidável ofensiva das ruas que atingiu seu governo. O programa foi parte da reconstrução da presidente, que acabaria reeleita um ano e meio depois, mesmo enfrentando um jogo sujo na reta final. Em abril-maio de 2016, a luta em defesa do Mais Médicos permite ao governo pisar em terreno conhecido e já aprovado, que a população tem interesse óbvio em defender, especialmente a mais pobre. O fato deste debate se colocar num ano de eleição municipal é um fator que fortalece a mobilização a favor, quando se recorda os transtornos e prejuízos que uma mudança desse porte na rotina de uma população a caminho das urnas.
Um dos principais defensores da MP é Marcio Lacerda. Prefeito de Belo Horizonte, aliado de Aécio Neves, Lacerda é o atual presidente da Frente Nacional de Prefeitos, que expressa os interesses das maiores cidades do pais. Argumentando, entre outras coisas, que "muitas cidades dependem dos médicos intercambistas (assim os estrangeiros são chamados) para manter os serviços básicos de saúde da população", e que "a descontinuidade (do Mais Médicos) criaria um caos nas cidades, justamente em período eleitoral", há dois dias Márcio Lacerda enviou carta ao ministro Marcelo Castro em defesa da Medida Provisória que capaz de assegurar "a continuidade do programa" e a "permanência dos profissionais sem que haja retrocesso dos avanços já conquistados."
Com argumentos ainda mais enfáticos, Eduardo Tadeu Pereira, da Associação Brasileira de Municípios, escreveu uma carta a Dilma onde disse o seguinte: "Até 2013, a falta de de médicos inviabilizava a atenção básica nos municípios, sobretudo nos pequenos e médios, que apresentavam dificuldade para a fixação de profissionais. O Mais Médicos não apenas revolucionou esse cenário, como pautou uma agenda positiva no âmbito da saúde local."
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